Enquanto Astolfo se despedia deste mundo, alguém voltava, lentamente. Pensativamente. Mudada, física e mentalmente. Voltava mais dona de si, menos contida, e viajava das formas possíveis. A pé, de carona ou até de skate roubado, quando quase foi atropelada na estrada e jogou fora o artefato.
Ela voltava de sua viagem introspectiva no momento em que Taco viajava rumo ao abismo moral e humano. Quase destituído de dignidade, seguro apenas por uns poucos amigos que ainda se preocupavam, o jovem rapaz não fazia mais que roubar, drogar-se e viver da única forma que conhecia: a inconsequente. As brigas nas boates rampeiras da periferia curitibana se tornavam mais perigosas e sangrentas.
Você não viveu o que eu vivi
Ela caminhava lentamente, sem s
Alguém diria que nada mais seria como antes. E teria razão. Porque a inocência morrera, e Dingo entrou em colapso naquele ano. A falta que sentia de ter uma namorada (sem nunca perceber o interesse de Samia por ele), a morte recente de seu pai e os conflitos de uma mãe que o queria mais perto do que nunca, pois estava mais sozinha que jamais. Dingo era o único que ainda morava de fato com ela. Era sufocante, ele estava a ponto de explodir, e de fato explodiu, numa noite chuvosa em que ele saiu sem destino, até parar na porta de Samia. Mas foi Joana quem o recolheu. Era a única acordada, e dali foram horas de conversas, choros contidos e desabafos que aliviavam a sensação de aperto no peito. A conversa no quarto escuro, iluminado pelos raios que espocavam ocasionalmente, acontecia com o som da chuva forte como pano de fundo.As lágrimas se
Taco vivia momentos de anjo sobre nuvens, com a presença aconchegante da doce Joana. Sua vida não mudara, mas a postura diante dela, certamente. Joana o encontrou à beira do abismo, e faltava pouco para que ele se jogasse. O retorno da musa foi determinante para evitar a queda.O jovem ainda morava na casa alugada, oferecimento de Galadriel, mas tinha vontade de voltar para seu antigo espaço. Sabia que era arriscado, pois devia dinheiro a traficantes, mas o risco existia em qualquer lugar. Mais importante era estar próximo de sua amada, pois ela não topou morar com ele. Preferia ficar com Samia, algo que incomodava Taco.De qualquer forma, os quatro amigos acharam que seria uma grande ideia um Natal em conjunto. E a ceia foi concretizada na casa de Dalila. Dingo conseguiu se desvencilhar de sua família, que se mo
Formado, reformado, engomadoNum sorriso fabricadoPela escola da ilusãoTem jeito de perfeitoNo defeitoSem ter feito com proveitoAproveita a ocasião(Dr. Pacheco / Raul Seixas)Dingo acordou numa cama desconhecida, com dona Selma a
Convencida por Joana, Samia entrou na Dingolândia e, obcecada pela resolução das diferenças, tentou penetrar no coração frio do garoto distante. Dingo não gostava muito de conversas diretas. Sentia-se constrangido e fraco. O suor escorria de sua face, ansioso para que aquilo acabasse logo.Samia também não era tão boa com palavras, como a amiga Joanita, mas sabia ser curta e grossa quando necessário. A discussão com o ex-colega de trabalho e a injeção de ânimo promovida pela amiga-viajante deram a coragem que faltava para fazer o que era preciso. Não havia motivos para adiar aquela conversa.Dingo, estarrecido, esfarelava-se diante da dureza da amiga, que o mandou ouvir sem interrompê-la, no que foi prontamente atendida, pois o rapaz estava aturdi
Dona Selma não aguentou Taco por mais de dez dias. Ele esperava por isso, pois fora flagrado mais de uma vez cheirando benzina. A princípio, nervosa e com medo, a senhora nada fez, mas, num dia em que percebeu que ele parecia bem, e estava acompanhado do amigo Dingo, criou coragem para dizer que não o queria mais em sua casa. Ele se desculpou, agradeceu muito, ouviu conselhos amorosos da velha cuidadora, e saiu em silêncio da casa. Já na rua, ouve o amigo:— Não foda com a tua vida.Surpreendentemente, Taco continuou em silêncio. Um tempo depois, para e pergunta:— Quer morar comigo?Dingo nunca tinha pensado em tamanha maluquice, mas o clima em casa não andava bom, e as recentes brigas com Galadriel e com
Dingo volta à sua (sua?) casa para buscar roupas. Encontra a mãe à beira de uma crise nervosa, olhos vermelhos, rosto inchado, o desespero estampado naquela face tão passiva quanto passional.— Que foi que eu te fiz, meu filho? — pergunta, a voz trêmula, os olhos brilhantes.— Nada, mãe… só não quero ficar com o Driel, não dá mais pra conviver com ele, é só isso.— Mas onde você tá agora? E com quem?? O Driel me disse que você tá morando com um amigo. É aquele tal Taco? Aquele drogado??— O Driel não sabe nada da minha vida, mãe! Não dê atenção a ele! Ele já me atrapalhou b
Joana e Samia conversavam sobre a vida, o universo e tudo o mais, quando chegaram no assunto de relacionamentos. Agora namoravam Taco e Dingo, o que não as impedia de transarem eventualmente uma com a outra. As humilhações impostas pelo irmão de Dingo ainda afetavam Samia, de forma tão violenta que Joana exigiu conhecer melhor a história da amiga. Sabia que o passado dela continha um abuso cometido pelo padrasto, mas desconhecia os detalhes.Samia, que nunca havia falado com ninguém sobre o assunto, abriu-se, entre lágrimas e soluços (que pouco combinavam com seu estilo seco e duro de ser), relembrando de sua infância, quando o padrasto a tocava sem permissão, falava em seu ouvido que sua mãe não poderia saber, e que se contasse alguma coisa, a mãe dela poderia desaparecer
O ano de 1993 definhava lentamente. Nem tão mal para Samia e Dingo, enfim enamorados. Ou mesmo para Taco, realizado com sua idealizada Joanita tornando-se sólida. Encantadoramente sólida. Ou ainda para Joana, vendo os amigos unidos novamente.Um ano difícil, violento. Chacina na Candelária, Rio de Janeiro. Oito crianças e adolescentes mortos por policiais militares. Outra chacina, também no Rio, com o extermínio de 21 pessoas, na favela de Vigário Geral.Um ano perfeitamente alinhado com a trilha crua e abrasiva de In Utero, disco do Nirvana que Joanita ouvia dia e noite, noite e dia, em seu walkman amarelo. Mas o ano estava ter