Emmanuele
- Você não sabe o quanto ficamos gratas por isso, Martim. – eu tinha a vaga sensação de já ter dito aquelas palavras, mas não consegui me controlar.
- Está tudo bem, Emanuele. – a voz dele saiu suave, cheia de compreensão.
Ester estava abraçada a mim, muito calada, no banco de trás do meu carro. Martim o guiava para a casa de nossos pais, que agora era só de nossa mãe, mas eu não queria pensar desse jeito por enquanto, então lembrei de vários fatos envolvendo nossa família.
Lembrei do quanto nosso pai era preocupado, presente e nos abraçava todos os dias. De como ficava bravo quando aprontávamos demais e deixávamos mamãe muito nervosa. Lembrei de brigas e birras de adolescente.
Quando chegamos na casa, mamãe estava na porta nos esperando. Tão pálida e abatida que fiquei preocupada que estivesse adoecendo, afinal ela não era mais uma jovenzinha.
- Mamãe. – passei os braços ao seu redor e Ester também.
Passamos um longo tempo abraçadas, sentindo a tristeza que aquela partida nos trazia, e quando nos afastamos percebi que mamãe olhava confusa para Martim, parado há alguns metros parecendo deslocado.
- Mamãe, esse é meu namorado. – Ester foi até ele e puxou-o pela mão.
- Martim, senhora. Sinto muito conhecê-la nessa ocasião.
- Obrigada. – inesperadamente mamãe o abraçou.
Ester e eu trocamos um olhar confuso com Martim, mas não dissemos nada. O luto faz coisas estranhas com as pessoas, desencadeia outras, e ainda traz à tona um lado que poderíamos não conhecer.
Fiquei aliviada por Martim estar conosco, demonstrando apoio a todas nós e não apenas a Ester. Não tínhamos uma família grande e próxima, então qualquer um que quisesse ajudar era bem-vindo.
Quando o caixão desceu, mamãe finalmente começou a chorar e Ester a abraçou, sussurrando em seu ouvido. Eu vacilei por um momento, desfocando a cena e oscilando perigosamente.
- Emanuele. – Martim me segurou pelos ombros, tomando o cuidado de não me tocar demais – Está se sentindo mal?
- Um pouco. – respirei fundo, segurando em seu braço, desejando que as coisas voltassem ao foco logo.
- O que significa isso? – uma voz irritada disse atrás de nós.
Gemi, fechando os olhos na esperança de que ele desaparecesse. Não havia como não reconhecer a voz de Rafael depois de todos aqueles anos.
- Posso ajudá-lo? – Martim continuava educado, mas um pouco mais seco do que quando falava conosco.
- Pode tirar as mãos da minha mulher. – escutei-o se aproximando.
Não esperei que meu futuro cunhado fosse se colocar entre nós dois, mas foi exatamente isso que ele fez.
- Agora não é o momento para cenas. – a voz de Martim, sempre suave, estava ameaçadora.
Abri os olhos e vi Rafael vacilar, olhando dele para mim. Ele estava com raiva, mas não tinha coragem de enfrentar o homem.
- O que está acontecendo aqui? – Ester surgiu, irritada.
- Eu é que pergunto. – Rafael elevou a voz outra vez, mais familiarizado com ela.
- É um enterro. – ela retrucou, ainda mais raivosa – Vá embora.
Ester passou o braço pelos meus ombros e me puxou para longe, e Martim seguiu atrás de nós duas como um segurança. Rafael não nos seguiu, para o meu mais completo alívio.
Claro que minha paz não duraria muito tempo, então ele apareceu na porta da casa depois que todos haviam ido embora. Para evitar maiores complicações, saí para encontrá-lo, mas percebi que Martim estava atento, me lançando um olhar de apoio enquanto consolava Ester e mamãe.
- O que quer aqui? – cruzei os braços na frente do peito depois de fechar a porta.
- Eu soube do que aconteceu. – Rafael deixou uma pequena distância entre nós dois – Mas não sabia que você já tinha quem a consolasse.
- Você é ridículo. – quase ri com a ignorância de suas palavras – Aquele é o namorado de Ester, não que seja da sua conta.
Ele vacilou, talvez percebendo o tamanho de sua gafe, depois se aproximou com aquele olhar que eu já conhecia muito bem.
- Sinto muito pelo seu pai, Em. – suas mãos pousaram nos meus ombros.
- Não me toque. – deu um passo para trás – E vá embora.
