O som da chuva batendo contra a vidraça preenchia o silêncio do pequeno café no centro da cidade. Clara ergueu o olhar do seu caderno de anotações quando a porta se abriu, trazendo uma rajada de vento frio e um homem de presença avassaladora. Ele era alto, com cabelos castanhos desordenados que combinavam com a barba rala. Os olhos, de um azul intenso, pareciam explorar cada canto do espaço antes de pousarem nela.
"Com licença," disse ele, a voz grave e carregada de uma confiança desarmante. "Este lugar está ocupado?" Clara engoliu em seco, percebendo que a mesa onde estava era a última vaga no café lotado. Com um aceno de cabeça, apontou para a cadeira à sua frente. Ele sorriu de lado e sentou-se, ajeitando o sobretudo molhado com movimentos precisos. "Obrigado," murmurou, antes de abrir um livro desgastado e começar a ler. Mas Clara não conseguia desviar os olhos dele. Algo no jeito como ele parecia alheio ao ambiente a intrigava. Ela tentava voltar ao seu trabalho, mas as palavras fugiam-lhe à mente sempre que o homem ajeitava o cabelo ou molhava os lábios. "Clara?" A voz dele, de repente, quebrou seus pensamentos. Ela piscou, surpresa. "Desculpe, como sabe meu nome?" Ele ergueu o livro que lia, revelando a capa. Era um dos romances que ela mesma havia escrito. "Sou um grande fã," confessou ele, inclinando-se levemente. "E há tempos queria conhecê-la." O coração de Clara disparou. Ela jamais esperaria que alguém como ele lesse seus livros, muito menos procurasse conhecê-la. Havia algo de proibido naquele encontro, algo que a fazia querer saber mais sobre aquele homem misterioso, mesmo quando a razão gritava para que fosse cautelosa. "Pode me chamar de Miguel," disse ele, estendendo a mão. E, naquele toque, Clara sentiu algo que há muito estava ausente em sua vida: desejo puro, avassalador. Clara recostou-se suavemente na cadeira, tentando recuperar o fôlego que, de repente, parecia escapar com facilidade absurda. As pontas dos dedos ainda formigavam por causa do aperto de mão firme, mas não desconfortável, de Miguel. O sorriso dele era disfarçado, como se soubesse o efeito que tinha sobre ela – e gostasse disso. “Então, Miguel,” ela começou, esforçando-se para manter a compostura. “O que exatamente em meus livros chamou sua atenção? Espero que não tenha sido apenas a capa.” Miguel riu baixo, e Clara sentiu o som percorrer seu corpo como um acorde bem afinado. Ele apoiou o cotovelo na mesa, inclinando-se um pouco mais para perto. “Você tem razão. As capas são interessantes, mas é o que está dentro que me fascina. Sua escrita tem... uma intensidade que ressoa. É cru, mas elegante. Parece que você conhece as partes mais sombrias das pessoas e não tem medo de explorá-las.” Clara piscou, surpresa com a profundidade da análise. “Você parece ter pensado bastante nisso”, provocou, tentando disfarçar o rubor que subia por seu rosto. “Está tentando me impressionar?” “Se eu disser que sim, estragaria a magia?” Ele arqueou uma sobrancelha, com um sorriso que era ao mesmo tempo despretensioso e perigosamente sedutor. Ela não conseguiu evitar uma risada. “Talvez. Ou talvez só confirme que você é bom nisso.” Miguel leu o livro novamente, tamborilando os dedos na capa como se refletisse sobre algo. “Mas me diga, Clara... Essas partes sombrias que você escreve, tão reais e viscerais... São puramente imaginação ou há algo mais?” Clara sentiu o estômago revirar, mas não de maneira desagradável. A pergunta era direta, quase íntima, mas de alguma forma não parecia invasiva. Miguel tinha uma habilidade peculiar de tornar o que poderia ser desconfortável em algo instigante. Ela inclinou-se para a cabeça, observando-o com olhos curiosos. “Você sempre é assim?”, perguntou ela, evitando a pergunta dele por um momento. “Assim como?” Miguel retrucou, inclinando-se para frente, com um sorriso que parecia saber exatamente oque ela queria. Ele deu de ombros, mas seus olhos não desviaram dos dela. “Acredito que são as partes mais honestas. É ali que as pessoas revelam quem realmente são”, completou Miguel, com a voz grave e controlada, como se estivesse afirmando um fato universal. Clara inclinou-se um pouco para frente, cruzando os braços sobre a mesa. “Então, você acha que me conhece só porque leu meus livros?” Miguel riu, baixo e profundo, e balançou a cabeça. “Conhecer? Não. Mas acho que você deixa algumas pistas. Talvez mais do que imagine.” Ela arqueou uma sobrancelha, intrigada. “E o que você acha que sabe sobre mim, Miguel?" Ele segurou o olhar dela, um brilho desafiador em