Maya
O despertador tocou às quatro da manhã. Levantei e segui para o banheiro. Se eu não amasse tanto a medicina, já teria abandonado essa carreira. O trabalho estava tomando todo o meu tempo com as minhas filhas. Quando foi que as coleguinhas começaram a namorar? Não faz muito tempo e elas estavam vestidas de princesas, calçando pantufas de unicórnio, usando asas enormes e chifres brilhantes na cabeça. Agora elas querem saber quando podem namorar e fofocam sobre o término dos outros.
— Se você estivesse aqui, Victor... Surtaria.
Vestida, desci para a cozinha. Na cafeteira, o café havia acabado de ficar pronto. Servi um copo térmico para a viagem e vesti o meu casaco. A porta dos fundos foi aberta e meu pai passou por ela.
— Bom dia, querida.
— Bom dia, pai. — Dei-lhe um beijo no rosto. — Já vou indo. Dê um beijo nelas por mim quando acordarem. E não deixe a Louise te enrolar com o horário. Ela não perdeu os sapatos nem o papel importante para a aula. Elas não podem perder o primeiro tempo da aula pela sétima vez no mês. Seja mais duro com elas. — Estreitei os olhos para ele.
— Eu sou o avô. Não me peça isso.
— Se a escola me ligar outra vez, é você quem irá à reunião levar um belo puxão de orelha.
Ele riu.
— Entendido.
— Tchau. — Saí pela porta dos fundos e entrei no carro.
Fiz o trajeto ouvindo o noticiário das quatro e meia no rádio. Quando cheguei no estacionamento do hospital, a Harley Davidson passou por mim indo até a última vaga no estacionamento. Aquela era a vaga mais longe da entrada. E quem ficava com ela, era eternamente chamado de "o azarado". Estacionei o carro na minha vaga e desci. Gutierrez tirou o capacete e olhou para trás, diretamente para mim. A sua cara não era das melhores. Um sorriso debochado surgiu na minha face antes que eu pudesse evitá-lo. Dando-lhe as costas, caminhei para dentro do hospital.
Após me preparar, encontrei com a minha equipe de internos e deleguei a função de cada um naquele dia. Aproximei-me do quadro de cirurgia e vi que meu nome estava em outro caso médico. Eu auxiliaria hoje em uma... em uma...
— Cirurgia Plástica? — perguntei para mim mesma. — Quem foi que colocou meu nome nesse caso? — Olhei para as pessoas que circulavam naquele andar.
— Fui eu! — A voz do Gutierrez veio da direção dos elevadores. — Será uma grande cirurgia e eu preciso dos melhores. Carson disse que você é melhor, então...
— Meu nome já estava nessa quadro ontem à noite — interrompi-o. — Tenho uma cirurgia em quatro horas com o doutor McKesson.
— Eu sei.
— Com qual autoridade me tirou dessa cirurgia? — perguntei irritada, dando um passo na sua direção.
— Com a minha de cirurgião-chefe. — Sorriu. — E quando eu pedi você ao McKesson, ele nem hesitou em me ceder. — Virou as costas, indo embora. — Você não vem? — perguntou ao parar em frente aos elevadores.
Respirando fundo e engolindo a minha vontade de pular no seu pescoço, andei até ele. Era uma cirurgia de transplante cardíaco. Há meses estava acompanhando aquele paciente. McKesson me disse que quando conseguíssemos o coração, eu seria sua auxiliar. Eu!
— Engole um pouco mais dessa sua raiva — disse baixinho, para que apenas eu pudesse ouvir. Olhei-o com a mandíbula contraída. — Hoje você é minha, dra. White! — falou com a voz mais firme e grossa. Seu olhar tentava penetrar o meu de maneira como se quisesse ler a minha mente.
As portas do elevador se abriram e nós entramos. Quando chegamos ao quarto andar, seguimos até um quarto que estava com as persianas fechadas e tinha um segurança na porta.
