Prólogo
A luz da manhã entrava pela janela, mas eu não conseguia sentir seu calor. Sentada na cama desfeita, o silêncio da casa parecia ecoar as palavras que eu não conseguia pronunciar. O coração ainda pulsava acelerado, e a imagem dele, a expressão de desespero e culpa, se repetia em minha mente. “Cíntia, eu nunca quis que você soubesse assim.” As palavras soavam como uma lâmina, cortando o que restava da confiança que construímos ao longo dos anos. A traição não era apenas um ato; era um golpe na alma, uma reviravolta que eu nunca poderia ter imaginado. Levantei-me e fui até a janela, observando a fazenda que agora era tudo o que eu tinha. A terra que um dia parecia um lar agora era um campo de batalha entre o que fui e o que precisava me tornar. Eu fui a esposa obediente e boazinha, mas isso não tinha me levado a lugar nenhum. Lembrei-me das promessas feitas, das risadas compartilhadas. A lembrança do meu ex-marido me enchia de raiva. Por muitas vezes, me questionei onde eu havia errado. Havia casado com Alonso aos 17 anos, acreditando que ele era o amor da minha vida, que seríamos felizes para sempre juntos. O para sempre durou sete anos. Eu me sentia traída, humilhada, exposta. Nunca havia gostado da Júlia; ela tinha uma obsessão doentia pelo Fernando. Quando não conseguiu ficar com ele, começou a se envolver com meu marido. Por sorte, logo descobri, vi uma mensagem no celular dele marcando um encontro. Decidi segui-lo e, ao chegar lá, vi-a esperando em um apartamento em BH. Naquele dia, vi meu casamento desmoronar. Enquanto respirava fundo, uma nova determinação começou a tomar forma dentro de mim. Eu não poderia deixar que esse capítulo definisse minha vida. Precisava encontrar a força para reescrever minha história, mesmo que fosse doloroso. E, para isso, precisava deixar para trás a imagem dele, da traição e das feridas que me mantinham presa. Desde o dia em que mandei Alonso embora, estava vivendo sozinha. Essa casa era algo que eu não abriria mão. Não o deixaria me humilhar mais publicamente, nem trazer aquela cobra para morar aqui. Com um último olhar para a fazenda, decidi que o que viria a seguir seria um novo começo. Era hora de me redescobrir, e talvez, apenas talvez, descobrir o que significava ser verdadeiramente livre. Precisava colocar um fim na única coisa que me mantinha presa ao Alonso; ainda estávamos casados perante a lei. Precisava arrumar um advogado para me auxiliar na partilha de bens. Não sairia lesada desse casamento, mas Alonso era uma pessoa influente e eu não confiava em nenhum advogado de BH para me ajudar. Pensei no Felipe, mas não queria deixá-lo em uma posição difícil, já que ele também era amigo do Alonso. Levantei-me e comecei a pensar; eu precisava me desvincular do meu ex-marido rapidamente. Peguei meu celular e disquei o número da Carol. Como ela já havia morado em São Paulo, deveria conhecer algum advogado de lá, e ela já havia mencionado que o namorado de sua mãe era dono de um escritório de advocacia. — Cíntia, tudo bem? — ela pergunta ao atender. A Carol era uma pessoa maravilhosa; eu gostava muito dela. — Na verdade, eu preciso da sua ajuda. — Pode falar, querida. Como posso ajudar você? — ela pergunta, e hesito momentaneamente. — Você sabe que ainda não me divorciei perante a lei. — Sim, você mencionou isso. — Preciso colocar uma pedra sobre essa história e entrar com o processo de partilha de bens. Mas não confio em nenhum advogado de BH. O Alonso é muito influente; não confio em ninguém para fazer meu divórcio. Você conhece alguém de São Paulo, da sua confiança, que poderia me ajudar? — pergunto, e ela fica quieta por um breve instante. — Na verdade, Cíntia, eu conheço uma pessoa que pode te ajudar.A cidade de Belo Horizonte parecia mais caótica do que nunca naquela manhã. Eu dirigia, tentando ignorar os pensamentos que me atormentavam, quando um carro preto surgiu do nada, fechando