A noite em que Miguel a deixou sozinha na orla parecia se repetir na mente de Clara como um filme antigo, cheio de falhas e interrupções. Ela sabia que havia algo mais naquelas palavras dele, algo que ele ainda não conseguira ou não quisera revelar. E, mesmo assim, sentia-se puxada para ele como nunca antes.
Durante os dias seguintes, ela tentou se concentrar em seu trabalho, mas a página em branco no ecrã do computador parecia zombar dela. Sua mente estava presa em uma tempestade emocional, dividida entre o desejo de descobrir mais sobre Miguel e o medo de se afundar em algo que não conseguiria controlar. Na terceira noite, quando finalmente decidiu que precisava se distanciar, o som da campainha quebrou o silêncio. O coração dela disparou. A esta hora, só podia ser ele. Clara abriu a porta e encontrou Miguel parado ali, vestido de forma casual, mas com a mesma intensidade no olhar que a deixava sem chão. Ele segurava uma garrafa de vinho na mão e um sorriso hesitante no rosto. "Não consegui ficar longe," disse ele, antes que ela pudesse falar qualquer coisa. Clara abriu a porta, permitindo que ele entrasse. O apartamento estava mergulhado em uma luz suave, quase intimista, e por um instante, ela sentiu o peso do momento cair sobre eles. "Você deveria," respondeu ela, fechando a porta atrás de si. "Miguel, eu não sei onde isso vai nos levar, e... não sei se estou pronta para algo assim." Ele assentiu, aproximando-se devagar. "Eu sei. E eu não quero te pressionar. Só precisava te ver. Te explicar mais sobre mim." Eles sentaram no sofá, e Miguel serviu o vinho antes de começar a falar. Sua voz estava mais baixa, como se cada palavra exigisse um esforço enorme. "Eu cresci em um mundo complicado, Clara. Um mundo onde escolhas fáceis não existiam. Meu pai morreu quando eu era jovem, e minha mãe fez o possível, mas... acabamos nos envolvendo com pessoas erradas. E essas pessoas me ensinaram a sobreviver, mas a um custo alto." Clara observava cada movimento dele, cada expressão. Miguel parecia vulnerável, um lado dele que ela não tinha visto antes. "Eu fiz coisas das quais me arrependo. Coisas que me perseguem até hoje. E, embora eu tenha tentado sair disso, o passado não me deixa ir tão facilmente. Eles ainda me monitoram. Ainda me prendem." "Quem são 'eles'?" perguntou Clara, incapaz de conter a curiosidade. Miguel hesitou. "É complicado. Digamos que são pessoas com muito poder e poucas escrúpulos. Eu tentei me afastar, mas nunca é tão simples. E agora, com você... eu tenho medo de que eles usem isso contra mim. Ou contra você." Clara sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Havia algo terrivelmente sério naquelas palavras, e pela primeira vez, ela percebeu o verdadeiro peso do perigo que o cercava. "Por que você simplesmente não sai disso? Não vai embora?" Ele sorriu, mas era um sorriso amargo. "Eu queria. Mas, no momento, sair não é uma opção. Ainda não." A conversa ficou mais leve por um tempo, enquanto Miguel fazia questão de desviar o foco do que havia confessado. Eles falaram sobre o trabalho de Clara, sobre como ela encontrava inspiração para suas histórias. Ele parecia genuinamente interessado, e, por um breve momento, Clara conseguiu esquecer os perigos que ele representava. Quando o relógio marcou quase meia-noite, Miguel se levantou. "Eu devo ir. Já tomei muito do seu tempo," disse ele, mas a relutância era evidente em sua voz. Clara acompanhou-o até a porta. Quando ele virou-se para se despedir, o impulso foi mais forte do que a razão. Ela o puxou para mais perto e, antes que pudesse pensar duas vezes, seus lábios tocaram os dele. O beijo foi intenso, carregado de tudo o que haviam evitado até aquele momento. Miguel a segurou com firmeza, como se temesse que ela fosse desaparecer. Era como se, naquele breve instante, o mundo inteiro tivesse parado. Mas quando se separaram, o olhar nos olhos dele era mais sombrio do que nunca. "Isso só torna tudo mais difícil," murmurou ele, sua voz quebrada. "Eu não me importo," respondeu Clara, com uma firmeza que a surpreendeu. Miguel a observou por mais alguns segundos, como se estivesse tentando memorizar cada detalhe do rosto dela, antes de finalmente virar-se e sair pela porta. Depois que ele foi embora, Clara sentiu uma onda de emoções conflitantes. O beijo