A noite caía pesada sobre o vilarejo, as sombras dançando nas paredes de madeira da pequena casa onde Helena se escondia. O vento uivava através das frestas da pequena casa de pedra, carregando consigo o cheiro de chuva e medo. Helena, encolhida atrás de um baú de madeira, pressionava as mãos pequenas contra os ouvidos, tentando abafar as vozes que ecoavam pela casa. Mas era impossível não ouvir.
— Não podemos continuar assim, Wilhelm! — A voz da mãe soava cortante, desesperada. — Essa marca... Essa maldição... Ela vai trazer desgraça para todos nós!
— Ela é só uma criança — retrucou o pai, mas a hesitação em sua voz era evidente. — Não sabemos se... se é mesmo o que dizem.
— Abra os olhos! — A mãe interrompeu, a voz embargada pelo medo. — Todos sabem o que aquela marca significa. O padre Mathias viu! Ele mesmo disse que é obra do demônio. Como podemos manter isso sob nosso teto?
Helena apertou ainda mais as mãos contra os ouvidos, como se pudesse afastar aquelas palavras. Os olhos ardiam, mas as lágrimas não caiam. Mesmo tão jovem, ela entendia que falavam dela. Sabia que aquela marca, a serpente de pele pálida que se estendia por seu braço, era a razão pela qual as crianças do vilarejo se afastavam. Sabia que era a razão para os olhares de desprezo, para os cochichos sufocados quando passava.
O ranger da porta fez seu coração saltar no peito. A luz da vela tremulava na fresta, projetando sombras alongadas no chão de madeira. Os passos se aproximaram lentamente, até a figura da mãe surgir no vão da porta. Os olhos que a encaravam não eram os de uma mãe — eram olhos de medo e desespero.
— Helena... — sussurrou. — Saia daqui. Agora.
A menina não se moveu. Seu lábio inferior tremia, mas ela não ousava chorar. Não ousava implorar.
A mãe se abaixou, segurando o braço marcado da filha com dedos firmes demais para um gesto de carinho.
— Não me obrigue a fazer isso. Apenas vá... E não volte.
— Ela é nossa filha! — O pai tentou, mas sua voz soava fraca, como se a dúvida o consumisse pouco a pouco. — Não passa de uma criança...
— Uma criança amaldiçoada — interrompeu a mãe, fria. — O padre Mathias tem razão. Se ela ficar, trará desgraça para todos nós.
Helena apertou os joelhos contra o peito, segurando o choro. Lá fora, os trovões rugiam, sacudindo as paredes frágeis da casa. Cada palavra que escutava era uma faca cravada em sua alma. Ela queria gritar, dizer que não era bruxa, que nunca faria mal a ninguém. Mas a voz morreu em sua garganta.
Os passos pesados do pai se afastaram, deixando o silêncio pesaroso para trás. A mãe ficou imóvel por um tempo que pareceu infinito, até que o som de soluços abafados preencheu a casa. Mas não havia carinho naquelas lágrimas. Apenas o lamento de uma mulher que renunciou à própria filha.
Então, a mãe se virou abruptamente, avançando até o baú. Helena se encolheu ainda mais, mas os dedos frios a agarraram pelo braço e a puxaram para fora de seu esconderijo.
— Vá, Helena — a voz da mãe saiu firme, mas vacilava na borda do desespero. — Pegue suas coisas e desapareça.
Helena sacudiu a cabeça, o terror em seus olhos de criança. — Mãe... por favor... — sua voz era um sussurro implorante.
— Agora! — o grito cortou o ar, e antes que pudesse reagir, seu pai, com o rosto tomado pelo sofrimento, a ergueu do chão e a carregou até a porta.
A tempestade rugia lá fora. A menina se debateu, agarrou-se ao tecido da camisa do pai, mas foi em vão. Com um último movimento, ele a lançou para fora, e a porta se fechou com um estrondo.
Helena foi deixada na escuridão, com apenas a chuva como companhia. Caminhou sem rumo, soluçando, até que o vilarejo ficou para trás e apenas a floresta sussurrava ao seu redor. Quando encontrou a cabana, meio engolida pelo musgo e pelo tempo, sentiu que não havia sido acolhida... apenas tolerada pela solidão que morava ali.
