— Quer conversar sobre o que aconteceu? — Henrique perguntou, sua voz calma, quase cuidadosa, como se temesse ultrapassar um limite invisível. Minhas mãos se apertaram involuntariamente no volante, e pela primeira vez me perguntei: Será que posso confiar nele? Havia algo em seu tom que soava genuíno, mas, depois de tudo o que passei, confiança era algo que eu já não distribuía tão facilmente.
Eu sabia muito pouco sobre ele. Ele era apenas alguém de confiança da Carol, o que deveria ser o suficiente. Deveria. No entanto, havia algo nele, algo que me deixava intrigada. Talvez fosse o jeito como ele mantinha a calma diante de todo o caos da minha vida, ou o fato de que, mesmo sendo meu advogado, ele parecia enxergar além das questões legais. Mesmo assim, eu tentava lembrar a mim mesma: ele está aqui apenas para me ajudar, Cíntia. Só para isso. Mas, no fundo, sentia que era mais do que isso. — A Júlia é a mulher com quem o Alonso me traiu, eles vivem uma relação pública desde então… — suspirei, sentindo o amargor invadir minha garganta. — Ela foi lá na fazenda hoje me confrontar. A simples menção do nome dela fez meu estômago revirar. Cada palavra trazia de volta a dor, como se estivesse revivendo cada segundo daquele encontro humilhante. — Isso é muito desconfortável, Cíntia — Henrique respondeu, sua voz baixa, mas com uma firmeza que indicava que ele entendia o peso do que eu tinha dito. Balancei a cabeça, sentindo o desdém subir à superfície. — Ela pediu para que eu saísse da propriedade, já que eles pretendem construir uma família lá — falei, minha voz carregada de uma ironia amarga, quase rindo de como tudo parecia absurdo. Henrique me olhou, sua expressão endurecida de indignação. — Eu imagino o quanto isso deve ter sido péssimo para você. Ela jamais poderia ter feito isso, já que a propriedade será partilhada durante o processo de divórcio. Cíntia, podemos solicitar o litígio para uma dissolução rápida do casamento, ainda mais depois da intimidação que você sofreu. Suspirei, fechando os olhos por um momento. — Eu só quero que esse pesadelo chegue ao fim logo, eu preciso seguir a minha vida — respondi, tentando controlar a exasperação que se acumulava no fundo do meu peito. Quando chegamos ao povoado, já estava próximo da hora do almoço, e a fome me atingiu com força. O estômago roncava, mas não era só isso. Havia uma exaustão emocional que me deixava vazia. Estacionei o carro em um restaurante local, um lugar simples, mas que exalava aquele cheiro acolhedor de comida caseira. — Está com fome? — perguntei, tentando afastar a tempestade interna por um momento. — Sem dúvidas — ele respondeu com um sorriso breve. Entramos no restaurante, e o ambiente aconchegante, com o aroma de comida caseira se espalhando pelo ar, me trouxe uma paz temporária. Henrique escolheu uma mesa perto da janela, e eu notei o céu se enchendo de nuvens escuras. O clima parecia refletir o caos dentro de mim. — Então, o que você recomenda? — Henrique perguntou, seu tom leve, como se tentasse aliviar a tensão. Sua expressão divertida me fez relaxar, mesmo que por um instante. — Tudo aqui é bom — respondi, sorrindo pela primeira vez em horas. — Mas eu sou suspeita, sempre peço o mesmo prato. — Deixe-me adivinhar… lasanha? — Ele sorriu de canto, um brilho malicioso no olhar. — Por acaso, sim — admiti, soltando uma risada breve. Durante o almoço, a conversa fluiu de uma maneira surpreendentemente leve. A seriedade de Henrique parecia ter se dissipado um pouco, revelando um lado mais acessível e humano. Ele falava de maneira descontraída, e eu me peguei relaxando, algo que não acontecia há tempos. Quando o barulho de trovões distantes interrompeu nossa conversa, olhei pela janela e vi as nuvens negras dominando o horizonte. — Parece