seus olhos. “Acho que você é boa em esconder o que sente, mas escreve o que não consegue dizer em voz alta. Certo?" Por um segundo, Clara não respondeu. Não porque ele estava errado, mas porque estava certo demais. Ela desviou o olhar, um leve sorriso surgindo em seus lábios. “Você é perigoso, sabia? Desse jeito, pode acabar me conhecendo mais do que deveria.” Miguel deu um gole no café, relaxando na cadeira. “Não me parece tão ruim assim. Talvez você precise de alguém que você conheça melhor.” Clara abriu a boca para responder, mas foi interrompida pelo alarme discreto de seu telefone. Olhou para a tela e suspirou. “Eu preciso ir.” Miguel pareceu decepcionado por um momento, mas logo o sorriso voltou. “Foi um prazer te conhecer, Clara. Espero te ver novamente.” Ela se levantou, recolhendo seu caderno e o casaco. Antes de sair, olhou para ele uma última vez, com um sorriso minimalista provocador. “Se você continuar lendo meus livros, quem sabe?” Miguel apenas a esperou sair, o som da porta do café se fechando sendo abafado pela chuva lá fora. No entanto, ele já sabia: aquilo não seria a última vez.Clara não conseguia parar de pensar no estranho encontro da tarde passada. Miguel, com seu charme enigmático e olhar hipnotizante, parecia ter deixado uma marca indelével nela. A noite foi longa, repleta de pensamentos inquietos e fragmentos de diálogos imaginários. Quando o sol finalmente rompeu o horizonte, ela sabia que precisava focar.Mas o destino tinha outros planos.Estava debruçada sobre o computador, revisando um capítulo de seu novo romance, quando a campainha do apartamento tocou. Não era comum receber visitas, ainda mais tão cedo. Clara levantou-se, curiosa, e abriu a porta apenas para encontrar um pequeno envelope dourado sobre o capacho.Sem remetente. Apenas seu nome, escrito em uma caligrafia elegante e firme.Intrigada, ela abriu o envelope. Dentro, havia um convite minimalista com um endereço e horário para aquela mesma noite. Abaixo, uma assinatura curta: Miguel Duarte.Clara hesitou. Qualquer pessoa em seu lugar descartaria o convite, mas algo na memória de seus o
Clara não conseguiu tirar Miguel de sua mente. Mesmo depois de voltar para o conforto do seu apartamento, sozinha com o silêncio e as paredes que conheciam seus segredos, ela não conseguia parar de pensar nele. A noite havia sido uma mistura de encantamento e confusão, e seu coração ainda batia mais rápido sempre que lembrava de seu toque, da suavidade com que ele a conduziu pela praça, e daquela última troca de olhares, carregada de intenções não ditas.Ela tentou se concentrar no seu livro, mas as palavras se desfaziam diante de seus olhos, como se as páginas estivessem falando de algo muito distante, enquanto ela mesma se afundava em um mar de pensamentos sobre Miguel. Mas ele ainda estava em sua vida, e, como um imã, parecia atraí-la a cada instante.O telefone sobre a mesa de café vibrou, interrompendo sua reverie. Era uma mensagem de Miguel."Clara, me permita a chance de lhe mostrar algo mais. Eu gostaria de passar mais tempo com você. Que tal amanhã, no mesmo lugar?"Ela olhou
O toque de Miguel foi como um choque elétrico que percorreu cada centímetro do corpo de Clara. Ele estava tão perto que ela podia sentir sua respiração, quente e constante, contra sua pele. Seu coração batia como um tambor, e todas as suas defesas, meticulosamente construídas ao longo dos anos, começaram a desmoronar."Clara..." Miguel sussurrou novamente, sua voz carregada de desejo, mas também de uma angústia que ela não conseguia decifrar.Por um instante que pareceu uma eternidade, Clara sentiu-se atraída para ele como uma mariposa para a chama. Mas algo em seu interior gritou para que parasse. Não era medo – era a intuição de que havia algo de errado, algo que ele ainda não estava revelando."Miguel, eu..." ela começou, mas suas palavras foram interrompidas quando ele se afastou abruptamente, como se tivesse percebido a mesma linha invisível que ela sentira."Desculpe," disse ele, passando a mão pelos cabelos em um gesto nervoso. "Eu não deveria ter feito isso. Não quero que você