— Quem é o paciente? — perguntei para Gutierrez.
Ele sorriu e abriu a porta, dando-me passagem. Quando entrei no quarto, mal pude crer em quem estava vendo sentada na cama. Era Florence Waters. A queridinha do cinema nos anos noventa.
— Bom dia, Florence — ele a cumprimentou, dando a volta na cama e beijando o seu rosto com grande afinidade.
— Não sabe como estou feliz em ver você outra vez. — Selou os lábios dele, me pegando de surpresa e deixando-me desconcertada.
— Também estava com saudade. — Sentou-se na beirada da sua cama.
— Eu atravessei o país para ter as mãos desse homem em mim — disse ela, com um tom sugestivo, olhando para mim.
Forcei um sorriso.
— Muito prazer em conhecê-la, sra. Waters. Eu sou a doutora Maya White e vou auxiliar o dr. Gutierrez na sua cirurgia.
— Já disse a ela o que vamos consertar desta vez? — perguntou ela, rindo.
— Vamos fazer uma vaginoplastia. Florence vai renovar os votos com o seu marido e quer novos lábios para a lua de mel — explicou ele, sorrindo para ela.
A mulher riu contente e bateu palmas como se a cortina do teatro tivesse acabado de se fechar. Meus olhos se reviraram involuntariamente ao mesmo tempo que suspirei fundo. Apanhei o seu prontuário e avaliei rapidamente todos os exames pré-operatórios.
— Todos os exames já foram feitos e os resultados foram ótimos. Assim que der a hora, venho buscar você para a cirurgia. Mas agora, se me dão licença... — Caminhei em direção à porta.
— Já transou com ela? — perguntou Florence para Gutierrez.
— Não faz o meu tipo.
Olhei para eles, chocada com a falta de respeito. Saí do quarto e nem sequer me dei o trabalho de fechar a porta. Eu não estava crendo que fui retirada de um transplante de coração, a um mês da conclusão da residência, para ajudar a melhorar a aparência da vagina de alguém.
A raiva me consumia por dentro, deixando-me muito agitada. Segui para a cafeteria e lá estava Carson.
— Você viu o que aquele ridículo fez? — perguntei para ele.
— Quem?
— O seu cirurgião plástico!
— O que ele fez? — perguntou sério.
— Ele me tirou do caso John. Você sabe que estou desde o começo do ano acompanhando-a, e a cirurgia é hoje!
— E por que ele fez isso?
— Para me provocar.
Carson respirou fundo.
— O que o dr. McKelsson disse sobre isso?
— Ele me entregou de mãos beijadas para o Gutierrez.
— Bom... Se ele cedeu você, nada posso fazer, Maya, você sabe disso.
— Ele diz precisar de mim para reformar a vagina de alguém. Aquele medicosinho não precisa de mim para isso! — falei alto, muito irritada.
— Quem disse que não? — A voz de Gutierrez reverberou logo atrás de mim.
