O tempo insistia em passar, mais rápido que nunca. A urgência dos anos 90 fazia com que a rotina parecesse liquefeita. Por isso mesmo, nenhum dos quatro amigos se deu conta de que mais um ano acabara, para o início de outro, 1991. O ano anterior fechou com o time de Dingo campeão nacional pela primeira vez, para seu êxtase. Fechou com Joanita embrenhada em algum ponto da fronteira entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cansada, com febre e fome, sem viva alma por perto. Pela primeira vez, o medo. Fechou com boas perspectivas para Samia, que considerava o novo emprego e a rotina sólida e digna presságios de um futuro decente. E fechou como começou para Taco, ladrão, noiado e paranoico. A paranoia tinha alguma razão de ser, embora até sons causados por gatos o apavorassem por completo. Difícil dizer se resistiria mais um ano inteiro.
EL PUENTE (Mario Benedetti, poeta uruguaio, 1920-2009)Para cruzalo o para no cruzarloahí está el puenteen la otra orilla alguien me esperacon un durazno y un paístraigo conmigo ofrendas desusadasentre ellas un paraguas de ombligo de maderaun
— Dingolêêêraaaa, chegaquimeurrei!!! Felicidade ver essa cara de bunda de novo, carai, seu animal de teta sumido, não reconhece mais os amigos??— Calma, Taco, não tente me beijar que eu saio correndo!— Correndo de alegria que eu bem sei, meu rei! Vem de lá um abraço!Nada como o tempo. Os encontros esparsos se tornaram um pouco mais rituais, especialmente agora que o pai de Dingo estava de cama em um hospital. Melhorava e piorava. 1992 começou mal para seu Astolfo, e Dingo não tinha muitos amigos com quem se sentisse à vontade para desabafar. Taco era louco, mas era todo ouvidos. Era leal, sem o pesar lacônico demonstrado por outros amigos:— Eu sei que nunca me dei muito b
Enquanto Astolfo se despedia deste mundo, alguém voltava, lentamente. Pensativamente. Mudada, física e mentalmente. Voltava mais dona de si, menos contida, e viajava das formas possíveis. A pé, de carona ou até de skate roubado, quando quase foi atropelada na estrada e jogou fora o artefato.Ela voltava de sua viagem introspectiva no momento em que Taco viajava rumo ao abismo moral e humano. Quase destituído de dignidade, seguro apenas por uns poucos amigos que ainda se preocupavam, o jovem rapaz não fazia mais que roubar, drogar-se e viver da única forma que conhecia: a inconsequente. As brigas nas boates rampeiras da periferia curitibana se tornavam mais perigosas e sangrentas.Você não viveu o que eu viviEla caminhava lentamente, sem s
Alguém diria que nada mais seria como antes. E teria razão. Porque a inocência morrera, e Dingo entrou em colapso naquele ano. A falta que sentia de ter uma namorada (sem nunca perceber o interesse de Samia por ele), a morte recente de seu pai e os conflitos de uma mãe que o queria mais perto do que nunca, pois estava mais sozinha que jamais. Dingo era o único que ainda morava de fato com ela. Era sufocante, ele estava a ponto de explodir, e de fato explodiu, numa noite chuvosa em que ele saiu sem destino, até parar na porta de Samia. Mas foi Joana quem o recolheu. Era a única acordada, e dali foram horas de conversas, choros contidos e desabafos que aliviavam a sensação de aperto no peito. A conversa no quarto escuro, iluminado pelos raios que espocavam ocasionalmente, acontecia com o som da chuva forte como pano de fundo.As lágrimas se
Taco vivia momentos de anjo sobre nuvens, com a presença aconchegante da doce Joana. Sua vida não mudara, mas a postura diante dela, certamente. Joana o encontrou à beira do abismo, e faltava pouco para que ele se jogasse. O retorno da musa foi determinante para evitar a queda.O jovem ainda morava na casa alugada, oferecimento de Galadriel, mas tinha vontade de voltar para seu antigo espaço. Sabia que era arriscado, pois devia dinheiro a traficantes, mas o risco existia em qualquer lugar. Mais importante era estar próximo de sua amada, pois ela não topou morar com ele. Preferia ficar com Samia, algo que incomodava Taco.De qualquer forma, os quatro amigos acharam que seria uma grande ideia um Natal em conjunto. E a ceia foi concretizada na casa de Dalila. Dingo conseguiu se desvencilhar de sua família, que se mo
Formado, reformado, engomadoNum sorriso fabricadoPela escola da ilusãoTem jeito de perfeitoNo defeitoSem ter feito com proveitoAproveita a ocasião(Dr. Pacheco / Raul Seixas)Dingo acordou numa cama desconhecida, com dona Selma a
Convencida por Joana, Samia entrou na Dingolândia e, obcecada pela resolução das diferenças, tentou penetrar no coração frio do garoto distante. Dingo não gostava muito de conversas diretas. Sentia-se constrangido e fraco. O suor escorria de sua face, ansioso para que aquilo acabasse logo.Samia também não era tão boa com palavras, como a amiga Joanita, mas sabia ser curta e grossa quando necessário. A discussão com o ex-colega de trabalho e a injeção de ânimo promovida pela amiga-viajante deram a coragem que faltava para fazer o que era preciso. Não havia motivos para adiar aquela conversa.Dingo, estarrecido, esfarelava-se diante da dureza da amiga, que o mandou ouvir sem interrompê-la, no que foi prontamente atendida, pois o rapaz estava aturdi
Dona Selma não aguentou Taco por mais de dez dias. Ele esperava por isso, pois fora flagrado mais de uma vez cheirando benzina. A princípio, nervosa e com medo, a senhora nada fez, mas, num dia em que percebeu que ele parecia bem, e estava acompanhado do amigo Dingo, criou coragem para dizer que não o queria mais em sua casa. Ele se desculpou, agradeceu muito, ouviu conselhos amorosos da velha cuidadora, e saiu em silêncio da casa. Já na rua, ouve o amigo:— Não foda com a tua vida.Surpreendentemente, Taco continuou em silêncio. Um tempo depois, para e pergunta:— Quer morar comigo?Dingo nunca tinha pensado em tamanha maluquice, mas o clima em casa não andava bom, e as recentes brigas com Galadriel e com