O sol nascente tingia o céu com tons dourados e alaranjados quando Helena abriu a pequena janela de madeira, deixando a brisa fresca da manhã invadir a cabana. O ar carregava o cheiro úmido da terra e o canto distante dos pássaros que despertavam junto com o dia.
Durante anos, aquele lugar que fora um refúgio miserável se tornara seu lar. A estrutura que antes ameaçava desmoronar agora estava reforçada com tábuas novas e musgo removido das paredes. O teto, antes perfurado pela chuva, fora consertado com cuidado, impedindo que as águas tempestuosas invadissem seu abrigo. O chão de terra batida dera lugar a um revestimento de madeira rústica, e o cheiro de mofo foi substituído pelo aroma das ervas secando em pequenos feixes pendurados no teto.
A lareira crepitava suavemente no canto da cabana, aquecendo a chaleira de ferro onde a água fervia para o chá da manhã. Em uma mesa simples, porém bem cuidada, repousavam pequenos potes de barro contendo ervas e unguentos que ela mesma preparava. Sua habilidade como curandeira a tornara essencial para o vilarejo—mesmo que ainda fosse evitada pela maioria dos aldeões. Vinham até sua porta quando precisavam de ajuda, mas nunca ficavam tempo suficiente para tratá-la como uma igual.
Helena suspirou, ajeitando uma mecha de cabelo que caía sobre seu rosto. Vestia um vestido simples, de tecido grosso e desbotado, mas limpo e bem cuidado. Seus dias eram solitários, mas haviam se tornado suportáveis. Ela aprendeu a encontrar conforto no silêncio, na rotina e no sussurro da floresta ao seu redor.
Saiu para o lado de fora e respirou fundo. O orvalho ainda brilhava sobre as folhas, e o aroma fresco das ervas em seu pequeno jardim a acolheu como um velho amigo. Pegou um cesto e começou a colher algumas folhas de camomila e lavanda, planejando preparar um novo estoque de infusões para os próximos dias.
Helena não teve mestres. Tudo o que sabia sobre ervas e curas viera da observação, da necessidade e de incontáveis tentativas e erros. Quando criança, esgueirava-se pela floresta, experimentando folhas e raízes, descobrindo quais aliviavam dores e quais traziam febre. Pagou caro por sua curiosidade mais de uma vez, sentindo na pele os efeitos de plantas venenosas, mas aprendeu a reconhecer cada erro e a nunca repeti-los.
Os aldeões, mesmo temendo-a, não hesitavam em bater à sua porta quando uma doença surgia ou uma febre ameaçava a vida de uma criança. Aos poucos, Helena passou a ouvir conversas furtivas, pedaços de conhecimento deixados escapar pelos mais velhos. Aprendeu a distinguir a casca de salgueiro para aliviar a dor, o uso da equinácea para fortalecer o corpo contra doenças e a maneira certa de misturar mel e ervas para criar bálsamos cicatrizantes.
Mas foi nos livros que encontrou seu maior tesouro. Ela sabia que jamais conseguiria comprá-los—ninguém a venderia algo assim, e mesmo que vendessem, ela não tinha dinheiro. Então, sem orgulho, mas sem alternativa, tomou aquilo que precisava. Durante uma noite chuvosa, escondeu-se sob um capuz e deslizou pelas ruas silenciosas da cidade vizinha, entrando no sebo enquanto o dono dormia nos fundos. Escolheu três volumes, pesados e cobertos de poeira, e os levou consigo, fugindo antes que alguém a visse.
Ela ainda se lembrava do peso dos livros contra o peito enquanto corria de volta para a floresta, a consciência pesada, mas a mente faminta por conhecimento. Durante semanas, devorou cada página, ensinando-se a ler melhor, decifrando receitas e tratamentos. Descobriu como combinar ervas, como ferver raízes para extrair suas propriedades, como fazer cataplasmas e poções que os aldeões jamais haviam lhe ensinado.
Agora, anos depois, aqueles livros estavam gastos, as páginas manchadas pelo tempo e pelo uso constante. Eram seu bem mais precioso, guardados com carinho dentro da cabana, pois haviam sido sua verdadeira salvação. Sem eles, talvez tivesse sucumbido ao frio, à fome ou a alguma doença que ninguém ousaria tratar nela.
Quando pensava na noite do roubo, não sentia orgulho, mas tampouco arrependimento. Afinal, aquilo havia sido necessário para sua sobrevivência. E se aqueles livros haviam sido abandonados por anos em um sebo, sem ninguém para valorizá-los, ao menos agora serviam a um propósito.
Helena caminhou até a cerca que ela mesma construíra com troncos resistentes e cordas bem amarradas. O curral era modesto, mas servia bem aos seus poucos animais. Duas cabras, uma vaca e alguns porcos eram sua única companhia constante—seres que não a julgavam, não a temiam e que, de certa forma, também dependiam dela para sobreviver.