MayaCarson rapidamente apanhou o seu café sobre o balcão e deu o fora dali. Virei-me para o homem irritante.— Não acredito que veio chorar para o chefe geral da cirurgia. Quantos anos tem? Quinze? Que mimada!Aproximou-se da atendente e pediu a ela um café gelado.— Eu não sou mimada! — Cruzei os braços. — Estou com raiva, porque sei que está fazendo isso por implicância! Estou nesse caso há muito tempo, e você tirou de mim a maior oportunidade que eu poderia ter antes da minha especialização. Muito obrigada por nada, dr. Gutierrez!Afastei-me, deixando-o para trás.A cirurgia estava marcada para dali três horas. Até que fosse chegado o momento de me preparar para ela, segui acompanhando os meus internos pelos seus afazeres e depois dei uma rápida passada na emergência.Às dez, tranquei a galeria e fechei as cortinas. Florence não queria e nem precisava de internos curiosos assistindo a suas partes íntimas. Ao entrar no centro cirúrgico, ela já estava a postos na maca, prestes a rece
MayaMeus pés mal pisaram no hospital para um belíssimo plantão de trinta horas, e Carson chamou por mim em sua sala. Ao abrir a porta, logo o avistei de pé do outro lado da sua mesa, mas só depois de entrar, é que vi Gutierrez ali também. Olhei para ele e depois para o nosso chefe.— Algum problema? — perguntei ao notar as feições fúnebres.— Florence está nos processando — disse Carson após um longo suspiro.— O quê? — perguntei embasbacada. — Por quê? — Olhei para Gutierrez.— Uma arritmia cardíaca já foi diagnosticada em fevereiro deste ano. E ela está alegando que eu sabia.Respirei fundo.— E você sabia? — Olhei-o com um pouco de julgamento.— Não, eu não sabia. Mas ela acha que sim, porque há seis meses, quando foi diagnosticada, eu ainda trabalhava em Chicago, no mesmo hospital onde ela tratou com a cardiologia. Porém, ninguém nunca me disse nada. Já faz mais de um ano desde a última plástica que ela realizou comigo.— Mas que merda! O que acontece agora? — perguntei para Carso
MayaEstávamos em um momento de descanso e descontração até que alguém parado na porta, segurando uma bandeja, chamou a minha atenção. Meus olhos se encontraram com os de Gutierrez. O canto do seu lábio se ergueu em um sorriso um tanto provocativo e ele caminhou na nossa direção. Olhei para o copo de café que tinha nas mãos e respirei fundo, revirando os olhos.— E aí, pessoal? — perguntou ele, sentando-se na cadeira vazia ao meu lado.Novamente o seu perfume entranhou no meu nariz.— Ainda não tivemos a chance de ser apresentados — disse um dos homens à mesa.— Sorte a sua — falei, baixinho.Senti os olhos de Gutierrez em cima de mim.— Ainda não perdoou ele por ter estacionado na sua vaga? — perguntou June.— Perdoar inconveniência é algo muito complicado. — Olhei para Augustus.Ele sorriu.— Eu não sabia que a vaga era sua.— O meu nome estava escrito nela. Não sabe ler, doutor?Alguém à mesa deixou escapar um risinho.Os olhos de Gutierrez estreitaram para mim.— Então está me tra
GusTrinta dias se passaram, e descobri algo em que Maya é muito boa: ignorar as pessoas. Nesse caso, me ignorar. Ela mal olha para mim, e quando faz, o seu olhar penetra o meu rudemente acompanhado de palavras ásperas que formam frases que, às vezes, abala a minha paciência. Ela sabe exatamente onde cutucar, e quando fazer isso. É irritante!Entrei no vestiário e, sem querer, a vi de sutiã enquanto se trocava para ir embora. Rapidamente, dei um passo para trás, escondendo-me no outro corredor, atrás dos armários. Não demorou muito e ela se foi, vi quando a sua sombra no chão passou pela porta.Saí do canto onde estava escondido e olhei na direção do seu armário. Seu celular havia ficado sobre o banco. Apanhei-o e corri atrás dela, mas Maya já havia descido no elevador. Tomei outro e continuei a tentar alcançá-la.— Gus... — chamou Anne, vindo na minha direção. — Vamos tomar uma cerveja, você vem com a gente? — Sua mão tocou meu braço sugestivamente, apertando-o de leve.— Não, obriga
