Bento explicou aos pais que iria visitar Roger, pegou o carro do pai, depois de a mãe recomendar dezenas de vezes que fosse devagar e com cuidado, visto que sua habilitação era nova e sua mãe estava extremamente preocupada de o filho sofrer um acidente, e pegou estrada.
Chegou lá e viu o carro de Hanna estacionado de frente ao bar do Gordo.
- Não me diga que também recebeu uma carta! - Ele perguntou, após cumprimentar a tão amada amiga com um forte abraço e um beijo no rosto.
- Cansei de te ligar, Bento. Te liguei até no Mercado. Estava planejando ir com Roger à sua casa, quando ele me disse que você estava à caminho. O que acham que significa? E Roger, essa é a última cerveja, ok?
Hanna se preocupava com o amigo, que já havia entrado em brigas e problemas por conta do álcool, mais vezes do que eles gostariam de lembrar.
- Foi um custo minha mãe deixar eu pegar estrada sozinho, mesmo sendo menos de uma hora de estrada. Eu ia te ligar também, Han, foi uma loucura hoje.
- Meus pais não ligam de eu dirigir, ficam meio receosos também, mas não ficam tão preocupados.
- Claro, seu carro é só acelerar e frear, parece carro de bate bate do parquinho. - Disse Roger, sarcástico enquanto virava a garrafa na boca.
- Cale a boca, Roge, dirijo qualquer carro. Mas vamos ao que interessa, o que acham que são essas cartas?
Estavam sentados em frente ao bar; Hanna com uma mochila nas costas, puxou-a e retirou do bolso dela a carta. Roger retirou a sua do bolso e Bento foi até o carro buscar a sua que estava no porta-luvas.
- Vamos analisar as três? - Bento pôs a sua na mesa e os amigos fizeram o mesmo.
- É a mesma gramatura de papel as três. - Hanna passava as mãos sobre as cartas. - Vocês perceberam que as letras com a qual foi escrito é dourada?
- Achei isso estranho também. Por fora é cursiva, a letra com nosso endereço, mas por dentro, é mais caprichada, eu diria. - Comentou Roger.
- Pois então, Miriam me disse que foi escrito com ouro! O marido dela é ourives e analisou. Pois foi escrito com ouro!
- Por quê? - Bento estava chocado.
- E por que não tem endereço de remetente e nem nome? - Indagou Roger, pegando as três cartas para analisá-las melhor. - Posso ficar com a de vocês? Juntando as três, deve dar uma graninha, esse ouro. - Hanna o fuzilou com o olhar e ele depositou as cartas novamente na mesa.
- Sabe o que me deixou ainda mais encucado? - Questionou Bento. - Eu não liguei muito, cheguei a jogar a carta no lixo e misteriosamente, ela estava intacta à minha espera.
- O quê?! - Hanna estava cada vez mais assustada.
- Eu rasguei a minha. Pois ela estava também intacta, como se insistindo, entendem? - Falou Roger.
- Vocês rasgaram ou jogaram fora e…
Hanna não conseguia concluir o raciocínio, falava para si mesma.
Roger puxou a cadeira mais para perto da amiga e passou os braços por seu ombro, sentado colado à ela. Não era hora de pensar nisso, se fosse em outro momento, Bento ia dissecar isso na mente. Roger não se socializava nem se importava com pessoas ao ponto de querer confortá-la. Com Hanna ele se importava, a barreira era rompida, ela era como uma irmã para eles, e não só com Hanna, ele fingia bem, mas se preocupava com Bento também. Talvez nem percebesse como se importava com eles.
- Foi bom termos nos encontrado, viu. Precisamos entender juntos o que isso significa. - Disse Bento. - Vou buscar uma água, querem alguma coisa… que não seja cerveja?
- Cigarros? Os meus estão acabando. - Pediu Roger, mas fez uma expressão de que estava brincando ao ver o olhar da amiga que chegava a queimar os seus.
Sentando-se novamente, passando a garrafa de água para a amiga, ele recomeçou:
- Creio que concordam comigo que o endereço do remetente, seja lá quem nos enviou, é da Casa Abrigo?
Todos concordavam.
- Vendo a carta do Roger, e não sei se perceberam, no pé de cada uma, tem um desenho diferente, na do Roger tem o desenho do livro.
- Eu só tinha percebido a minha, deixe-me ver. - Pediu Hanna.
- Também só percebi a minha. A sua tem o desenho de um ser estranho. - Exclamou Roger, vendo a cara que ela viu a tantos anos e que lhe deixara a carta.
- Me parece um homem estranho, um que eu via quando criança, lembram que eu dizia á vocês que via às vezes um ogro? Não era bem um ogro, era um homem estranho, ou sei lá o que era, quando estava sozinha, algumas vezes cheguei a sonhar com ele. O vi na fazenda quando brincávamos de esconde-esconde, ou quando ia ajudar os cuidadores, o via passando. Foi estranho, e percebi que ninguém mais o via.
- Mas o que ele queria?
- Não sei, só o via. Nem sempre ele estava me olhando também. Mas foi ele quem deixou a carta em minha casa, eu o vi.
- Por que não falou com ele, perguntou o que queria? - Indagou Bento.
- Ele fugiu.
- Fugiu? - Perguntou Roger. - Como assim fugiu?
- Eu estava abrindo a porta quando a carta foi enfiada por debaixo, o vi saindo e gritei, chamei-o, mas ele ignorou e continuou andando. Insisti, mas ele correu e não consegui alcançá-lo. Em segundos ele estava longe, virando a esquina.
