AMÉLIA
O sol ainda nem tinha dado as caras quando acordei naquela manhã fria, mas mesmo assim senti que o dia seria um dia abençoado. Sempre gostei dessas manhãs tranquilas, quando o mundo ainda está despertando e tudo parece mais calmo.
Vesti minha camiseta de voluntária, combinei com a saia jeans longa e joguei a mochila cheia de suprimentos nas costas. Meu destino era a comunidade onde a igreja realizaria mais uma ação social. O caminho era esburacado, cheio de subidas e ladeiras, mas eu estava feliz. Minha mente estava focada na missão do dia: ajudar, servir, fazer a diferença, nem que fosse só um pouco.
Ajudar as pessoas era mais do que uma missão, era uma forma de demonstrar amor. Minha mãe sempre dizia que um coração generoso nunca volta vazio, e eu acreditava nisso com cada parte de mim.
Meus olhos passeavam pelos barracos humildes, e eu imaginava famílias inteiras lutando todos os dias, sonhando com um futuro melhor. Se eu pudesse, faria muito mais por eles.
Ao chegar à praça central da comunidade, encontrei os outros voluntários já reunidos, descarregando caixas de um caminhão e organizando as mesas de distribuição.
Foi quando meus olhos encontraram Liliana.
Ela era uma colega da igreja que parecia nunca estar triste, sempre sorridente. Talvez eu devesse ser mais assim, mais aberta, mais confiante. Mas eu sempre fui reservada, sempre tive medo de me aproximar demais e acabar me machucando.
— Bom dia, Liliana! — cumprimentei, sorrindo.
— Bom dia, Amélia! — Ela me olhou com os olhos brilhantes. — Graças a Deus, conseguimos muitas doações hoje!
Fazíamos parte do grupo de voluntariado há alguns anos, mas nuncaa tivemos um contato mais próximo. Enquanto ajudávamos a organizar as roupas doadas, Liliana puxou assunto:
— Você tá nesse grupo há quanto tempo, Amélia?
— Uns três anos, desde que me mudei pro Rio. — Respondi enquanto dobrava uma blusa de frio e a colocava sobre a mesa de distribuição.
Ela sorriu.
— Sempre te vi dedicada, sabe? Mas nunca tivemos a chance de conversar direito. Eu sempre quis ser sua amiga, mas achei que ia te assustar com meu jeito... expansivo. — Ela riu, dando de ombros. — Às vezes, eu falo demais, e sei que nem todo mundo gosta.
Soltei uma risadinha.
— Se eu soubesse disso, teria me aproximado antes.
— Eu sempre quis te conhecer melhor, mas você parecia meio na sua, sabe?
Pisquei algumas vezes, refletindo sobre aquilo. Sim, eu sempre fui mais reservada, mais fechada no meu próprio mundo. Mas, no fundo, também sentia falta de ter uma amiga para quem eu pudesse contar tudo.
Ela estendeu a mão.
— Que tal, a partir de hoje, sermos amigas de verdade?
Segurei sua mão e assenti.
— Amigas.
Eu nunca tinha tido uma amiga antes.
Ela apertou minha mão com força e depois me puxou para um abraço apertado, me pegando de surpresa.
— Agora você tá lascada, viu? Porque eu sou grudenta! — brincou, rindo.
Ri junto com ela. Talvez eu não precisasse mais me sentir tão sozinha.
Seguimos com o trabalho, montando as cestas básicas. O padre Marcos, líder do grupo, veio nos dar palavras de encorajamento.
— Muito bem, meus jovens. Tenho orgulho de vocês! Cada pequeno ato de bondade conta.
Sorri, concordando com a cabeça.
Mas essa paz durou pouco.
No meio da distribuição das cestas, senti uma sensaçãoo estranha, como se allguém estivesse me olhando.
Meu corpo enrijeceu.
Levantei os olhos devagar e vi um homem alto e musculoso, parado do outro lado da praça. Ele não fazia nada além de me observar.
Os olhos dele eram frios, intensos, calculistas. Me analisavam como se enxergassem cada pedaço de mim, como se me despisse sem precisar tocar.
Um arrepio subiu minha espinha.
O sol batia sobre sua pele bronzeada, destacando as tatuagens espalhadas pelos braços, pescoço e mãos.
Por que ele estava me olhando daquele jeito?
— O que…? — murmurei para mim mesma, sentindo um nó na garganta.
Engoli em seco, tentando afastar a sensação estranha.
— Por que ele tá me olhando assim? — sussurrei, sentindo meu coração acelerar.
Abaixei a cabeça e tentei me concentrar no que estava fazendo, mas minha mente não colaborava.
Sem resistir, ergui os olhos outra vez.
Ele ainda estava lá.
Ainda me observava.
Meu peito subiu e desceu rapidamente, e minhas mãos apertaram a lateral da saia, nervosa.
Liliana percebeu minha tensão e seguiu meu olhar.
— Não olha muito, Amélia. — Ela abaixou o tom de voz. — Esse é o Pesadelo.
Arregalei os olhos.