GusSubi no passeio que levava à garagem e parei o mais próximo que podia da sua porta de entrada. Maya desceu rapidamente da moto e retirou depressa o capacete, entregando-me.— Obrigada. — Foi tudo o que ela disse antes de correr para dentro de casa. A chuva fina começava a engrossar.Não havia mais nada que ela pudesse dizer para mim depois daquela carona, mas eu fiquei ali, com um sentimento estranho que parecia com um vazio. Era como se eu esperasse mais sem perceber isso.Algo vibrou dentro da minha jaqueta, lembrando-me que ainda estava com o celular dela. Resolvi descer e devolvê-lo. Um médico não pode ficar sem o seu telefone. Toquei a campainha, escondendo-me sob a pequena marquise. Um homem abriu a porta. Ele devia ter uns sessenta anos, cabelos quase brancos e olhos verdes.— Por gentileza, pode chamar a Maya?Ele encarava-me com muita estranheza.— Querida... — chamou-a, sem desviar os olhos de mim.— Oi — disse uma voz suave e infantil, atraindo a minha atenção para baix
Maya— Um brinde a doutora White! — disse McKesson, erguendo a sua cerveja. Brindamos em comemoração a mim. Eu finalmente estava no Staff e posso dizer que sou cardiologista. Ao meu redor, na mesa do bar, estava alguns colegas de trabalho; médicos, enfermeiras e o cara mais gentil da limpeza, o Tony.Estava tão feliz, mas sentia que não estava compartilhando essa alegria de forma devida. Ou, ao menos, com quem eu gostaria. Não há um dia, um momento, que eu não penso: E se Victor estivesse aqui?Como estaríamos comemorando esse momento? Ele teria feito o jantar, talvez. Ou, quem sabe, teríamos saído para comer no melhor lugar da cidade. A melancolia começou a me preencher. Dei um gole na cerveja — engolindo a saudade imensa —, passei as mãos nos cabelos jogando-os para trás e respirei fundo, numa tentativa de levantar o meu astral.O meu celular vibrou sobre a mesa. Era o meu pai quem ligava. Eu havia pedido que levasse as meninas para passar o fim de semana com ele. E assim fez.Apanh
MayaComeçamos a conversar entusiasmadas e felizes de finalmente estarmos reunidas. Sasha já não morava nos Estados Unidos há cinco anos. Agora, casada com um escocês e vivendo a felicidade que merece, vive quase em um conto de fadas na Escócia com o marido e seus dois filhos. Kim mora em Nova Iorque com Jack, que conquistou uma grande carreira como detetive na polícia. Depois de anos lutando pelo primeiro bebê e algumas perdas, Joaquim estava a caminho. Já Penny, era a que mais morava próxima de mim, mas, ainda assim, nossas vidas não nos permitiam estar sempre juntas. Mãe solo de duas crianças, sendo uma delas autista, não é uma tarefa fácil, mas ela estava conseguindo fazer isso muito bem.— A Grace não vem? — perguntou Sasha, indo em direção à cozinha. Nós a seguimos até lá.— Não. Ela lamentou e mandou um vinho branco como pedido de desculpas. As coisas estão agitadas em Washington com as eleições.— Vote Adan Bremner — disse Sasha, em um tom humorado, erguendo o punho fechado pa
MayaSexta-feira e eu ainda me encontrava pensativa sobre o baile. Eu queria ir ao mesmo tempo que desejava me esconder sob os cobertores durante toda a noite. A porta de trás do carro foi aberta, e Louise e Mary entraram, discutindo. Ultimamente estavam brigando mais do que o normal. Às vezes, é preciso intervir. Outra hora, apenas deixo que se entendam sozinhas. Começava a sentir falta de quando elas andavam de mãos dadas e sempre arrumavam o cabelo uma da outra.— Mãe! Diz para ela parar! — pediu Louise aos berros.— Eu não peguei a porcaria do seu lápis de cor! — Mary berrou de volta.— Okay, meninas! Já chega! — falei alto, virando-me para trás.Elas se calaram e olharam-me assustadas. Raramente levanto o tom de voz.— Primeiramente, porcaria é uma palavra feia. Sem sorvete por uma semana!— Mas, mamãe...— Estou falando, Mary. Você precisa se calar quando eu estiver falando.Ela se encolheu no banco.— Segundamente, por que estão brigando?— Mary pegou o meu lápis de cor vermelh