que o tempo vai virar — comentei, um nó se formando em meu estômago. A estrada de volta seria complicada. Henrique olhou para fora, franzindo o cenho. — Acho melhor voltarmos logo, não? A estrada pode ficar complicada com chuva. Concordei, e em poucos minutos já estávamos de volta à caminhonete. O vento estava ficando mais forte, e as primeiras gotas de chuva começaram a bater no para-brisa, rápidas e pesadas. O céu escureceu de repente, como se a tempestade tivesse esperado até estarmos na estrada para desabar. Dirigi com cautela, mas quando a chuva se intensificou, soube que estávamos em apuros. As gotas grossas transformaram a estrada em um mar de lama, e a caminhonete começou a derrapar. — Cíntia, talvez seja melhor pararmos — Henrique sugeriu, sua voz firme, mas calma. — Se continuar assim, vamos ficar atolados. O medo apertou meu peito. Ele tinha razão. As rodas já lutavam contra a lama, e a visibilidade estava quase nula. — Vou parar ali — apontei para uma elevação de terra. Quando desliguei o motor, soltei um suspiro que nem percebi que estava segurando. A chuva batia com força no teto da caminhonete, e o vento fazia o carro balançar levemente. O medo da tempestade era real, mas havia também uma inquietação silenciosa crescendo entre nós. — Parece que ficaremos presos aqui por um tempo — Henrique disse, sua preocupação evidente. Olhei para ele, minha mente correndo com as possibilidades. A chuva estava tão intensa que poderia arrastar o carro para longe se ficasse assim por mais tempo. — A chuva vai arrastar o carro — murmurei, sentindo o pânico crescer. — O que pretende fazer, Cíntia? Engoli em seco, tentando pensar com clareza. Ele confia em você, lembrei a mim mesma. — Vamos procurar abrigo. Apenas me siga — falei, decidida. — Acho que tem uma propriedade por aqui. Estamos longe da fazenda Belmonte e da minha casa. Desci do carro, e a chuva fria me atingiu como um golpe. O vento era tão forte que quase me derrubou. Henrique saiu logo atrás, lutando contra a tempestade. — Cíntia, isso está ficando pior! — ele gritou, e o som de sua voz quase se perdeu no barulho ensurdecedor da chuva. — Eu sei! Temos que nos abrigar logo! O caminho até a casa abandonada foi uma luta contra o vento e a lama. Minhas roupas encharcadas grudavam na pele, o frio me cortava, mas continuei, sabendo que Henrique estava logo atrás de mim. Quando finalmente avistamos a silhueta da casa, soltei um suspiro de alívio. Entramos na pequena casa de campo, o som da tempestade do lado de fora ecoando no telhado de zinco. Henrique se aproximou de mim, estendendo a mão para me ajudar a levantar do chão onde eu tinha caído, exausta. Quando nossos olhares se encontraram, havia algo em seus olhos que me fez prender a respiração. Uma intensidade que eu não esperava, um cuidado silencioso. — Você está bem? — ele perguntou, sua voz suave, quase protetora. Assenti, sentindo um arrepio que não era só por causa do frio. O toque dos dedos dele em minha pele molhada deixou um rastro quente, como se algo invisível nos conectasse. O cansaço, o frio, a tensão — tudo parecia secundário diante daquela conexão inesperada. Henrique se afastou por um momento, procurando ao redor até encontrar alguns cobertores velhos. Ele sacudiu a poeira e me envolveu em um deles. — Isso deve ajudar — murmurou, seus olhos fixos nos meus. Me encolhi sob o cobertor, sentindo a calidez de seu gesto mais do que o calor real. A tensão entre nós era palpável, como a tempestade que nos cercava, mas diferente. Havia algo não dito, algo crescendo ali, no silêncio.PrólogoA luz da manhã entrava pela janela, mas eu não conseguia sentir seu calor. Sentada na cama desfeita, o silêncio da casa parecia ecoar as palavras que eu não conseguia pronunciar. O coração ainda pulsava acelerado, e a imagem dele, a expressão de desespero e culpa, se repetia em minha mente.