— Quem?
— Ele comanda o morro. Melhor manter distância.
Pesadelo.
O apelido fez minha pele arrepiar. Soava ameaçador, mas, ao mesmo tempo, me deixava intrigada.
Engoli em seco e tentei não olhar mais. Mas falhei.
O olhar dele não vacilava. Não desviava.
— Por que ele tá me olhando tanto, Liliana? — murmurei.
Liliana franziu o cenho, sua expressão ficando mais séria.
— É estranho… — ela disse. — Ele nunca aparece aqui assim, do nada.
Meu estômago se revirou.
— Como assim?
— O Pesadelo não é de ficar andando por aí à toa. Se ele tá aqui, deve ter um motivo.
Arregalei os olhos.
— Que motivo?
Ela deu de ombros, mas seu olhar carregava um alerta silencioso.
— Não sei, mas seja lá qual for, não pode ser coisa boa. — disse. — É melhor você tomar cuidado, Amélia. Não dá confiança e, pelo amor de Deus, não encara ele.
Engoli em seco, desviando o olhar imediatamente. Mas mesmo sem ver, eu podia sentir o olhar dele queimando a minha pele.
— Você fala como se ele fosse perigoso…
Ela soltou uma risada curta, sem humor.
— Amélia, você não faz ideia. Esse cara é perigoso.
AMÉLIAEra difícil imaginar alguém com aquele semblante implacável atendendo por um nome tão... comum.— Arthur... — murmurei para mim mesma, testando o nome em meus lábios.Liliana me observava com uma mistura de preocupação e curiosidade.— Você tá falando o nome dele por quê? — ela perguntou, franzindo a testa.— Só achei curioso. — dei de ombros, mas minha mente continuava presa naquilo.— Amélia, você tá brincando com fogo. — Ela alertou nem um pouco contente com aquilo. — Não é um cara com quem você deva ter "curiosidades".Assenti, tentando ignorar a presença inquietante de Arthur. Mas minha mente não parava de questionar.O que teria levado um homem chamado Arthur a se tornar o Pesadelo?— Você já conversou com ele? — perguntei, minha curiosidade não deixando espaço para o bom senso.Liliana me olhou como se eu estivesse louca.— Claro que não, Amélia. Não se deve conversar com ele. Ele é perigoso. Melhor manter distância.— Mas... você sabe alguma coisa sobre ele?Liliana sus
AMÉLIAJá estava escuro quando voltei da ação social, me sentindo exausta, mas satisfeita.Passei o dia ajudando a distribuir alimentos e brinquedos para as crianças da comunidade. No entanto, uma sensação de inquietação ainda pairava sobre mim, a presença de Arthur ainda fresca na minha mente.É melhor eu tirar ele da cabeça. Afinal, eu não voltaria a vê-lo nunca.Ao chegar em casa, fui recebida pelo olhar severo da minha mãe, Jussara, e pelo semblante carrancudo do meu padrasto, Agenor.— Onde você estava até essa hora, Amélia? — perguntou, as mãos na cintura, o rosto marcado por linhas de preocupação e frustração.— Eu estava na ação social com o pessoal da igreja, mãe. — respondi, tentando manter a calma. — Eu falei com a senhora ontem.— Você devia passar mais tempo em casa e sair apenas conosco. — Agenor acrescentou, a voz grave e autoritária. — O mundo está perigoso demais, ainda mais para uma jovem como você, Amélia.Eu sentia nojo em escutar a voz de Agenor.Será que minha mã
AMÉLIA— O Agenor me disse que você tá muito estressada e que anda muito nervosa, filha. — minha mãe começou, me observando. — Ele acha que talvez seja melhor você passar um tempo em casa, longe dessas ações sociais.Claro que Agenor diria algo assim. Ele estava tentando me afastar de tudo que me fazia feliz, me isolando de tudo e de todos.— Eu só quero ajudar as pessoas. Isso me faz feliz. — tentei explicar, limpando o resto das lágrimas.Minha mãe suspirou.— Eu entendo, Amélia. Mas você precisa entender que estamos preocupados com a sua segurança. — ela insistiu, colocando a mão sobre a minha. O gesto deveria ser reconfortante, mas me senti ainda mais sufocada. — E com seu futuro. Você precisa pensar em se preparar para um bom casamento, ter uma família. Não pode se distrair com essas coisas.Como se tudo que importasse fosse casar e seguir o caminho que esperavam de mim.— Mas, mãe, as ações são importantes para mim. — repliquei, frustrada.— Eu sei, mas você precisa confiar em n
