Convencida por Joana, Samia entrou na Dingolândia e, obcecada pela resolução das diferenças, tentou penetrar no coração frio do garoto distante. Dingo não gostava muito de conversas diretas. Sentia-se constrangido e fraco. O suor escorria de sua face, ansioso para que aquilo acabasse logo.
Samia também não era tão boa com palavras, como a amiga Joanita, mas sabia ser curta e grossa quando necessário. A discussão com o ex-colega de trabalho e a injeção de ânimo promovida pela amiga-viajante deram a coragem que faltava para fazer o que era preciso. Não havia motivos para adiar aquela conversa.
Dingo, estarrecido, esfarelava-se diante da dureza da amiga, que o mandou ouvir sem interrompê-la, no que foi prontamente atendida, pois o rapaz estava aturdi
Dona Selma não aguentou Taco por mais de dez dias. Ele esperava por isso, pois fora flagrado mais de uma vez cheirando benzina. A princípio, nervosa e com medo, a senhora nada fez, mas, num dia em que percebeu que ele parecia bem, e estava acompanhado do amigo Dingo, criou coragem para dizer que não o queria mais em sua casa. Ele se desculpou, agradeceu muito, ouviu conselhos amorosos da velha cuidadora, e saiu em silêncio da casa. Já na rua, ouve o amigo:— Não foda com a tua vida.Surpreendentemente, Taco continuou em silêncio. Um tempo depois, para e pergunta:— Quer morar comigo?Dingo nunca tinha pensado em tamanha maluquice, mas o clima em casa não andava bom, e as recentes brigas com Galadriel e com
Dingo volta à sua (sua?) casa para buscar roupas. Encontra a mãe à beira de uma crise nervosa, olhos vermelhos, rosto inchado, o desespero estampado naquela face tão passiva quanto passional.— Que foi que eu te fiz, meu filho? — pergunta, a voz trêmula, os olhos brilhantes.— Nada, mãe… só não quero ficar com o Driel, não dá mais pra conviver com ele, é só isso.— Mas onde você tá agora? E com quem?? O Driel me disse que você tá morando com um amigo. É aquele tal Taco? Aquele drogado??— O Driel não sabe nada da minha vida, mãe! Não dê atenção a ele! Ele já me atrapalhou b
Joana e Samia conversavam sobre a vida, o universo e tudo o mais, quando chegaram no assunto de relacionamentos. Agora namoravam Taco e Dingo, o que não as impedia de transarem eventualmente uma com a outra. As humilhações impostas pelo irmão de Dingo ainda afetavam Samia, de forma tão violenta que Joana exigiu conhecer melhor a história da amiga. Sabia que o passado dela continha um abuso cometido pelo padrasto, mas desconhecia os detalhes.Samia, que nunca havia falado com ninguém sobre o assunto, abriu-se, entre lágrimas e soluços (que pouco combinavam com seu estilo seco e duro de ser), relembrando de sua infância, quando o padrasto a tocava sem permissão, falava em seu ouvido que sua mãe não poderia saber, e que se contasse alguma coisa, a mãe dela poderia desaparecer
O ano de 1993 definhava lentamente. Nem tão mal para Samia e Dingo, enfim enamorados. Ou mesmo para Taco, realizado com sua idealizada Joanita tornando-se sólida. Encantadoramente sólida. Ou ainda para Joana, vendo os amigos unidos novamente.Um ano difícil, violento. Chacina na Candelária, Rio de Janeiro. Oito crianças e adolescentes mortos por policiais militares. Outra chacina, também no Rio, com o extermínio de 21 pessoas, na favela de Vigário Geral.Um ano perfeitamente alinhado com a trilha crua e abrasiva de In Utero, disco do Nirvana que Joanita ouvia dia e noite, noite e dia, em seu walkman amarelo. Mas o ano estava ter
Com as novas posições definidas, Joana se sentia em condições de controlar melhor Taco, e via renovadas as esperanças de tirá-lo das drogas (nem ela as usava mais, como incentivo… bom, com exceção do álcool, do cigarro e de algumas viagens esporádicas de ácido, mas longe dele, sempre que possível).Sabedora do sofrimento da amiga, Joana presenteou Samia com uma derradeira noite quente, em seu último dia morando com a amiga. Fizeram sexo a noite toda, com um tesão fora do comum, que deixaria saudades em ambas. Os primeiros raios solares flagraram as duas nuas, suadas, ofegantes, com a cama bagunçada, os travesseiros ao chão. No banho que se seguiu, ainda se divertiram mais um pouco. Quase não entendiam o que as levava a assumir outros relacionamentos, se o encaixe era tão m&aa
“Pamonha! O carro da pamonha está passando! Pamooonha.... doce! Pamooonha…. salgada! Pamooonha…”O dia começava muito cedo, com o tio da pamonha invadindo os ouvidos de Taco e Joana, ainda grogues de sono. Bebiam um tórrido café, quente, um inferno de quente, para espantar a vontade de voltar a dormir e dar coragem para iniciar a feroz batalha por empregos. Estavam decididos.Na noite anterior, decidiram virar gente. Bem-vindos à vida adulta! Contas a pagar, crianças chorando, o leite que nunca seca, o churrasco da igreja, a benção do padre. A vida adulta jamais sonhada por Taco e por Joanita. Mas o tempo avança, e não dá para viver uma eterna adolescência. É tempo de ouvir jazz, beber whisky e fazer concurso público. Nada mais será
Já em casa...— Não dá mais pra fugir, Taco, você precisa acertar logo as contas com esse cara, ou ele te apaga logo, logo, pare de fingir que não tá acontecendo nada, porque você sabe que tá, e não dá pra conviver com esse tipo de coisa!— Não força, Joa, eu só preciso de um tempo pra resolver isso, não dá pra fazer nada agora, se eu for lá conversar com ele sem grana, não volto mais! Vamos vivendo do jeito que dá, uma hora eu acerto isso…— Uma hora o caralho! Agora! Vou te dar todo o pouco dinheiro que eu tenho, e você vai já levar essa merda, pelo menos pra sinalizar que tá disposto a pagar! Porra, cara, isso é suicídio!
Houve um crime. Pouca gente se importava de fato. Não saiu na primeira página dos jornais. Não se comentou na TV, à exceção de um ou outro programa policial com apresentadores à beira de um ataque de nervos.Dentre os que se importavam, estava um garoto, cuja vida parecia ter perdido o último fiapo de sentido, que caminhava rapidamente entre os barracos de uma favela, sob os olhares indiferentes de uma população acostumada com a invisibilidade. Chovia, como sempre. Isso disfarçava as lágrimas.Taco pulava pequenos “riachos”, também conhecidos como esgotos a céu aberto, que pululavam pelo caminho, entre as casas. O terreno acidentado e barrento sofria com a água que não deixava de cair há mais de cinco horas. Ele estava atrás