Joana e Samia conversavam sobre a vida, o universo e tudo o mais, quando chegaram no assunto de relacionamentos. Agora namoravam Taco e Dingo, o que não as impedia de transarem eventualmente uma com a outra. As humilhações impostas pelo irmão de Dingo ainda afetavam Samia, de forma tão violenta que Joana exigiu conhecer melhor a história da amiga. Sabia que o passado dela continha um abuso cometido pelo padrasto, mas desconhecia os detalhes.
Samia, que nunca havia falado com ninguém sobre o assunto, abriu-se, entre lágrimas e soluços (que pouco combinavam com seu estilo seco e duro de ser), relembrando de sua infância, quando o padrasto a tocava sem permissão, falava em seu ouvido que sua mãe não poderia saber, e que se contasse alguma coisa, a mãe dela poderia desaparecer
O ano de 1993 definhava lentamente. Nem tão mal para Samia e Dingo, enfim enamorados. Ou mesmo para Taco, realizado com sua idealizada Joanita tornando-se sólida. Encantadoramente sólida. Ou ainda para Joana, vendo os amigos unidos novamente.Um ano difícil, violento. Chacina na Candelária, Rio de Janeiro. Oito crianças e adolescentes mortos por policiais militares. Outra chacina, também no Rio, com o extermínio de 21 pessoas, na favela de Vigário Geral.Um ano perfeitamente alinhado com a trilha crua e abrasiva de In Utero, disco do Nirvana que Joanita ouvia dia e noite, noite e dia, em seu walkman amarelo. Mas o ano estava ter
Com as novas posições definidas, Joana se sentia em condições de controlar melhor Taco, e via renovadas as esperanças de tirá-lo das drogas (nem ela as usava mais, como incentivo… bom, com exceção do álcool, do cigarro e de algumas viagens esporádicas de ácido, mas longe dele, sempre que possível).Sabedora do sofrimento da amiga, Joana presenteou Samia com uma derradeira noite quente, em seu último dia morando com a amiga. Fizeram sexo a noite toda, com um tesão fora do comum, que deixaria saudades em ambas. Os primeiros raios solares flagraram as duas nuas, suadas, ofegantes, com a cama bagunçada, os travesseiros ao chão. No banho que se seguiu, ainda se divertiram mais um pouco. Quase não entendiam o que as levava a assumir outros relacionamentos, se o encaixe era tão m&aa
“Pamonha! O carro da pamonha está passando! Pamooonha.... doce! Pamooonha…. salgada! Pamooonha…”O dia começava muito cedo, com o tio da pamonha invadindo os ouvidos de Taco e Joana, ainda grogues de sono. Bebiam um tórrido café, quente, um inferno de quente, para espantar a vontade de voltar a dormir e dar coragem para iniciar a feroz batalha por empregos. Estavam decididos.Na noite anterior, decidiram virar gente. Bem-vindos à vida adulta! Contas a pagar, crianças chorando, o leite que nunca seca, o churrasco da igreja, a benção do padre. A vida adulta jamais sonhada por Taco e por Joanita. Mas o tempo avança, e não dá para viver uma eterna adolescência. É tempo de ouvir jazz, beber whisky e fazer concurso público. Nada mais será
Já em casa...— Não dá mais pra fugir, Taco, você precisa acertar logo as contas com esse cara, ou ele te apaga logo, logo, pare de fingir que não tá acontecendo nada, porque você sabe que tá, e não dá pra conviver com esse tipo de coisa!— Não força, Joa, eu só preciso de um tempo pra resolver isso, não dá pra fazer nada agora, se eu for lá conversar com ele sem grana, não volto mais! Vamos vivendo do jeito que dá, uma hora eu acerto isso…— Uma hora o caralho! Agora! Vou te dar todo o pouco dinheiro que eu tenho, e você vai já levar essa merda, pelo menos pra sinalizar que tá disposto a pagar! Porra, cara, isso é suicídio!
Houve um crime. Pouca gente se importava de fato. Não saiu na primeira página dos jornais. Não se comentou na TV, à exceção de um ou outro programa policial com apresentadores à beira de um ataque de nervos.Dentre os que se importavam, estava um garoto, cuja vida parecia ter perdido o último fiapo de sentido, que caminhava rapidamente entre os barracos de uma favela, sob os olhares indiferentes de uma população acostumada com a invisibilidade. Chovia, como sempre. Isso disfarçava as lágrimas.Taco pulava pequenos “riachos”, também conhecidos como esgotos a céu aberto, que pululavam pelo caminho, entre as casas. O terreno acidentado e barrento sofria com a água que não deixava de cair há mais de cinco horas. Ele estava atrás
Dingo ficou estupefato com a história, não querendo acreditar na sequência do pesadelo. A morte de Joana era suficientemente horrível. O suposto envolvimento de Galadriel era a cereja satânica do bolo diabólico que faria sua família sofrer a derrocada final.A inevitável vertigem quase o fez desmaiar. Passando mal, decidiu falar com Gabriel. Não podia encarar Galadriel, e nem saberia como fazê-lo. Não sabia até onde podia contar com o irmão mais velho, mas precisava falar o que ouvira. Não fazia ideia de como começar… pensava na mãe. Como ela reagiria? Era mais um golpe forte na vida dela. O pior de todos, certamente.Dingo encontrou Gabriel, em plena crise de ansiedade. O irmão, assustado com o estado do garoto, fechou a porta rapidamente,
Dalila, a tia de Samia, insistia na importância de internar Taco numa clínica de reabilitação para dependentes químicos. Taco, agora, largara a delinquência, os roubos, os furtos, e fechou-se em si, usando drogas para se manter vivo, e morrendo pelo uso delas. Um pastor conhecido de Dalila conseguiu vaga em uma clínica onde atuava, como conselheiro e orientador.Taco não quis ir, num primeiro momento. Foi com muita insistência de Dingo e Samia que ele acabou aceitando. Mas isso foi ocorrer no ano seguinte. 1994 não existia mais. Para Taco, foi o ano derradeiro de sua existência. O tempo não importava mais, desde a morte da garota amada. Não pensava com coerência mais, mas culpava-se pelo ocorrido. Sequer sentimentos de vingança lhe passavam pela mente destruída. Pelas drogas. E pela vida. Taco, nessa
Toda história tem um fim. Um final, que pode ser feliz, que pode ser feio. Mas… o que há depois da história? Após o ponto final, algo acontece? Para Joanita, não, pois morta estava.Taco, porém, continuou sua jornada. Demorou, mas se viu livre das drogas. Demorou, mas se viu livre também das dívidas. Demorou, mas reintegrou-se à sociedade, a tempo de ser padrinho de casamento de seu melhor amigo, Dingo, oficialmente casado com Samia, com quem já morava há alguns anos. Agora tinham uma casa só deles. A tia Dalila foi a madrinha. A memória de Joanita inspirava a todos. Vida livre de amarras, cada momento vivido da forma mais intensa. Ela viveu em pouco mais de vinte anos, mais que a maioria das pessoas em setenta ou oitenta.Liberto, Taco pôde viver algo pareci