AMÉLIADesde o dia em que vi Pesadelo na ação social, sabia que minha vida não seria mais a mesma. Ele parecia surgir em todos os lugares que eu frequentava na comunidade. Liliana estava cada vez mais preocupada e insistia que eu tomasse cuidado, mas havia algo dentro de mim que não conseguia ignorar a presença de Arthur.Ele estava lá quando ajudávamos a reconstruir a escola comunitária, observando de longe. Ele aparecia quando distribuíamos alimentos nas ruas mais carentes, sempre à distância, mas nunca longe demais.Liliana e eu conversávamos frequentemente sobre ele. Ela estava cada vez mais preocupada com minha segurança.Porém, por mais que fosse estranho, eu não tinha tanto medo quanto eu deveria ter de Arthur.— Amélia, você precisa tomar cuidado com esse homem. — ela dizia repetidamente.— Eu sei, Liliana. Mas não posso evitar o fato de que ele está sempre por perto. Ele não fez nada até agora, apenas observa.— Isso é o que me preocupa, amiga...Eu sabia que Liliana tinha r
AMÉLIAQuando cheguei em casa após mais um dia de trabalho na comunidade, encontrei Agenor sentado na sala, o olhar frio fixo em mim. Sabia que ele estava esperando uma oportunidade para me intimidar, e hoje não seria diferente.— Está tarde, Amélia. Onde você estava? — ele perguntou, sua voz carregada de sarcasmo.— Estava na ação social, ajudando quem precisa — respondi, tentando manter a calma.Ele levantou-se devagar e caminhou até mim, seus olhos brilhando com uma malícia que me deixava enjoada.— Ação social... — ele repetiu, cada palavra carregada de desdém. — Sempre a mesma historinha... Só a Jussara para acreditar nesse seu papinho.— Não estou me mentindo, Agenor. Estou ajudando as pessoas. Algo que você nunca entenderia — rebati, sem conseguir esconder minha irritação.Ele riu, um som seco e cruel, e deu mais um passo na minha direção, me encurralando contra a parede.— Você acha que é melhor que todo mundo, não é? A boa samaritana, a menina perfeita. Mas eu sei quem você r
AMÉLIAEu estava deitada na cama, soluçando baixinho enquanto tentava entender tudo o que havia acontecido. Cada lágrima que escapava dos meus olhos era como um peso a mais sobre meus ombros já cansados. A dor da discussão com a minha mãe ainda ressoava na minha mente.Eu não conseguia acreditar que ela não acreditava em mim, que ela estava disposta a me expulsar de casa em vez de ouvir o que eu tinha a dizer. Eu me sentia traída, magoada e incrivelmente sozinha.Eu não tinha ninguém em quem me apoiar. Todos os que eu conhecia faziam parte da igreja que minha mãe, Agenor e eu frequentávamos. Aos olhos de todos, erámos a família ideal, sem defeitos, sem problemas... Era tudo mentira.Pedir ajuda a algum deles não ia adiantar.A discussão com minha mãe foi um golpe profundo. Sua recusa em acreditar em mim, sua escolha em apoiar Agenor ao invés de me proteger, me deixava em um estado de desespero.Eu sempre pensei que minha mãe estaria ao meu lado, não importava o que acontecesse, mas su
AMÉLIAEu cheguei à comunidade com um nó apertado na garganta, os olhos ainda inchados de tanto chorar. O peso da discussão com minha mãe e Agenor ainda estava fresco em minha mente, uma ferida aberta que doía profundamente. Ao virar a esquina, esbarrei em Pesadelo, acompanhado por um homem que eu já tinha visto algumas vezes na comunidade, sempre ao lado dele. Uma mulher que eu nunca tinha visto antes também estava lá. Pesadelo deixou ela de lado rapidamente quando seus olhos encontraram os meus, percebendo imediatamente a aflição em meu rosto.Eu podia sentir meu coração batendo mais rápido ao vê-lo tão perto de outra mulher, e uma onda de ciúmes e desconforto me invadiu.Quem era ela?Ela era uma mulher esbelta e alta, com cabelos longos e pretos que caíam em ondas até o meio de suas costas. Os seus olhos escuros eram intensos, adornados por cílios longos e curvos, consequência do alojamento que ela tinha. A mulher também tinha lábios cheios e vermelhos, que pareciam sempre pront
[AUTORA]Pesadelo sentiu a mão de Larissa segurando o seu braço, tentando impedir ele de seguir Amélia. Ele se soltou com um movimento brusco, seu semblante endurecido pela frustração e pelo turbilhão de emoções que Amélia despertava nele.— Solta, Larissa. — Sua voz saiu áspera. Ele respirou fundo, tentando controlar a raiva.— Quem é aquela sem sal, Pesadelo?— Não te interessa! — falou alto. — Nunca mais ache que pode ter qualquer tipo de liberdade comigo, caralho! Que porra é essa de "amor", tá ficando maluca? Se enxerga!Larissa recuou, surpresa com a explosão de Pesadelo.— Você tá assim por causa dela? A gente é fixo, eu sou a tua...Pesadelo endureceu seu olhar.— Você não é caralho nenhum, entendeu? E vê se aprende a cuidar mais da tua vida, ou posso fazer você rodar, sua vagabunda. — ameaçou.— Calma aí, cara. — Maicon tentou acalmar ele.Larissa tinha estragado tudo!— Vou dar uma passada na casa da Liliana, Maicon. — avisou Arthur e Maicon apenas assentiu. Ele sabia que aq