- Não seja tão dura comigo. – ele reclamou – Vim aqui apenas para consolar você.
- Não preciso do seu consolo. – retruquei, irritada até a raiz dos cabelos.
- Não seja difícil, Emanuele. – sua mão se fechou no meu braço no exato momento em que a porta se abriu atrás de mim.
- Você a ouviu. – a voz de Martim trovejou.
Rafael me soltou a contra gosto, depois com um olhar de irritação, deu as costas e entrou no carro. Só respirei aliviada quando ele virou a esquina.
- Venha, Emanuele. – Martim me guiou de volta para dentro da casa.
Nos primeiros dias após a perda de nosso pai, a casa esteve tão silenciosa que parecia vazia, mesmo com Martim fazendo de tudo para que ficássemos bem. Ele parecia compreender o que queríamos, nunca ultrapassando os limites, e nos deixava sozinhas pelo tempo que precisássemos sem reclamar.
- Você escolheu muito bem. – sorri para Ester quando ele fechou a porta do quarto, deixando-nos sozinhas com mamãe.
- Parece que sim. – ela sorriu de volta.
Mamãe estava realmente arrasada, e demorou dois dias para conversar conosco. Ela não estava revoltada, longe disso, mas sentia muita falta do companheiro de tantos anos. Principalmente porque ele havia sido levado sem nenhum aviso, em um dia estava lá e no outro o coração havia falhado sem que ninguém desconfiasse que havia um problema.
Para minha surpresa, quando se sentou e perguntou o que tinha acontecido com Rafael, não disse nenhuma palavra negativa. Ela apenas ouviu e lamentou que eu estivesse tão triste.
Depois quis conhecer um pouco melhor Martim, e pareceu realmente gostar dele. Disse para Ester que ele não parecia um homem que a faria sofrer, e que estava feliz pelos dois.
Somente depois de tudo isso feito, foi que mamãe pediu para conversar comigo a sós em seu quarto. A atendi, lançando um olhar confuso para Ester e recebendo um igual em resposta.
- Fico triste por tudo que passou com Rafael. – ela iniciou, se sentando na cama.
- Obrigada por entender, mãe. – me sentei em uma cadeira, de frente para ela.
- Posso entender muito bem o que passou, Emanuele. – eu não esperava um assunto como aquele, afinal papai era um homem bom.
- O que quer dizer, mãe? – arrastei a cadeira mais para perto – Seu casamento foi bom.
- Foi maravilhoso. – ela corrigiu, melancolicamente sonhadora – Mas eu me referia a outra coisa.
Não falei nada, aguardando que ela organizasse suas ideias.
- Quando eu era jovem, Emanuele, trabalhava como empregada em uma fazenda muito longe daqui. – mamãe cruzou as mãos no colo – Lá eu conheci um rapaz, um rapaz muito bom com as palavras e que me fez ignorar que estava de casamento marcado.
- Minha nossa, mãe! – exclamei, perplexa.
- Ele não era da minha fazenda, claro. – ela prosseguiu sem se abalar – Mas aparecia as vezes para cuidar dos donos, era médico, e com o tempo percebi seu interesse. Eu o achava bonito, educado, e acabei me deixando levar.
- Sinto muito que tenha tido seu coração partido, mamãe. – falei com sinceridade – Mas não conseguiu deixar isso no passado depois que encontrou papai?
Ela não respondeu rapidamente. Primeiro ergueu os olhos para meu rosto e me observou por alguns instantes, vendo algo que eu não imaginava o que poderia ser.
- Não quando vejo os olhos dele toda vez que olho para você.
Me levantei tão rapidamente que a cadeira caiu. O que aquilo significava?
- Não fique nervosa, Emanuele. – mamãe pediu com olhos marejados – Mas esse homem que cuidou de você a vida toda, não era realmente o seu pai. – suas palavras soaram como bombas explodindo no cômodo pequeno.
Me senti sufocada, então sai do quarto correndo. Eu não podia acreditar que aquilo era verdade!
- Emanuele? – Ester ficou em pé, assustada.
Ignorei-a e me tranquei no banheiro. Joguei água gelada no rosto com as mãos tremendo, depois segurei a pia com as duas mãos e me encarei no espelho.
Aqueles olhos verdes, tão belamente destacados pelas maquiagens de Ester, tão diferentes dos da família, jogavam na minha cara a verdade sobre a minha vida. De repente odiei um detalhe meu que sempre havia gostado.