A noite em que Miguel a deixou sozinha na orla parecia se repetir na mente de Clara como um filme antigo, cheio de falhas e interrupções. Ela sabia que havia algo mais naquelas palavras dele, algo que ele ainda não conseguira ou não quisera revelar. E, mesmo assim, sentia-se puxada para ele como nunca antes.Durante os dias seguintes, ela tentou se concentrar em seu trabalho, mas a página em branco no ecrã do computador parecia zombar dela. Sua mente estava presa em uma tempestade emocional, dividida entre o desejo de descobrir mais sobre Miguel e o medo de se afundar em algo que não conseguiria controlar.Na terceira noite, quando finalmente decidiu que precisava se distanciar, o som da campainha quebrou o silêncio. O coração dela disparou. A esta hora, só podia ser ele.Clara abriu a porta e encontrou Miguel parado ali, vestido de forma casual, mas com a mesma intensidade no olhar que a deixava sem chão. Ele segurava uma garrafa de vinho na mão e um sorriso hesitante no rosto."Não
Clara encarou a mensagem no ecrã do telefone, o coração disparado. As palavras eram tão simples quanto perturbadoras: "Cuidado com quem você confia, Clara. Ele não é quem você pensa."Ela releu várias vezes, como se as letras pudessem mudar, como se algo pudesse oferecer mais contexto. O número era desconhecido, e não havia nenhum indicativo de quem poderia tê-la enviado. Sentindo-se vulnerável, Clara trancou a porta e colocou o telefone sobre a mesa.Tudo no encontro com Miguel parecia mais intenso agora, como se cada palavra dita ou gesto feito tivesse ganhado um novo significado. Quem estava observando? E por quê?Na manhã seguinte, Clara tentou retomar a rotina. Escreveu algumas páginas, mas as palavras pareciam desconexas, vazias. A tensão da noite passada ainda pairava sobre ela, e o pensamento de Miguel não saía de sua cabeça.Por volta do meio-dia, decidiu que precisava confrontá-lo. Pegou o telefone e ligou para o número que ele havia deixado no cartão."Clara," respondeu Mig
O Café Aurora era um pequeno refúgio escondido no centro da cidade, com cadeiras de madeira desgastadas e uma luz suave que passava pelos vitrais coloridos. Clara chegou pontualmente, mas a sensação de desconforto a acompanhava desde o momento em que decidiu ir.O lugar estava relativamente vazio para a tarde, exceto por um homem sentado em um canto isolado. Ele usava um chapéu escuro e um casaco que parecia grande demais para o clima ameno. Clara reconheceu-o pela descrição da mensagem enviada na noite anterior: "Estarei no canto esquerdo, com um chapéu cinza."Clara respirou fundo e aproximou-se hesitante. O homem ergueu o olhar assim que ela parou ao lado da mesa. Seus olhos eram penetrantes, mas havia algo familiar neles, como se conhecesse sua história antes mesmo de ouvi-la."Clara Monteiro?" perguntou ele, com a voz baixa e firme."Sim," respondeu ela, tentando soar confiante."Por favor, sente-se. Temos muito a conversar."Ela obedeceu, mas manteve os braços cruzados, como se
Naquela noite, enquanto Clara tentava dormir, flashes de seu passado a assombravam como se estivessem vivos. Não era apenas Miguel que a perturbava, mas a sensação de que, por toda a sua vida, ela havia esperado por algo – ou alguém – que finalmente desse sentido às histórias que escrevia.Clara cresceu em uma pequena cidade, cercada por colinas e pouco mais. Sua infância foi marcada por uma educação rígida. Seus pais, práticos e reservados, acreditavam que sonhos eram uma distração perigosa. Sempre que Clara mencionava o desejo de ser escritora ou falava sobre paixões, sua mãe respondia com a mesma frase: "Paixão é para os fracos. A vida precisa de equilíbrio."Ela nunca conhecera o tipo de amor que descrevia em seus livros. O mais próximo disso fora um relacionamento monótono com Pedro, um contador que ela namorara durante a universidade. Ele era gentil, mas previsível. Com ele, não havia adrenalina, nem a sensação de perder o chão. Quando terminaram, Clara sentiu alívio, mas também
O Encontro no CaféQuando Clara chegou ao café, Miguel já estava lá, sentado à mesma mesa em que haviam se conhecido. Ele parecia distraído, o olhar perdido na chuva que batia contra o vidro."Você veio," disse ele, levantando-se assim que a viu e caminhando em sua direção."Eu precisava vir," respondeu Clara, sentando-se à sua frente.Por um momento, nenhum dos dois falou. O som da chuva preenchia o silêncio entre eles, até que Miguel suspirou profundamente como se estivesse se preparando para conversa que viria em seguida."Clara, eu sei que te dei motivos para desconfiar de mim. Mas preciso que saiba que, desde o início, tudo o que fiz foi para proteger você."Ela o encarou, seus olhos buscando qualquer sinal de mentira. "Você quer que eu confie em você, mas como posso? Cada vez que descubro algo sobre o seu passado, parece que há mais segredos escondidos."Miguel inclinou-se para frente, sua voz baixa e séria. "Eu já te disse que fiz coisas das quais me arrependo. Mas não quero ma