CAPÍTULO 4

Juro que estou fazendo um esforço enorme para tentar compreendê-lo, mas está difícil, irmão. Se ausentar por um ano para fazer sabe lá Deus o quê no fim do mundo, não me parece uma decisão que você tomaria. 

Jason Donovan andava de um lado para o outro do escritório exasperado enquanto tentava convencer Colin a desistir de largar tudo para se isolar no meio do mato. 

— Já expliquei meus motivos, porém você e Katie parecem ignorar completamente minha situação — passou as mãos sobre o rosto apoiando os cotovelos sobre a mesa de mogno. 

Nossa situação, Colin. Nossa! Não se esqueça que logo estaremos no mesmo barco — largou o corpo sobre a cadeira à frente da mesa de seu irmão mais velho. 

— Esse é o ponto. Você não consegue entender minha necessidade de sumir por um tempo, porque ainda não passou pela transformação, mas quando chegar a sua hora compreenderá o quão difícil é viver com uma besta invadindo sua mente a cada lua cheia. 

Jason o encarou como se realmente estivesse disposto a entender seu conflito, por isso Colin prosseguiu. 

— Sinto que estou perdendo o controle sobre minhas emoções. Antes conseguia conter os impulsos, mas já tem um tempo que venho perdendo a paciência com facilidade e sinto uma raiva crescente surgir do nada. E, quando isso acontece tenho que me esforçar ao máximo para não perder a consciência e ceder espaço para... você sabe. 

— Isso seria impossível! Papai deixou claro que a transformação só acontece durante o ciclo da lua cheia — rebateu. 

— Jason, nosso pai nunca viveu sequer um ano sem a sua peeira[1], como ele pode ter tanta certeza sobre como nos comportamos longe de nossas companheiras? 

Colin estava certo e Jason sabia que seu ponto era válido, contudo, não existia nenhum registro que comprovasse a teoria do irmão. Portanto, para ele continuava sendo uma loucura a decisão de se afastar da empresa. 

— Vendo por esse lado sou obrigado a te dar razão, mas também precisa considerar que nunca houve sequer um relato a respeito de uma transformação fora da lua cheia. 

— Jason, isto é o que todos dizem, mas sabemos que qualquer verdade sobre essa possibilidade se perdeu há muitos anos quando fomos caçados pelos humanos como animais. 

Eles estavam cientes de que havia sido a intolerância que fizera da humanidade o maior perigo para a sobrevivência de sua espécie. 

— Os humanos tendem a destruir o que não compreendem — Jason lamentou. 

— Não posso dizer que não os entendo, porque aqui entre nós — deu um sorriso de lado — nossa origem é bizarra demais para ser dada como verdade. 

— Colocando nesses termos não posso discordar. Acha que algum dia será possível revelar a verdade sobre nossa existência sem temermos sermos atingidos por uma bala de prata na cabeça? 

— Eu não sei, irmão. A única coisa da qual tenho certeza é de que quando eu morrer vou acertar as contas com o filho da puta do Licaon[2]. Se o desgraçado não tivesse sido um sádico que se divertia matando os viajantes que passavam por Arcádia, Zeus jamais teria tomado conhecimento de sua m*****a existência.

— O imbecil era completamente louco — Jason balançou a cabeça — quem em sã consciência tentaria assassinar Zeus servindo carne humana? 

Os irmãos conheciam muito bem a história por detrás da maldição que os homens de sua família eram obrigados a carregar até o dia em que a morte colocasse um fim aos seus tormentos. 

Se o rei Licaon não tivesse enfurecido Zeus, eles jamais teriam sido amaldiçoados. 

O deus grego ficou tão irado com a atitude do rei de Arcádia que o condenou a viver como um lobo sempre que a lua cheia surgisse no céu, fazendo com que nesse período ele e seus descendentes se transformassem em bestas irracionais para nunca mais ousarem afrontar os deuses. 

Dando origem a lenda sobre lobisomens. 

Um ser metade homem metade lobo, condenado a viver sozinho e longe de seus semelhantes. Caçado nas noites de lua cheia sem piedade, alimentando-se de carne humana para saciar seu lado bestial. 

Mas, no princípio esse não era o nome pelo qual a humanidade os conhecia. Durante anos os descendentes de Licaon foram chamados de licantropos[3], e somente após a Idade Média é que cada nação adotou o seu próprio termo para designar os amaldiçoados. 

— Colin, acha que algum dia você irá encontrar sua companheira? — a pergunta feita em um murmúrio revelava o temor por sua resposta. 

