Bento passou o restante da tarde a pensar na carta. Deixou-a no bolso do avental; abriu-a novamente e constatou o que já sabia, era a mesma carta, como se não a tivesse jogado fora. Ninguém a colocou no caixa de Ronan, ele olhou nas câmeras, ela apareceu misteriosamente no caixa.
Por mais que tentasse achar uma explicação, não conseguia.
Lembrava que quando estavam, Hanna, Roger e ele, com idade entre onze, doze e treze anos, nenhum deles tinham um registro de nascimento quando foram para o orfanato, os cuidadores lhes deram mais ou menos essa idade, aproximadamente, e encontrando um livro velho - Hanna era obcecada por leitura, encontraram uma lenda, uma história que ensinava como se transformarem um bruxos e feiticeiros. Liam esse livro desde que foram alfabetizados. Foi ideia dele mandar uma carta para o endereço do bruxo Mor, que estava no livro e pedirem que gostariam de se tornarem bruxos e feiticeiros. Eram crianças e com a imaginação facilmente manipulável. Dora, a diretora, que ia sempre ao centro, se dispôs a levar a carta deles ao correio e despachá-la.
Era só o que vinha em sua mente. Liam muito, era uma forma de distração, principalmente no inverno rigoroso, quando evitavam brincar lá fora. Tinham muitos outros livros que gostavam, mas esse era o preferido por ter gravuras e contos, que mexiam com suas cabeças.
Cada dia um lia um pouco, até que desse sono. Roger tentava se desvencilhar e odiava ler, gaguejava e xingava, mas Hanna não deixava que ele desistisse, ela e Bento, bem como Dora, insistiam que na leitura dele, para que aprimorasse mais seu vocabulário e escrita. Roger odiava estudar, dizia que mal podia esperar para nunca mais ter que ir à uma aula e não sonhava com faculdade. Era um custo que ele frequentasse as aulas, para ele era um martírio as aulas, mas os cuidadores não o deixavam faltar. Muitas vezes ele fugia durante as aulas, só aparecia a noite, todo sujo e arranhado de andar pelas árvores e pelo mato. Roger vivia de castigo.
- Boa noite, padre Olivério, como está o senhor? - Bento ligara para falar com Roger.
- Estou muito bem, meu filho, graças a Deus, e vocês como estão?
- Estamos muito bem, graças a Deus. Roger já chegou do trabalho?
- Ele acabou de chegar e está no banho. Chegou cheio de graxa e já o mandei para o chuveiro.
- Como está indo ele, na mecânica?
- Incrivelmente bem, Bento. Conrad está satisfeito com ele, foi meio difícil no início, é uma questão complicada e sou grato ao Conrad por lhe dar essa oportunidade.
- Creio que está sendo bom para os dois então, o senhor não acha?
- Acho, o mais estranho é que nunca parou um ajudante na mecânica dele, dizem que ele é meio intolerante, mas com Roger, por mais incrível que pareça, tem dado muito certo.
- O senhor é um santo, padre, em dizer que o senhor Conrad é intolerante. Ele é insuportável, grosso, sem paciência, isso para dizer o mínimo. Vai ver era disso que o Roger precisava, uma pessoa tão estressada quanto ele. - Bento ria ao dizer isso.
- Santo só o filho do pai, meu filho, não sou nenhum santo. Mas você pode ter razão, os dois são muito nervosos e isso foi uma união boa, vai saber. Mas enquanto ele estiver longe das ruas, de coisas erradas, está ótimo.
- É verdade, fico muito feliz ao vê-lo bem e trabalhando.
- Sou grato primeiramente à Deus e a você e Hanna por não abandoná-lo, pois até mesmo eu, tenho meus limites e às vezes fico desanimado, essa é a verdade. Ele está saindo do banheiro, vou passar para ele.
- O senhor tem ido à Casa Abrigo? - Perguntou Bento. Amava o padre como a um pai pelas visitas que fazia ao orfanato desde que ele se lembrava. Ia com ele quando foi adotado visitar os amigos que lá ficaram, e ficou feliz quando Roger ao completar dezoito anos e não ter tido a mesma sorte que ele e Hanna, fora morar com o padre, que insistira nos últimos meses e estava lá quando ele saiu pelos portões, trazendo-o para viver na sacristia. Ele nunca fizera isso com outros jovens, e conhecera centenas que não foram adotados; Roger era muito rebelde, e mesmo assim, o padre o acolhera.