havia selado algo entre eles, mas também havia deixado claro que não seria fácil. Miguel era um homem quebrado, preso em um mundo que ela mal começava a entender. E, no fundo, Clara sabia que tinha acabado de dar um passo que não teria volta. De repente, o telefone dela vibrou. Era uma mensagem de um número desconhecido: "Cuidado com quem você confia, Clara. Ele não é quem você pensa." O medo a atingiu como uma onda fria, mas, ao mesmo tempo, uma determinação silenciosa começou a crescer dentro dela. Ela precisava descobrir a verdade – sobre Miguel, sobre seu passado, e sobre as pessoas que pareciam estar observando cada movimento dela.Clara encarou a mensagem no ecrã do telefone, o coração disparado. As palavras eram tão simples quanto perturbadoras: "Cuidado com quem você confia, Clara. Ele não é quem você pensa."Ela releu várias vezes, como se as letras pudessem mudar, como se algo pudesse oferecer mais contexto. O número era desconhecido, e não havia nenhum indicativo de quem poderia tê-la enviado. Sentindo-se vulnerável, Clara trancou a porta e colocou o telefone sobre a mesa.Tudo no encontro com Miguel parecia mais intenso agora, como se cada palavra dita ou gesto feito tivesse ganhado um novo significado. Quem estava observando? E por quê?Na manhã seguinte, Clara tentou retomar a rotina. Escreveu algumas páginas, mas as palavras pareciam desconexas, vazias. A tensão da noite passada ainda pairava sobre ela, e o pensamento de Miguel não saía de sua cabeça.Por volta do meio-dia, decidiu que precisava confrontá-lo. Pegou o telefone e ligou para o número que ele havia deixado no cartão."Clara," respondeu Mig
O Café Aurora era um pequeno refúgio escondido no centro da cidade, com cadeiras de madeira desgastadas e uma luz suave que passava pelos vitrais coloridos. Clara chegou pontualmente, mas a sensação de desconforto a acompanhava desde o momento em que decidiu ir.O lugar estava relativamente vazio para a tarde, exceto por um homem sentado em um canto isolado. Ele usava um chapéu escuro e um casaco que parecia grande demais para o clima ameno. Clara reconheceu-o pela descrição da mensagem enviada na noite anterior: "Estarei no canto esquerdo, com um chapéu cinza."Clara respirou fundo e aproximou-se hesitante. O homem ergueu o olhar assim que ela parou ao lado da mesa. Seus olhos eram penetrantes, mas havia algo familiar neles, como se conhecesse sua história antes mesmo de ouvi-la."Clara Monteiro?" perguntou ele, com a voz baixa e firme."Sim," respondeu ela, tentando soar confiante."Por favor, sente-se. Temos muito a conversar."Ela obedeceu, mas manteve os braços cruzados, como se
Naquela noite, enquanto Clara tentava dormir, flashes de seu passado a assombravam como se estivessem vivos. Não era apenas Miguel que a perturbava, mas a sensação de que, por toda a sua vida, ela havia esperado por algo – ou alguém – que finalmente desse sentido às histórias que escrevia.Clara cresceu em uma pequena cidade, cercada por colinas e pouco mais. Sua infância foi marcada por uma educação rígida. Seus pais, práticos e reservados, acreditavam que sonhos eram uma distração perigosa. Sempre que Clara mencionava o desejo de ser escritora ou falava sobre paixões, sua mãe respondia com a mesma frase: "Paixão é para os fracos. A vida precisa de equilíbrio."Ela nunca conhecera o tipo de amor que descrevia em seus livros. O mais próximo disso fora um relacionamento monótono com Pedro, um contador que ela namorara durante a universidade. Ele era gentil, mas previsível. Com ele, não havia adrenalina, nem a sensação de perder o chão. Quando terminaram, Clara sentiu alívio, mas também
O Encontro no CaféQuando Clara chegou ao café, Miguel já estava lá, sentado à mesma mesa em que haviam se conhecido. Ele parecia distraído, o olhar perdido na chuva que batia contra o vidro."Você veio," disse ele, levantando-se assim que a viu e caminhando em sua direção."Eu precisava vir," respondeu Clara, sentando-se à sua frente.Por um momento, nenhum dos dois falou. O som da chuva preenchia o silêncio entre eles, até que Miguel suspirou profundamente como se estivesse se preparando para conversa que viria em seguida."Clara, eu sei que te dei motivos para desconfiar de mim. Mas preciso que saiba que, desde o início, tudo o que fiz foi para proteger você."Ela o encarou, seus olhos buscando qualquer sinal de mentira. "Você quer que eu confie em você, mas como posso? Cada vez que descubro algo sobre o seu passado, parece que há mais segredos escondidos."Miguel inclinou-se para frente, sua voz baixa e séria. "Eu já te disse que fiz coisas das quais me arrependo. Mas não quero ma