Emmanuele - Emanuele? – Ester bateu na porta do banheiro, preocupada. - Só um minuto. – pedi, esperando que as lágrimas parassem de descer. Quando abri a porta, Martim estava atrás de minha irmã, e ambos estavam com olhares apreensivos. - Me desculpem. – pedi com sinceridade – Eu não queria assustar vocês. - Emanuele. – mamãe surgiu atrás dos dois.&nbs
Emmanuele Dois dias depois eu estava dentro do meu carro, voltando para a casa da minha mãe sem nem mesmo avisar, com um pouco de medo do que poderia descobrir. Mas quando estacionei na frente, percebi que eu era esperada. - Sabia que eu vinha? – perguntei depois de a abraçar. - Tinha esperança de que não ficasse com raiva para sempre. - Não foi isso. – neguei com firmeza – Eu só senti como se você estivesse tentando tirar meu pai de mim. - Eu n&ati
Emmanuele Eu não esperava que Guilherme fosse jovem, estava imaginando um idoso relativamente parecido com o advogado que havia encontrado mais cedo, mas ele devia ter mais ou menos a minha idade, era alto, com cabelos castanhos volumosos e olhos tão escuros que pareciam pretos. - Emanuele? – sua voz soou antes que eu pudesse cumprimentar. - Sim. – confirmei me aproximando. - Guilherme. – ele estendeu a mão para mim, e a apertei, observando o quanto era grande perto da minha. Sorri
Emmanuele Guilherme e eu nos evitamos pelos dois dias seguintes, concentrados em vasculhar toda a casa. Eu estava em busca de respostas, e acredito que ele tivesse o mesmo objetivo, mas não combinamos qualquer coisa. Até mesmo começamos a fazer as refeições em horários distintos. Em um acordo não verbal, eu sempre acabava comendo primeiro e quando estava me retirando, ele aprecia, me cumprimentava e essa era nossa única interação. Eu ficava agitada em sua presença, ansiosa, e pela forma que ele sempre evitava me olhar diretamente, Guilherme devia sentir algo parecido. O que estava acontecendo com nós dois? 
Emmanuele A volta para casa foi feita em um silêncio constrangedor. Nenhum de nós conseguia sequer olhar para o outro. Irmãos. Irmãos por parte de pai. Eu nunca havia me sentido tão suja em toda a minha vida. Como eu tinha olhado para o meu próprio irmão daquele jeito? Como eu podia ter me sentido daquela forma? Meu Deus, eu havia beijado o meu próprio irmão. Desci do carro assim que Guilherme parou, e subi as escadas correndo até o quarto onde estava hospedada. Eu não podia passar nem mais um segundo sob o mesmo teto que ele.&
Guilherme Não consegui dormir direito a noite toda e, quando finalmente desisti de ter algum descanso em paz, me levantei e fui até o quarto que Emanuele havia usado aqueles dias. Ainda havia seu cheiro pelas roupas de cama e, embora eu soubesse que era inadequado me sentir assim em relação a minha própria irmã, me acomodei ali até o sol nascer. Era irônico porque eu havia desejado ter irmãos durante uma boa parte da minha vida, e agora tudo que eu mais desejava era que não fosse verdade. Quando desci para o café da manhã, Ana já havia deixado tudo pronto e estava ocupada com outras coisas da casa. Me sentei sozinho, sentin
Guilherme Na prática foi muito mais complicado do que eu esperava. Por mais que as lembranças fossem se tornando mais suaves com a passagem dos dias, não havia um dia em que não surgissem memórias involuntariamente. Eu me pegava pensando o que Emanuele estaria fazendo naquele horário, se ela já estaria dormindo, se também pensava em mim com uma frequência que não deveria. Será que ela se sentia culpada como eu me sentia? Porque decididamente eu não pensava nela como um irmão de verdade, e já estava ciente de que acabaria no inferno no futuro. - Tem certeza de que não quer sair um pouco? – os convites de Jo
Emanuele - Você estava completamente incrível essa noite! – exclamei quando Ester desceu do palco. Ela sorria, radiante, e havia tanta paixão exalando do seu corpo que era impossível não me contagiar. Minha irmã era incrível, talentosa e eu estava muito orgulhosa. - Jura? – perguntou, ofegante, segurando minhas mãos. - Claro que sim! – apertei suas mãos, sorrindo, enquanto a plateia ainda terminava de aplaudir ao nosso redor. Martim subiu no