— Bom dia, minha senhora — murmurou, afagando o pescoço de Branca, a vaca que, apesar do nome, tinha manchas marrons espalhadas pelo corpo. O animal mugiu baixo em resposta, encostando a cabeça na mão dela.
As cabras, Lita e Gilda, já estavam inquietas, balindo em protesto pela demora no café da manhã. Helena riu, pegando um balde com restos de vegetais e ervas.
— Eu sei, eu sei... sempre impacientes — disse, despejando a comida para elas. As duas avançaram de imediato, mastigando com vontade.
Os porcos estavam espalhados pelo cercado, fuçando o chão em busca de algo interessante. Helena se abaixou perto de um deles, um leitãozinho curioso que sempre parecia observá-la com mais atenção que os outros.
— Você vai crescer forte, hein? — comentou, passando a mão em seu dorso. Ele grunhiu satisfeito e se afastou para se juntar aos outros.
Helena se recostou contra a cerca, observando os animais por um momento. Em meio a tantos anos de isolamento, aprendeu a encontrar consolo na companhia silenciosa deles. Não respondiam, mas também não a julgavam. Ali, ao menos, ela pertencia.
— Pelo menos vocês não se importam com uma m*****a marca na pele, não é? — murmurou, olhando para o próprio braço, onde a mancha serpenteava como um lembrete eterno de por que estava sozinha.
O silêncio respondeu por eles. Apenas o som das mastigações e o farfalhar das árvores ao redor enchia o ar.
Suspirando, Helena pegou um balde e foi até a vaca, preparando-se para ordenhá-la.
— Vamos lá, Branca, seja generosa hoje — brincou, sentando-se no banquinho ao lado do animal.
O leite começou a pingar no balde, quente e espumoso. Helena sabia que o dia ainda seria longo. Mas, por enquanto, ali, no cercado com seus animais, havia um raro instante de paz.
O calor do fogo na lareira tornava a cabana aconchegante enquanto Helena mexia uma panela de ferro sobre as chamas. O cheiro de ervas e legumes cozinhando preenchia o ar, e o suor já umedecia sua nuca. Cozinhar era uma tarefa simples, mas necessária, e ela se permitia aproveitar o momento em silêncio.Foi então que ouviu os animais. O balido alto das cabras, o mugido aflito de Branca e os grunhidos nervosos dos porcos. Seu coração acelerou. Esse tipo de alarde nunca era bom sinal.Limpando as mãos no avental, Helena se dirigiu à porta, o corpo tenso. Pegou uma faca que sempre deixava por perto—não que ela soubesse lutar, mas a mera sensação de ter algo nas mãos lhe dava uma falsa segurança. Respirou fundo antes de puxar a tranca e abrir a porta.O que viu fez seu estômago se revirar.Um homem estava parado ali, oscilando entre um passo e outro, como se o próprio corpo estivesse prestes a ceder. Ele era imenso—assustadoramente alto e absurdamente forte, mesmo com a armadura rachada e o
Helena ainda estava sentada no chão, recuperando o fôlego, quando seus olhos caíram sobre a armadura do guerreiro. Era um emaranhado de ferro pesado, rachado e coberto de sujeira e sangue seco. Se ele precisava de cuidados urgentes, a primeira coisa a fazer era se livrar daquilo.— Ótimo, mais trabalho para mim… — murmurou, passando a mão no rosto.Ela se aproximou e começou a desfazer as correias de couro que mantinham as peças unidas. Algumas estavam tão apertadas e rígidas que seus dedos doíam ao tentar afrouxá-las.— Quem foi que te vestiu, homem? Um ferreiro com raiva da humanidade?Depois de alguns minutos de luta, a primeira peça caiu com um baque surdo no chão de madeira. Seguiram-se os ombreiros e a couraça, revelando um peitoral coberto de hematomas, arranhões e cortes abertos. A pele quente, marcada por cicatrizes antigas, se esticava sobre músculos firmes.Helena parou. Engoliu em seco.Seu rosto esquentou no mesmo instante.— Isso não importa — murmurou para si mesma, vol
Helena acordou com um sobressalto ao ouvir um gemido grave e raivoso preencher a cabana. Antes que pudesse reagir, um grito ecoou pelo cômodo.— O que diabos você fez comigo?! — a voz do guerreiro saiu carregada de fúria. Ele tentou se mexer, mas seu corpo recusava-se a obedecer. — Meu corpo…! Eu não consigo me mover! O que você fez, maldita bruxa?!Os olhos dele ardiam com uma mistura de ódio e desespero. Helena cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha, impassível.— Leite de papoula — respondeu, com um sorriso sarcástico. — Você estava choramingando de dor, achei que um grande guerreiro como você não fosse tão sensível.Ele rosnou, os músculos se retesando apesar da dormência.— Veneno. Você me envenenou.Helena soltou uma risada curta, sacudindo a cabeça.— Sim, claro. Minha estratégia brilhante foi arrastar um homem do tamanho de um cavalo para dentro da minha casa, limpar seu sangue imundo do meu chão e depois matá-lo lentamente. Faz todo o sentido.Os olhos do guerreiro se estr