“Cíntia, eu nunca quis que você soubesse assim.” As palavras soavam como uma lâmina, cortando o que restava da confiança que construímos ao longo dos anos. A traição não era apenas um ato; era um golpe na alma, uma reviravolta que eu nunca poderia ter imaginado.Levantei-me e fui até a janela, observando a fazenda que agora era tudo o que eu tinha. A terra que um dia parecia um lar agora era um campo de batalha entre o que fui e o que precisava me tornar. Eu fui a esposa obediente e boazinha, mas isso não tinha me levado a lugar nenhum.Lembrei-me das promessas feitas, das risadas compartilhadas. A lembrança do meu ex-marido me enchia de raiva. Por muitas vezes, me questionei onde eu havia
A cidade de Belo Horizonte parecia mais caótica do que nunca naquela manhã. Eu dirigia, tentando ignorar os pensamentos que me atormentavam, quando um carro preto surgiu do nada, fechando meu caminho. — Que idiota! — gritei, o coração acelerado pela raiva. Olhei para o motorista, um homem com expressão confusa, e não pude deixar de me sentir insultada. A última coisa que eu precisava era de mais um estresse. Ele não me viu, mas o olhar que lancei em sua direção foi suficiente para saber que aquele cara não tinha ideia do que estava fazendo. Dirigi em frente, segurando o volante com força, tentando acalmar a tempestade dentro de mim. Um segundo depois, avistei um estacionamento e parei lá. Ao estacionar, respirei fundo e saí do carro. O ateliê da Carol estava logo à frente, e a ideia de vê-la me deixou animada. Ela também mencionara que o advogado que poderia me auxiliar na partilha dos bens chegaria hoje. Era hora de esquecer a raiva por alguns minutos. Empurrei a porta do ate
HenriqueA viagem para Belo Horizonte não era algo que eu esperava fazer tão cedo. Receber o convite da Carol para ajudar uma amiga sua foi uma surpresa, mas recusar? Isso não estava em meus planos. Eu devia isso a ela. Ao mesmo tempo, havia uma inquietação que eu não podia negar, um nó no estômago que me acompanhava desde que recebi a mensagem.Carol e eu tínhamos terminado há muito tempo, mas estar na mesma cidade que ela, sabendo que ela tinha seguido em frente, era algo que eu ainda precisava processar. Afinal, nem sempre um término é tão simples. Ainda mais quando nem houve um relacionamento de fato. Não era o que ela queria; mais tarde eu percebi que ela gostava do Fernando, e essa revelação ainda doía, mesmo que eu tentasse ignorar.Quando ela me pediu ajuda com questões legais, minha primeira reação foi hesitar. Aquelas antigas emoções ainda persistiam, como sombras que eu pensava ter deixado para trás. Talvez orgulho, ou apenas o incômodo de saber que ela estava bem e seguind
Sinto minha cabeça latejar e mal posso acreditar que isso esteja acontecendo comigo. — Saia daqui agora! — falo, tentando manter a compostura, embora minhas mãos estejam tremendo de forma incontrolável. Olho para a mulher à minha frente que exibe um sorriso cínico no rosto, mas sabia que a única coisa que ela estava fazendo era tentar me desestabilizar. Ela sabia exatamente onde atacar. — Cíntia, é egoísmo da sua parte querer ficar com uma propriedade deste tamanho quando o Alonso e eu só queremos construir nossa família juntos. E é claro que esse é o lugar mais adequado para isso. — Júlia olha ao redor, como se já pudesse visualizar tudo. — Já até imagino os filhos que teremos, frutos de muito amor, correndo por essa sala gigantesca. Meu coração parece apertar no peito. Não sabia como Júlia havia conseguido entrar dentro da propriedade, mas também não era tão difícil. Eu não possuía um sistema de proteção com seguranças como a fazenda Belmonte, mas sabia que precisaria da ajuda