A partir daquela noite, o mundo não era mais seu lar. E ninguém voltaria a pronunciar seu nome com amor.
A cabana era um reflexo de abandono e esquecimento. O teto de palha estava cheio de buracos, por onde a chuva escorria em filetes gelados, pingando no chão de terra batida. As paredes de madeira estavam apodrecidas, tomadas por musgo e teias de aranha que se estendiam como dedos finos e pegajosos. O cheiro era insuportável—uma mistura de mofo, terra molhada e algo podre que talvez fosse um pequeno animal morto em algum canto escuro.
A pequena Helena tremia, não apenas de frio, mas de medo. Cada estalo das tábuas velhas parecia um monstro escondido na escuridão. O vento fazia as folhas secas se arrastarem pelo chão, como sussurros de vozes invisíveis. Ela se encolheu em um canto, abraçando os próprios joelhos, desejando desaparecer, desejando que tudo não passasse de um pesadelo.
Mas o pesadelo era real.
E agora, ninguém viria salvá-la.
O sol nascente tingia o céu com tons dourados e alaranjados quando Helena abriu a pequena janela de madeira, deixando a brisa fresca da manhã invadir a cabana. O ar carregava o cheiro úmido da terra e o canto distante dos pássaros que despertavam junto com o dia.Durante anos, aquele lugar que fora um refúgio miserável se tornara seu lar. A estrutura que antes ameaçava desmoronar agora estava reforçada com tábuas novas e musgo removido das paredes. O teto, antes perfurado pela chuva, fora consertado com cuidado, impedindo que as águas tempestuosas invadissem seu abrigo. O chão de terra batida dera lugar a um revestimento de madeira rústica, e o cheiro de mofo foi substituído pelo aroma das ervas secando em pequenos feixes pendurados no teto.A lareira crepitava suavemente no canto da cabana, aquecendo a chaleira de ferro onde a água fervia para o chá da manhã. Em uma mesa simples, porém bem cuidada, repousavam pequenos potes de barro contendo ervas e unguentos que ela mesma preparava.
O calor do fogo na lareira tornava a cabana aconchegante enquanto Helena mexia uma panela de ferro sobre as chamas. O cheiro de ervas e legumes cozinhando preenchia o ar, e o suor já umedecia sua nuca. Cozinhar era uma tarefa simples, mas necessária, e ela se permitia aproveitar o momento em silêncio.Foi então que ouviu os animais. O balido alto das cabras, o mugido aflito de Branca e os grunhidos nervosos dos porcos. Seu coração acelerou. Esse tipo de alarde nunca era bom sinal.Limpando as mãos no avental, Helena se dirigiu à porta, o corpo tenso. Pegou uma faca que sempre deixava por perto—não que ela soubesse lutar, mas a mera sensação de ter algo nas mãos lhe dava uma falsa segurança. Respirou fundo antes de puxar a tranca e abrir a porta.O que viu fez seu estômago se revirar.Um homem estava parado ali, oscilando entre um passo e outro, como se o próprio corpo estivesse prestes a ceder. Ele era imenso—assustadoramente alto e absurdamente forte, mesmo com a armadura rachada e o
Helena ainda estava sentada no chão, recuperando o fôlego, quando seus olhos caíram sobre a armadura do guerreiro. Era um emaranhado de ferro pesado, rachado e coberto de sujeira e sangue seco. Se ele precisava de cuidados urgentes, a primeira coisa a fazer era se livrar daquilo.— Ótimo, mais trabalho para mim… — murmurou, passando a mão no rosto.Ela se aproximou e começou a desfazer as correias de couro que mantinham as peças unidas. Algumas estavam tão apertadas e rígidas que seus dedos doíam ao tentar afrouxá-las.— Quem foi que te vestiu, homem? Um ferreiro com raiva da humanidade?Depois de alguns minutos de luta, a primeira peça caiu com um baque surdo no chão de madeira. Seguiram-se os ombreiros e a couraça, revelando um peitoral coberto de hematomas, arranhões e cortes abertos. A pele quente, marcada por cicatrizes antigas, se esticava sobre músculos firmes.Helena parou. Engoliu em seco.Seu rosto esquentou no mesmo instante.— Isso não importa — murmurou para si mesma, vol