O fogão era simples, construído em pedra e argila, com um espaço para acomodar a lenha que mantinha o fogo aceso. Pequenas rachaduras nas laterais testemunhavam os anos de uso, mas ainda cumpria bem seu papel. Acima dele, uma grade de ferro envelhecido servia de suporte para panelas e chaleiras. O calor irradiava do braseiro, iluminando o ambiente com um brilho alaranjado e lançando sombras dançantes pelas paredes da cabana.Helena mexeu o mingau mais uma vez, apenas por hábito, antes de se virar. Seu olhar pousou no guerreiro ainda estirado no colchão improvisado. O cenho dela se franziu.Ele continuava deitado, a expressão fechada e tensa. Foi então que se deu conta: ele não conseguia se mexer. O leite de papoula ainda fazia efeito, impedindo que seu corpo respondesse como deveria.Helena bufou, cruzando os braços.— Então você vai me dar trabalho até para comer? — resmungou, sem esconder a irritação.O guerreiro lançou-lhe um olhar carregado de fúria e constrangimento, mas nada dis
Tristan despertou lentamente, o peso da inconsciência se esvaindo conforme seus sentidos voltavam a funcionar. O primeiro sinal de que algo estava diferente foi a dor. Ainda estava lá, mas não era mais esmagadora. Seus músculos, antes inertes, agora formigavam com um incômodo suportável.Ele piscou algumas vezes, os olhos ajustando-se à luz fraca do interior da cabana. Virou a cabeça devagar e percebeu que estava sozinho. A bruxa não estava ali.Inspirou fundo e tentou se mover. Para sua surpresa, conseguiu. Seu corpo ainda estava rígido e dolorido, mas já não estava paralisado. Com um gemido baixo, empurrou-se para uma posição semi-sentada, apoiando-se no cotovelo.Foi então que observou ao redor.A cabana era pequena, absurdamente pequena para alguém de seu tamanho. Tudo estava no mesmo cômodo—cama, mesa, lareira, prateleiras improvisadas abarrotadas de potes de barro e ervas secas. O cheiro de terra, fumaça e alguma mistura de ervas desconhecidas impregnava o ar.Ele franziu o cenh
Helena estava sentada em seu pequeno sofá improvisado, feito de fardos de palha cobertos com um tecido grosso, costurado por suas próprias mãos. O móvel era simples, mas servia ao seu propósito.Seus dedos tamborilavam sobre a coxa enquanto olhava para a porta, preocupada.Horas haviam se passado. O sol já começava a se despedir no horizonte, tingindo o céu com tons alaranjados. O guerreiro ingrato foi embora sem dizer nada. E se estivesse ferido? E se tivesse caído morto em algum lugar da floresta?Ela suspirou, balançando a cabeça.— Que morra, então — murmurou para si mesma.Antes que pudesse aprofundar-se no pensamento, a porta foi aberta com um baque forte.Helena sobressaltou-se.Tristan surgiu na soleira, sujo de sangue e carregando uma quantidade absurda de carne crua em suas mãos. O cheiro ferroso do sangue fresco preencheu o ar enquanto ele caminhava até a mesa e, sem cerimônia, jogava tudo ali com um baque úmido.— Cozinhe, mulher.Helena piscou.Depois piscou de novo.Depo
A noite caía pesada sobre o vilarejo, as sombras dançando nas paredes de madeira da pequena casa onde Helena se escondia. O vento uivava através das frestas da pequena casa de pedra, carregando consigo o cheiro de chuva e medo. Helena, encolhida atrás de um baú de madeira, pressionava as mãos pequenas contra os ouvidos, tentando abafar as vozes que ecoavam pela casa. Mas era impossível não ouvir.— Não podemos continuar assim, Wilhelm! — A voz da mãe soava cortante, desesperada. — Essa marca... Essa maldição... Ela vai trazer desgraça para todos nós!— Ela é só uma criança — retrucou o pai, mas a hesitação em sua voz era evidente. — Não sabemos se... se é mesmo o que dizem.— Abra os olhos! — A mãe interrompeu, a voz embargada pelo medo. — Todos sabem o que aquela marca significa. O padre Mathias viu! Ele mesmo disse que é obra do demônio. Como podemos manter isso sob nosso teto?Helena apertou ainda mais as mãos contra os ouvidos, como se pudesse afastar aquelas palavras. Os olhos ar