meu caminho. — Que idiota! — gritei, o coração acelerado pela raiva. Olhei para o motorista, um homem com expressão confusa, e não pude deixar de me sentir insultada. A última coisa que eu precisava era de mais um estresse. Ele não me viu, mas o olhar que lancei em sua direção foi suficiente para saber que aquele cara não tinha ideia do que estava fazendo. Dirigi em frente, segurando o volante com força, tentando acalmar a tempestade dentro de mim. Um segundo depois, avistei um estacionamento e parei lá. Ao estacionar, respirei fundo e saí do carro. O ateliê da Carol estava logo à frente, e a ideia de vê-la me deixou animada. Ela também mencionara que o advogado que poderia me auxiliar na partilha dos bens chegaria hoje. Era hora de esquecer a raiva por alguns minutos. Empurrei a porta do ate
HenriqueA viagem para Belo Horizonte não era algo que eu esperava fazer tão cedo. Receber o convite da Carol para ajudar uma amiga sua foi uma surpresa, mas recusar? Isso não estava em meus planos. Eu devia isso a ela. Ao mesmo tempo, havia uma inquietação que eu não podia negar, um nó no estômago que me acompanhava desde que recebi a mensagem.Carol e eu tínhamos terminado há muito tempo, mas estar na mesma cidade que ela, sabendo que ela tinha seguido em frente, era algo que eu ainda precisava processar. Afinal, nem sempre um término é tão simples. Ainda mais quando nem houve um relacionamento de fato. Não era o que ela queria; mais tarde eu percebi que ela gostava do Fernando, e essa revelação ainda doía, mesmo que eu tentasse ignorar.Quando ela me pediu ajuda com questões legais, minha primeira reação foi hesitar. Aquelas antigas emoções ainda persistiam, como sombras que eu pensava ter deixado para trás. Talvez orgulho, ou apenas o incômodo de saber que ela estava bem e seguind
Sinto minha cabeça latejar e mal posso acreditar que isso esteja acontecendo comigo. — Saia daqui agora! — falo, tentando manter a compostura, embora minhas mãos estejam tremendo de forma incontrolável. Olho para a mulher à minha frente que exibe um sorriso cínico no rosto, mas sabia que a única coisa que ela estava fazendo era tentar me desestabilizar. Ela sabia exatamente onde atacar. — Cíntia, é egoísmo da sua parte querer ficar com uma propriedade deste tamanho quando o Alonso e eu só queremos construir nossa família juntos. E é claro que esse é o lugar mais adequado para isso. — Júlia olha ao redor, como se já pudesse visualizar tudo. — Já até imagino os filhos que teremos, frutos de muito amor, correndo por essa sala gigantesca. Meu coração parece apertar no peito. Não sabia como Júlia havia conseguido entrar dentro da propriedade, mas também não era tão difícil. Eu não possuía um sistema de proteção com seguranças como a fazenda Belmonte, mas sabia que precisaria da ajuda
— Quer conversar sobre o que aconteceu? — Henrique perguntou, sua voz calma, quase cuidadosa, como se temesse ultrapassar um limite invisível. Minhas mãos se apertaram involuntariamente no volante, e pela primeira vez me perguntei: Será que posso confiar nele? Havia algo em seu tom que soava genuíno, mas, depois de tudo o que passei, confiança era algo que eu já não distribuía tão facilmente. Eu sabia muito pouco sobre ele. Ele era apenas alguém de confiança da Carol, o que deveria ser o suficiente. Deveria. No entanto, havia algo nele, algo que me deixava intrigada. Talvez fosse o jeito como ele mantinha a calma diante de todo o caos da minha vida, ou o fato de que, mesmo sendo meu advogado, ele parecia enxergar além das questões legais. Mesmo assim, eu tentava lembrar a mim mesma: ele está aqui apenas para me ajudar, Cíntia. Só para isso. Mas, no fundo, sentia que era mais do que isso. — A Júlia é a mulher com quem o Alonso me traiu, eles vivem uma relação pública desde então… — s