- Será que foi ele quem deixou as cartas para nós três? - Roger falava para ninguém em especial, pensava alto. Hanna nem lhe chamou a atenção quando ele acendeu um cigarro, ela também estava imersa em pensamentos e só se afastou dele, involuntariamente por causa da fumaça.- Pode ser. E o que é Solstício de Verão? - Indagou Bento.- Dei uma olhada na biblioteca do colégio que fui hoje para ver se farei faculdade lá, e pesquisei um livro. Me parece que é o dia mais longo do ano, tipo, é quando os pólos da terra se inclinam ao máximo e recebe mais luz do sol, é o dia mais longo do ano, e a noite mais curta, alguma coisa assim. - Finalizou Hanna.- E quando será isso?
Os dias se passaram e os amigos se ligavam duas ou três vezes ao dia, às vezes mais. Estavam realmente preocupados.- Fui a dezenas de bibliotecas e livrarias e em nenhuma delas encontrei o livro. - Dizia Hanna à Bento, em uma de suas ligações a noite. - Não me lembro muito bem dele, você se lembra?- Engraçado que não, me lembro de algumas histórias, não todas elas, mas a capa, só me lembrei quando vi o desenho na carta de Roger, mas do autor, nada, não me recordo muito bem.- As folhas eram parecidas com as da carta, você percebeu? Rústicas, envelhecidas.- Como pergaminhos. Me lembro de estar com ele aberto, escondidos no quarto para não mandarem apagarmo
- Não precisamos levar muita coisa, não vamos nos demorar por lá, e lá tem tudo o que precisamos. Podemos comprar algo para comer nos postos da estrada, água. Ah, vou levar uma garrafa térmica com chá.- Ah, por Deus, Han. Leve café, quem leva garrafa com chá em uma viagem por mais curta que ela seja? Nunca vi uma pessoa levar chá em um passeio ou viagem.- Leve o que você quiser, Roge, eu vou levar chá e pronto acabou.- Você viu, Bento, ela me disse para levar o que eu quiser.- Menos bebidas alcoólicas ou drogas, seu infeliz.- Mais um adjetivo. - Ele novamente fingiu anotar.Riram e
Pararam em um posto, há duas horas da cidade em que iam.- Preciso mijar. - Roger pulou do carro antes mesmo da garota o estacionar direito. - Hanna é uma péssima motorista, não se preocupa com o bem estar de seus passageiros. Estou com fome, também.- Vou ao banheiro e os encontro na lanchonete. - Ela disse, se afastando com a mochila do amigo, ia realmente revistá-la.- Por que traz uma faca? - Perguntou ao se sentar com eles em uma mesinha na lanchonete, que naquela hora, pouco mais de vinte horas, não estava muito movimentada.- É um canivete, Han, não uma faca. Sempre carrego esse canivete para emergências.- Que emergências ter&iacu
Apenas seus passos eram ouvidos, e a mochila de Roger que batia em suas costas. A escadaria era larga e no meio da sala de acolhimento, chamavam-na assim por ser o primeiro contato, propriamente dito às crianças que ali chegavam. Era uma sala ampla e agradável, com sofás aconchegantes, um piano branco de cauda e muitas caixas de brinquedos encostadas na parede, além de mesas enormes com os mais variados jogos manuais. Não se via nada disso, mesmo na penumbra, via-se que a sala estava deserta, as janelas de vidro, do teto ao chão, com suas cortinas claras, estavam cerradas, sem cortinas, a sujeira e poeira de anos, impedia que se visse lá fora. Dora teria um surto ao ver tanta sujeira e descaso, era orgulhosa daquele cômodo, em particular.- Podemos quebrar os vidros das janelas, se não encontramos uma saída. - D
- Nunca senti tantos arrepios em minha vida. - Disse Hanna.Desceram devagar os degraus. Um Lugar que brincaram muito de esconde esconde, que jamais temeram estar, que escolhiam livros que não tinham ainda sido separados para a biblioteca, gostavam de serem os primeiros a lerem; mais Hanna, que era obcecada pela leitura, passava horas pesquisando para o colégio. Agora desciam os quinze degraus de madeira, temerosos, os rangidos que nunca antes perceberam, parecia ser o prelúdio de algo nefasto.Nem perceberam que seguravam as mãos enquanto desciam, mesmo em fila indiana, muito menos se deram conta de suas mãos trêmulas a segurar a do outro que também tremia.Nenhum redemoinho. A fraca luz da lamparina era o suficiente para saber que ali estava tão deserto quanto
- Parece normal, não? Começava assim, com a história de Nena, a marrenta. - Hanna passava as páginas devagar. A cachorrinha era magra, cor caramelo, olhos tristes e cansados.- Deixe-nos ver também - Pediu Bento, puxando o livro para que os três o lessem. - Sim, isso mesmo, uma cadelinha ingrata que sempre mordia seu dono, que a acolheu da rua.- Chamavam-na de Lena melequenta. - Ele lia rápido a história, pulando linhas.- Mas que no fundo era uma cadela revoltada e até primorosa. - Lia Roger, as linhas de letras grandes.- Vamos ver as seguintes, me lembro de algumas. - Hanna passou as páginas, haviam algumas gravuras, desenhos de uma cadelinha magra, toda suja, quando foi resgatada das
- Meu pai vai me matar, deve ter riscado o capô. - Hanna mordia a unha, ainda sentada entre os bancos da frente e sem cinto de segurança.- Dê-se por satisfeita se ainda estiver viva até os verem novamente, está tudo muito estranho. Acelere mais Roger, ligue o farol alto, ao menos até passarmos pela porteira.Roger acendeu os faróis e pisou no acelerador. O fecho da luz artificial cortou o negrume da noite, só se viam árvores por todos os cantos e o chão de terra vermelha à frente.Não estava longe da porteira, viam-na adiante, Bento já tinha a mão na porta para abri-la ao chegarem nela para poder abri-la. Foi quando o facho de luz iluminou o homem no meio da porteira.Último capítulo