- Claro. Vou esse fim de semana, caso queira se juntar a mim. Dora perguntou de você e Hanna fim da semana passada.
- O Supermercado abre aos fins de semana também, mas logo irei lá visitá-los. Me sinto mal por ter me afastado desde que Roger não está mais lá.
- Sei que é difícil para vocês, eu entendo. Mas não deixe de visitá-los, filho. Hanna também ligou mais cedo para falar com Roger, mas ele ainda não havia chegado.
Os três eram inseparáveis na infância e, mesmo com cada um morando em uma cidade, mesmo perto, continuaram a se ver. Eram diferentes, mas unidos. Hanna sempre ligava para os dois, era a mais emotiva dos três, mais atenciosa, achava que deviam morar juntos, na mesma cidade e a cada vez que estavam juntos, ela insistia nesse assunto.
- Oi, cara. - Roger atendeu.
- Oi, como você está?
- Bem. O padre me disse que Hanna me ligou faz pouco tempo, o engraçado é que eu tinha planejado ligar para vocês dois.
- Cara, me aconteceu uma coisa meio louca e você vai achar que estou louco, mas quero contar mesmo assim.
- Pois eu ia ligar para vocês justamente porque me aconteceu algo bizarro também. Recebi uma carta…
- Você também?! - Bento o interrompeu.
- Caramba! O que diz a sua, porque a minha é muito estranha, cara. Me parece ter vindo do orfanato.
- A minha também. Olha, vamos fazer o seguinte: vou pegar o carro e ir aí, chego em no máximo uma hora, pode ser?
- Pode sim, posso te esperar no bar do Gordo? Creio que vou precisar tomar algo. - Essa última informação, ele disse baixo para o padre não escutar. Bebida era uma das coisas que, segundo sua agente da condicional, ele precisava evitar, para ficar longe de confusões.
- Pode sim, te encontro lá daqui a pouco.
Bento explicou aos pais que iria visitar Roger, pegou o carro do pai, depois de a mãe recomendar dezenas de vezes que fosse devagar e com cuidado, visto que sua habilitação era nova e sua mãe estava extremamente preocupada de o filho sofrer um acidente, e pegou estrada.Chegou lá e viu o carro de Hanna estacionado de frente ao bar do Gordo.- Não me diga que também recebeu uma carta! - Ele perguntou, após cumprimentar a tão amada amiga com um forte abraço e um beijo no rosto.- Cansei de te ligar, Bento. Te liguei até no Mercado. Estava planejando ir com Roger à sua casa, quando ele me disse que você estava à caminho. O que acham que significa? E Roger, essa é a última cerveja, ok?
- Será que foi ele quem deixou as cartas para nós três? - Roger falava para ninguém em especial, pensava alto. Hanna nem lhe chamou a atenção quando ele acendeu um cigarro, ela também estava imersa em pensamentos e só se afastou dele, involuntariamente por causa da fumaça.- Pode ser. E o que é Solstício de Verão? - Indagou Bento.- Dei uma olhada na biblioteca do colégio que fui hoje para ver se farei faculdade lá, e pesquisei um livro. Me parece que é o dia mais longo do ano, tipo, é quando os pólos da terra se inclinam ao máximo e recebe mais luz do sol, é o dia mais longo do ano, e a noite mais curta, alguma coisa assim. - Finalizou Hanna.- E quando será isso?
