Samia voltava pensativa no ônibus, olhando as paisagens que via de pés no chão. Uma certa melancolia no retorno para um lugar que não significava tanta coisa mais, sem a presença da sua confidente e amiga e amante. De onde extrairia forças para voltar à sua vida? Será que conseguiria retomar o tipo de vida que tivera antes da viagem? Achava bem difícil. De qualquer forma, sua primeira missão era rever a tia, Dalila.
E Dalila, claro, não esperava rever sua sobrinha quando abriu a porta, naquela manhã de garoa, tipicamente curitibana. A garoa não exprimia a sensação de alívio que a tia experimentava, após meses de tortura, sem notícias da garota. O abraço se misturava às lágrimas de ambas.
Samia acabou por descobrir que
Três cômodos. Uma cozinha-sala, com uma pia muito velha. Um pequeno quarto cheirando a bolor, com uma cama barulhenta, de solteiro. Um minúsculo banheiro, com um chuveiro queimado e um vaso quebrado. Era a doce vida de Taco, que chegava em mais uma madrugada abafada, aos tropeços, drogado e bêbado, amortecido até a alma. Desaba no chão da cozinha e ali mesmo dorme. Acorda vomitando, pragueja mentalmente. Sonhara com Joana aquela noite. Pareceu tão real que lamentou ter acordado. Preferia ter morrido.Os momentos de lucidez eram cada vez mais raros. Ainda frequentava o colégio, mas teria que refazer o primeiro ano ano do ensino médio em 91. Reprovaria por faltas e notas ruins. Àquela altura, sobreviver bastava. Não se preocupava mais em arranjar bicos3
Joanita seguia sua jornada rumo a lugar nenhum, geograficamente falando. Descobriu que viajar sozinha era muito melhor. Podia se concentrar em si, estudar sua própria mente, sentir o universo ao seu redor de forma plena, sem interferências. Lamentava não ter levado muito material sobre magia. Na verdade, acabou sobrando apenas uma obra em sua bagagem: o Caibalion, em fotocópia surrada. Vez em quando, sentava-se debaixo de uma árvore, e degustava o texto hermético do livro de iniciação à magia. Lia, relia e trelia diversos trechos, na tentativa vã de obter algum conhecimento. Não era fácil. Não era apenas a dificuldade com a linguagem. Achava que precisava de um Mestre, alguém que a introduzisse no mundo da magia. Mas a cada nova leitura, percebia que sua mente se abria a novos mundos, devagar, sutil, a mudança gradual nas cores, só percebida
O tempo insistia em passar, mais rápido que nunca. A urgência dos anos 90 fazia com que a rotina parecesse liquefeita. Por isso mesmo, nenhum dos quatro amigos se deu conta de que mais um ano acabara, para o início de outro, 1991. O ano anterior fechou com o time de Dingo campeão nacional pela primeira vez, para seu êxtase. Fechou com Joanita embrenhada em algum ponto da fronteira entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cansada, com febre e fome, sem viva alma por perto. Pela primeira vez, o medo. Fechou com boas perspectivas para Samia, que considerava o novo emprego e a rotina sólida e digna presságios de um futuro decente. E fechou como começou para Taco, ladrão, noiado e paranoico. A paranoia tinha alguma razão de ser, embora até sons causados por gatos o apavorassem por completo. Difícil dizer se resistiria mais um ano inteiro. EL PUENTE (Mario Benedetti, poeta uruguaio, 1920-2009)Para cruzalo o para no cruzarloahí está el puenteen la otra orilla alguien me esperacon un durazno y un paístraigo conmigo ofrendas desusadasentre ellas un paraguas de ombligo de maderaun LIX Pegadas no chão
— Dingolêêêraaaa, chegaquimeurrei!!! Felicidade ver essa cara de bunda de novo, carai, seu animal de teta sumido, não reconhece mais os amigos??— Calma, Taco, não tente me beijar que eu saio correndo!— Correndo de alegria que eu bem sei, meu rei! Vem de lá um abraço!Nada como o tempo. Os encontros esparsos se tornaram um pouco mais rituais, especialmente agora que o pai de Dingo estava de cama em um hospital. Melhorava e piorava. 1992 começou mal para seu Astolfo, e Dingo não tinha muitos amigos com quem se sentisse à vontade para desabafar. Taco era louco, mas era todo ouvidos. Era leal, sem o pesar lacônico demonstrado por outros amigos:— Eu sei que nunca me dei muito b
Enquanto Astolfo se despedia deste mundo, alguém voltava, lentamente. Pensativamente. Mudada, física e mentalmente. Voltava mais dona de si, menos contida, e viajava das formas possíveis. A pé, de carona ou até de skate roubado, quando quase foi atropelada na estrada e jogou fora o artefato.Ela voltava de sua viagem introspectiva no momento em que Taco viajava rumo ao abismo moral e humano. Quase destituído de dignidade, seguro apenas por uns poucos amigos que ainda se preocupavam, o jovem rapaz não fazia mais que roubar, drogar-se e viver da única forma que conhecia: a inconsequente. As brigas nas boates rampeiras da periferia curitibana se tornavam mais perigosas e sangrentas.Você não viveu o que eu viviEla caminhava lentamente, sem s
Alguém diria que nada mais seria como antes. E teria razão. Porque a inocência morrera, e Dingo entrou em colapso naquele ano. A falta que sentia de ter uma namorada (sem nunca perceber o interesse de Samia por ele), a morte recente de seu pai e os conflitos de uma mãe que o queria mais perto do que nunca, pois estava mais sozinha que jamais. Dingo era o único que ainda morava de fato com ela. Era sufocante, ele estava a ponto de explodir, e de fato explodiu, numa noite chuvosa em que ele saiu sem destino, até parar na porta de Samia. Mas foi Joana quem o recolheu. Era a única acordada, e dali foram horas de conversas, choros contidos e desabafos que aliviavam a sensação de aperto no peito. A conversa no quarto escuro, iluminado pelos raios que espocavam ocasionalmente, acontecia com o som da chuva forte como pano de fundo.As lágrimas se
Taco vivia momentos de anjo sobre nuvens, com a presença aconchegante da doce Joana. Sua vida não mudara, mas a postura diante dela, certamente. Joana o encontrou à beira do abismo, e faltava pouco para que ele se jogasse. O retorno da musa foi determinante para evitar a queda.O jovem ainda morava na casa alugada, oferecimento de Galadriel, mas tinha vontade de voltar para seu antigo espaço. Sabia que era arriscado, pois devia dinheiro a traficantes, mas o risco existia em qualquer lugar. Mais importante era estar próximo de sua amada, pois ela não topou morar com ele. Preferia ficar com Samia, algo que incomodava Taco.De qualquer forma, os quatro amigos acharam que seria uma grande ideia um Natal em conjunto. E a ceia foi concretizada na casa de Dalila. Dingo conseguiu se desvencilhar de sua família, que se mo