O silêncio que se seguiu à promessa de Miguel parecia carregado de algo mais, como se ele tivesse mais a dizer, mas estivesse lutando para encontrar as palavras certas. Clara sentiu isso e decidiu pressioná-lo."Há mais, não é?" perguntou ela, sua voz baixa, mas firme. "Se vamos fazer isso juntos, Miguel, quero tudo. Nada de segredos."Ele desviou o olhar, visivelmente desconfortável. Passou as mãos pelo cabelo e suspirou profundamente antes de encará-la novamente."Há algo que você precisa saber... sobre como eu te encontrei," começou ele, escolhendo cada palavra com cuidado. "Não foi por acaso, Clara. Eu sabia quem você era antes mesmo de entrar naquele café."O coração dela acelerou. "O que quer dizer com isso?"Miguel inclinou-se para frente, seus olhos intensos fixos nos dela. "Há alguns meses, encontrei um dos seus livros por acaso. Foi deixado em um apartamento que eu... precisei visitar a trabalho. Não sei como ele foi parar lá, mas, enquanto esperava, comecei a ler. E, Clara,
A noite estava envolta em uma calma incomum, a chuva que antes castigava as ruas agora transformada em um leve gotejar que ecoava nas calçadas molhadas. Clara sentia o ar úmido contra sua pele enquanto Miguel a acompanhava até a porta do apartamento. Os dois haviam caminhado lado a lado, suas conversas pontuadas por silêncios carregados de tensão.Quando chegaram à entrada, Clara virou-se para ele, com as chaves na mão. Seus olhos encontraram os dele, e o mundo pareceu parar."Quer entrar?" A pergunta saiu mais como um sussurro do que uma decisão.Miguel hesitou por um instante, mas então assentiu. "Só se você quiser."Clara não disse mais nada. Virou-se, destrancou a porta e abriu espaço para que ele passasse. Assim que entrou, Miguel tirou o casaco molhado e pendurou-o no cabideiro ao lado da porta. O ambiente estava quente e acolhedor, iluminado pela luz suave de um abajur.Clara fechou a porta, mas permaneceu de costas para ele por um momento, tentando controlar a tempestade de em
Clara acordou com a luz suave da manhã filtrando-se pelas cortinas. Por um momento, tudo parecia tranquilo, quase perfeito. A presença quente de Miguel ao seu lado era um lembrete do que havia acontecido na noite anterior. Ele dormia profundamente, o peito subindo e descendo em um ritmo sereno, e Clara ficou observando-o por um instante, como se quisesse memorizar cada detalhe daquele momento.Mas, enquanto o silêncio preenchia o espaço, a realidade começou a se insinuar. Apesar da conexão intensa e do carinho genuíno que sentira, Clara sabia que o mundo fora daquele quarto ainda estava repleto de incertezas e perigos.Ela levantou-se silenciosamente, puxando um roupão para cobrir o corpo e dirigiu-se à cozinha. Precisava de café – e de tempo para organizar seus pensamentos.Enquanto a cafeteira trabalhava, Clara sentiu um peso crescer em seu peito. A entrega emocional e física a Miguel fora tão natural, tão intensa, que ela mal reconhecia a pessoa que havia sido na noite anterior. Se
Enquanto Miguel segurava as mãos de Clara, tentando acalmá-la com sua promessa de protegê-la, o som do telefone dele cortou o silêncio, vibrando sobre a mesa. Ele olhou para o aparelho, a mandíbula tensionando ao ver o número no visor."Eu preciso atender," disse ele, soltando as mãos dela com relutância.Clara assentiu, observando enquanto ele se afastava para o quarto, levando o telefone. Fechou a porta atrás de si, mas mesmo assim, Clara conseguia ouvir o tom abafado de sua conversa, carregado de tensão.Os minutos que se seguiram pareciam uma eternidade. Ela permaneceu na cozinha, tentando controlar a ansiedade que crescia em seu peito. Quando Miguel finalmente voltou, seu rosto estava mais sombrio do que nunca."Eu preciso ir," disse ele, sem rodeios."O que quer dizer com isso?" perguntou Clara, sentindo o coração disparar."Acabei de receber uma ordem" explicou ele, passando a mão pelo cabelo em um gesto de frustração. "Eles querem que eu viaje para Paris amanhã. É um trabalho