A chuva continuava a cair lá fora, sem cessar. Henrique também conseguiu um cobertor para se aquecer e sentou-se ao meu lado. Eu geralmente gostava da chuva, quando estava no conforto da minha casa, mas isso aqui era literalmente uma tempestade. Eu estava no meio de um temporal com um desconhecido, sem saber o que sobraria do meu carro após a chuva, ou o que restaria de mim após o divórcio. Todas as situações da minha vida estavam particularmente difíceis. — O que está pensando? — Henrique pergunta, quebrando o silêncio entre nós. Se não fosse o barulho da chuva, parecendo que o teto desabaria a qualquer momento sobre nossas cabeças, estaríamos no mais profundo silêncio. — O quanto minha vida está literalmente uma tempestade. — Falo e ajeito mais o cobertor que não conseguia me aquecer por conta da roupa molhada. — Estou no meio de uma tempestade com um desconhecido… — digo e me arrependo de repente. Eu não deveria ter falado isso. — Cíntia, eu não tenho culpa da chuva. — Ele diz
Na manhã seguinte, a tempestade havia cessado, mas a realidade ainda pesava sobre nós. Estava em Minas, um lugar desconhecido, e, embora a chuva tivesse dado uma trégua, sabíamos que ainda teríamos que voltar para algum lugar. A ligação da Ana me contou sobre a situação da Cíntia e como a Júlia a intimidou, e eu quis estar lá para oferecer apoio, não apenas jurídico, mas humano. O que eu não esperava era acabar preso em uma cabana abandonada durante uma tempestade. Enquanto olhava para Cíntia, percebia que uma conexão estava se formando entre nós. Ela era arisca, e eu entendia que sua defensividade era um reflexo de tudo o que havia enfrentado até agora. Mas, mesmo sob aquelas circunstâncias adversas, era inegavelmente linda. A forma como seus cabelos claros caíam em mechas soltas emoldurava seu rosto, e o olhar determinado que ela tinha me atraía de um jeito que eu não conseguia explicar. — Henrique, agora que está claro, consigo visualizar melhor onde estamos. Não fica muito lon
Choveu por mais alguns dias, e precisei acionar o seguro por conta dos danos da tempestade. Enquanto isso, estava com um carro provisório. Sabia que Henrique ainda estava em Belo Horizonte; a Carol havia mencionado que ele estava trabalhando com alguns clientes na cidade e que ficaria mais alguns dias antes de ir para São Paulo. Embora não tivesse o número dele, a Ana havia conversado com Henrique a meu pedido e marcamos de nos encontrar para discutir o divórcio. Estava cansada de parecer e demonstrar fraqueza; precisava tomar as rédeas da minha vida. A Ana e o Felipe estavam morando comigo, e eu me sentia muito bem na presença deles; juntos, estávamos construindo uma parceria inabalável. O dia amanheceu nublado, mas havia um certo alívio no ar. A tempestade havia passado, e agora era hora de enfrentar a realidade. Essa não era apenas uma questão legal; era uma nova etapa da minha vida. A Carol havia me avisado que Henrique estaria me esperando no ateliê para a nossa conversa. Quan
Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, Alonso receberia os papéis do litígio. Estava preparada para um confronto, mas quando ele apareceu na fazenda, algo dentro de mim estremeceu. O coração acelerou por um breve momento, como se uma parte de mim ainda esperasse por algo que eu não conseguia nomear. Não era amor… não podia ser. Ele chegou à minha porta no final da tarde, sem aviso prévio, com a mesma postura de sempre: a confiança quase arrogante, o jeito de quem nunca aceitava ser deixado de lado. Fiquei parada por um instante, observando-o. Vestido casualmente, com os cabelos um pouco desalinhados, ele parecia mais… humano do que o homem que eu conhecia. A tempestade que nos cercava parecia se intensificar dentro de mim. — Cíntia — ele disse, com uma voz que trazia um peso quase palpável. — Podemos conversar? Minha primeira reação foi defensiva. Cruzei os braços, como se pudesse me proteger do que quer que ele estivesse prestes a dizer. Eu estava firme, ou pelo menos queria estar