Helena acordou com um sobressalto ao ouvir um gemido grave e raivoso preencher a cabana. Antes que pudesse reagir, um grito ecoou pelo cômodo.— O que diabos você fez comigo?! — a voz do guerreiro saiu carregada de fúria. Ele tentou se mexer, mas seu corpo recusava-se a obedecer. — Meu corpo…! Eu não consigo me mover! O que você fez, maldita bruxa?!Os olhos dele ardiam com uma mistura de ódio e desespero. Helena cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha, impassível.— Leite de papoula — respondeu, com um sorriso sarcástico. — Você estava choramingando de dor, achei que um grande guerreiro como você não fosse tão sensível.Ele rosnou, os músculos se retesando apesar da dormência.— Veneno. Você me envenenou.Helena soltou uma risada curta, sacudindo a cabeça.— Sim, claro. Minha estratégia brilhante foi arrastar um homem do tamanho de um cavalo para dentro da minha casa, limpar seu sangue imundo do meu chão e depois matá-lo lentamente. Faz todo o sentido.Os olhos do guerreiro se estr
O fogão era simples, construído em pedra e argila, com um espaço para acomodar a lenha que mantinha o fogo aceso. Pequenas rachaduras nas laterais testemunhavam os anos de uso, mas ainda cumpria bem seu papel. Acima dele, uma grade de ferro envelhecido servia de suporte para panelas e chaleiras. O calor irradiava do braseiro, iluminando o ambiente com um brilho alaranjado e lançando sombras dançantes pelas paredes da cabana.Helena mexeu o mingau mais uma vez, apenas por hábito, antes de se virar. Seu olhar pousou no guerreiro ainda estirado no colchão improvisado. O cenho dela se franziu.Ele continuava deitado, a expressão fechada e tensa. Foi então que se deu conta: ele não conseguia se mexer. O leite de papoula ainda fazia efeito, impedindo que seu corpo respondesse como deveria.Helena bufou, cruzando os braços.— Então você vai me dar trabalho até para comer? — resmungou, sem esconder a irritação.O guerreiro lançou-lhe um olhar carregado de fúria e constrangimento, mas nada dis
Tristan despertou lentamente, o peso da inconsciência se esvaindo conforme seus sentidos voltavam a funcionar. O primeiro sinal de que algo estava diferente foi a dor. Ainda estava lá, mas não era mais esmagadora. Seus músculos, antes inertes, agora formigavam com um incômodo suportável.Ele piscou algumas vezes, os olhos ajustando-se à luz fraca do interior da cabana. Virou a cabeça devagar e percebeu que estava sozinho. A bruxa não estava ali.Inspirou fundo e tentou se mover. Para sua surpresa, conseguiu. Seu corpo ainda estava rígido e dolorido, mas já não estava paralisado. Com um gemido baixo, empurrou-se para uma posição semi-sentada, apoiando-se no cotovelo.Foi então que observou ao redor.A cabana era pequena, absurdamente pequena para alguém de seu tamanho. Tudo estava no mesmo cômodo—cama, mesa, lareira, prateleiras improvisadas abarrotadas de potes de barro e ervas secas. O cheiro de terra, fumaça e alguma mistura de ervas desconhecidas impregnava o ar.Ele franziu o cenh
Helena estava sentada em seu pequeno sofá improvisado, feito de fardos de palha cobertos com um tecido grosso, costurado por suas próprias mãos. O móvel era simples, mas servia ao seu propósito.Seus dedos tamborilavam sobre a coxa enquanto olhava para a porta, preocupada.Horas haviam se passado. O sol já começava a se despedir no horizonte, tingindo o céu com tons alaranjados. O guerreiro ingrato foi embora sem dizer nada. E se estivesse ferido? E se tivesse caído morto em algum lugar da floresta?Ela suspirou, balançando a cabeça.— Que morra, então — murmurou para si mesma.Antes que pudesse aprofundar-se no pensamento, a porta foi aberta com um baque forte.Helena sobressaltou-se.Tristan surgiu na soleira, sujo de sangue e carregando uma quantidade absurda de carne crua em suas mãos. O cheiro ferroso do sangue fresco preencheu o ar enquanto ele caminhava até a mesa e, sem cerimônia, jogava tudo ali com um baque úmido.— Cozinhe, mulher.Helena piscou.Depois piscou de novo.Depo