Os dias se passaram e os amigos se ligavam duas ou três vezes ao dia, às vezes mais. Estavam realmente preocupados.- Fui a dezenas de bibliotecas e livrarias e em nenhuma delas encontrei o livro. - Dizia Hanna à Bento, em uma de suas ligações a noite. - Não me lembro muito bem dele, você se lembra?- Engraçado que não, me lembro de algumas histórias, não todas elas, mas a capa, só me lembrei quando vi o desenho na carta de Roger, mas do autor, nada, não me recordo muito bem.- As folhas eram parecidas com as da carta, você percebeu? Rústicas, envelhecidas.- Como pergaminhos. Me lembro de estar com ele aberto, escondidos no quarto para não mandarem apagarmo
- Não precisamos levar muita coisa, não vamos nos demorar por lá, e lá tem tudo o que precisamos. Podemos comprar algo para comer nos postos da estrada, água. Ah, vou levar uma garrafa térmica com chá.- Ah, por Deus, Han. Leve café, quem leva garrafa com chá em uma viagem por mais curta que ela seja? Nunca vi uma pessoa levar chá em um passeio ou viagem.- Leve o que você quiser, Roge, eu vou levar chá e pronto acabou.- Você viu, Bento, ela me disse para levar o que eu quiser.- Menos bebidas alcoólicas ou drogas, seu infeliz.- Mais um adjetivo. - Ele novamente fingiu anotar.Riram e
Pararam em um posto, há duas horas da cidade em que iam.- Preciso mijar. - Roger pulou do carro antes mesmo da garota o estacionar direito. - Hanna é uma péssima motorista, não se preocupa com o bem estar de seus passageiros. Estou com fome, também.- Vou ao banheiro e os encontro na lanchonete. - Ela disse, se afastando com a mochila do amigo, ia realmente revistá-la.- Por que traz uma faca? - Perguntou ao se sentar com eles em uma mesinha na lanchonete, que naquela hora, pouco mais de vinte horas, não estava muito movimentada.- É um canivete, Han, não uma faca. Sempre carrego esse canivete para emergências.- Que emergências ter&iacu
Apenas seus passos eram ouvidos, e a mochila de Roger que batia em suas costas. A escadaria era larga e no meio da sala de acolhimento, chamavam-na assim por ser o primeiro contato, propriamente dito às crianças que ali chegavam. Era uma sala ampla e agradável, com sofás aconchegantes, um piano branco de cauda e muitas caixas de brinquedos encostadas na parede, além de mesas enormes com os mais variados jogos manuais. Não se via nada disso, mesmo na penumbra, via-se que a sala estava deserta, as janelas de vidro, do teto ao chão, com suas cortinas claras, estavam cerradas, sem cortinas, a sujeira e poeira de anos, impedia que se visse lá fora. Dora teria um surto ao ver tanta sujeira e descaso, era orgulhosa daquele cômodo, em particular.- Podemos quebrar os vidros das janelas, se não encontramos uma saída. - D
- Nunca senti tantos arrepios em minha vida. - Disse Hanna.Desceram devagar os degraus. Um Lugar que brincaram muito de esconde esconde, que jamais temeram estar, que escolhiam livros que não tinham ainda sido separados para a biblioteca, gostavam de serem os primeiros a lerem; mais Hanna, que era obcecada pela leitura, passava horas pesquisando para o colégio. Agora desciam os quinze degraus de madeira, temerosos, os rangidos que nunca antes perceberam, parecia ser o prelúdio de algo nefasto.Nem perceberam que seguravam as mãos enquanto desciam, mesmo em fila indiana, muito menos se deram conta de suas mãos trêmulas a segurar a do outro que também tremia.Nenhum redemoinho. A fraca luz da lamparina era o suficiente para saber que ali estava tão deserto quanto
- Parece normal, não? Começava assim, com a história de Nena, a marrenta. - Hanna passava as páginas devagar. A cachorrinha era magra, cor caramelo, olhos tristes e cansados.- Deixe-nos ver também - Pediu Bento, puxando o livro para que os três o lessem. - Sim, isso mesmo, uma cadelinha ingrata que sempre mordia seu dono, que a acolheu da rua.- Chamavam-na de Lena melequenta. - Ele lia rápido a história, pulando linhas.- Mas que no fundo era uma cadela revoltada e até primorosa. - Lia Roger, as linhas de letras grandes.- Vamos ver as seguintes, me lembro de algumas. - Hanna passou as páginas, haviam algumas gravuras, desenhos de uma cadelinha magra, toda suja, quando foi resgatada das