— Não sei. Talvez sim, talvez não, mas se ela realmente existir espero que apareça logo, porque estou cansado de viver esse inferno. 

— É tão ruim assim? 

Colin suspirou pensando em como colocaria em palavras a intensidade do drama que vinha vivenciando nos últimos anos. Jason era seu irmão e merecia a verdade, porque em breve também seria forçado a viver o mesmo dilema. 

— Tente imaginar um dia comum, no qual você está consciente de tudo a sua volta e no segundo seguinte sua mente sofre um apagão, voltando a funcionar somente três dias depois com você completamente nu em meio as próprias fezes e urina, usando uma corrente de prata ao redor do pescoço e sem qualquer lembrança do que ocorreu para estar nesse estado. — Soltou em um único fôlego. 

— Jesus Santíssimo! Isso é horrível — gemeu. 

— Horrível não chega nem perto de descrever como me sinto todas as vezes que volto para o controle de minha mente. 

— Eu pensei que conseguisse manter algo de sua consciência. 

— Infelizmente não. Isso será possível quando, e se eu encontrar minha companheira. 

Jason podia ver a tristeza refletida em seus olhos claros. 

Desde a transformação de Colin ele vinha assistindo o irmão se tornar cada vez mais fechado e sisudo, evitando sair com amigos ou até mesmo se recusando a passar mais tempo com a família. 

Por mais que tentasse não conseguiria imaginar a dimensão de tudo o que Colin estava passando. Não estava em sua pele e talvez nunca descobrisse de fato como tudo isso estava sendo difícil para ele, porque ainda tinha esperança de encontrar sua companheira antes de passar pela transformação. 

Colin era seu ídolo e melhor amigo e se pudesse faria qualquer coisa para ajudá-lo. 

— Você ficará bem sozinho? 

— Claro que sim — Colin piscou tentando aliviar o clima. 

— Então — engoliu em seco antes de prosseguir — tome seu tempo e volte para nós, Colin. Você ainda será o meu irmão e eu sempre irei me preocupar com você. 

Os olhos de Jason estavam marejados porque no fundo ele não desejava aquela separação, mas precisava pensar no bem-estar de seu irmão. 

— Eu vou voltar, Jason. Não estou abandonando vocês, apenas preciso fazer isso por mim... pela minha sanidade. 

Nenhum dos dois ousou dizer mais nada. Havia um acordo tácito entre eles que seria honrado a qualquer preço. Jason ficaria sem seu melhor amigo e Colin sairia em busca de si mesmo. 

Depois que Jason o deixou sozinho, Colin passou um tempo revisando alguns projetos antes de se encontrar com Katie na sala de reuniões. Sabia que era arriscado permanecer na empresa naquele dia, mas sua irmã precisava de sua assinatura nas últimas cláusulas de um contrato milionário. 

— Sinto muito por tê-lo obrigado a vir até aqui, mas temos que enviar esse contrato ainda hoje — ela disse. 

— Tudo bem, ainda é cedo — falou dando um beijo em sua cabeça antes de se sentar para firmar os papéis. 

Quando terminou, Colin estava pronto para voltar à casa, mas antes que se erguesse da cadeira sentiu um impacto violento em sua cabeça. Como se acabasse de ser atingido por um taco de beisebol. 

— Está tudo bem? — A preocupação na voz de sua irmã o fez balançar a cabeça para tranquilizá-la. 

— Sim, acho que... 

Um novo impacto o impediu de concluir a frase, o obrigando a travar o maxilar para conter a dor.

— Colin?! 

Katie tentou se aproximar, mas sem perceber ele se afastou como se não pudesse suportar ser tocado naquele momento. 

— Afaste-se! 

A voz gutural não era a de seu irmão, sinal de que o seu lobo estava lutando para vir à tona. 

— Deus, Colin! 

— Companheira — o timbre profundo tornou as palavras sombrias enquanto as órbitas douradas cintilavam como duas pedras de Topázio. 

Katie estremeceu diante da ferocidade que surgia em seu semblante. 

[1] Peeira ou fada dos lobos é o nome que se dá às jovens que se tornam guardadoras ou companheiras de lobos. Elas são a versão humana e feminina do lobisomem e fazem parte das lendas de Portugal e da Galícia A peeira tem o dom de comunicar e controlar alcateias de lobos.

[2] Segundo as lendas da Grécia Antiga, Licaon reinou na região conhecida como Arcádia e, foi punido por Zeus, após tentar assassiná-lo ao servir carne humana para o deus grego.

[3] Vem da palavra grega Lykosanthripos que significa Lykos (lobo) e Anthropos (homem) daí o termo Lobisomem.

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