Pararam em um posto, há duas horas da cidade em que iam.
- Preciso mijar. - Roger pulou do carro antes mesmo da garota o estacionar direito. - Hanna é uma péssima motorista, não se preocupa com o bem estar de seus passageiros. Estou com fome, também.
- Vou ao banheiro e os encontro na lanchonete. - Ela disse, se afastando com a mochila do amigo, ia realmente revistá-la.
- Por que traz uma faca? - Perguntou ao se sentar com eles em uma mesinha na lanchonete, que naquela hora, pouco mais de vinte horas, não estava muito movimentada.
- É um canivete, Han, não uma faca. Sempre carrego esse canivete para emergências.
- Que emergências teríamos indo a um orfanato?
- Não é esse tipo de emergência, é para descascar uma laranja, abrir uma noz…
- Destrancar algemas. - Interrompeu-o Bento, entre risos.
- Isso. - Roger entrou na brincadeira.
- Se a polícia nos parasse, como explicaríamos estarmos com uma arma branca?
- Como assim, explicaríamos, você não a jogou fora, não é? Ganhei de um amigo, Han. - Ele a olhava, implorando.
- Não, não joguei fora, não sou malvada. Mas devia ter nos avisado, o que faremos se formos parados, como explicaremos uma faca? Você sabe que julgam pessoas que têm tatuagens, infelizmente é assim. Vamos colocar essa faca no porta malas, qualquer coisa diremos que a guardamos para um acampamento e a esquecemos lá.
- Um canivete! Não é faca. Deixe comigo, caso aconteça, e não vai acontecer, direi a verdade, o carrego para descascar frutas…
- Destrancar algemas. - Bento interrompeu novamente o amigo e dessa vez, até Hanna riu.
- Sério, você precisa parar de ter tanto medo da polícia. E minhas tatuagens são lindas, à propósito. - Roger falava sério com a amiga.
- E você precisa parar de ser tão amigo deles, precisa parar de ser preso, Roge, e sim, suas tatuagens são realmente muito bonitas.
- As minhas tatuagens são lindas, também. - Disse Bento, passando uma mão sobre o braço recém tatuado com uma fênix.
- Não estamos falando de tatuagens, meninos. Meus pais me deixarão fazer uma quando eu fizer vinte e um anos, mesmo que eu vá morar sozinha antes.
- Você fala como se eu vivesse sendo preso, parece que estou em prisão perpétua com você. Relaxe, Han.
- Me desculpe, me preocupo muito com você porque o amo.
- Também te amo, muito, amo vocês dois. Vou repetir o mesmo que digo ao padre todos os dias: Estou trabalhando, não vou fazer faculdade, nem a pau, mas estou indo bem, não estou?
- Está sim e estamos orgulhosos de você. - Foi Bento quem respondeu. - E você, está orgulhoso de nós?
- Não muito, na verdade.
Os amigos fingiram socá-lo ao mesmo tempo. Estavam jantando lanches, cada um pedira um lanche e refrigerantes e jantavam tranquilos. - Fala sério, passamos nossa vida toda estudando, estudávamos até aos domingos! E agora uma quer virar professora, o outro quer ser um cientista das estrelas, ah, que decepção, não chega de estudos?
- Não vou ser um cientista das estrelas, seu paspalho, quero ser um astrônomo, e gostamos de estudar.
- Ainda acredito que você venha a querer um dia se formar em algo, Roge. - Hanna segurava a mão dele sobre a mesa.
- Nunca. Jamais quero pisar em uma classe escolar em minha vida. Posso até mudar de ideia, mas no momento, só penso que jamais vou ter vontade de estudar, nunca tive e não creio que vá um dia querer.
Pegaram novamente a estrada. A noite estava escura. Roger e Bento discutiram sobre ir na frente e dessa vez Bento venceu no ímpar/par e foi na frente.
Chegaram à entrada da fazenda, do orfanato às vinte e duas horas, estava como sempre, tudo escuro na estrada de terra que pegaram para estradinha que abrigava o orfanato. Bento desceu para abrir a porteira branca, colocou uma pedra em um lado da porteira e segurou a outra para que Hanna passasse. Ela o esperou fechar novamente e entrar no carro.
- Sinto saudades daqui. Penso que quando se é criança, tem uma sensação diferente de tamanho, eu achava isso gigantesco, porém continuo achando. É muito grande aqui, não é?
- Muito, são muitos alqueires; Dora disse que essa fazenda é da época dos escravos, tem mais de duzentos anos. Ela conta que um senhor muito rico, milionário ou bilionário, que era o dono dessas terras, tinha centenas de escravos e quando foram libertos, ele doou a fazenda para um casal que nunca pode ter filhos e eles criaram o orfanato. Sempre contaram com ajuda do governo, da prefeitura, de Ongs e igrejas, e é assim até hoje. - Foi o comentário de Bento e logo estavam encostando próximo às árvores frondosas que cercavam a casa grande de dois andares, o orfanato, fazendo, ou Casa Abrigo.
- Está tão silencioso ou é impressão minha? - Perguntou Roger, batendo a porta do carro ao descer.
- Está muito silencioso mesmo, e escuro. - Hanna subiu as escadarias de entrada.
- Muito estranho, em pleno sábado. - Disse Bento. - Acho que nunca vi a Casa tão silenciosa.
Os três pararam no quinto e último degrau da escada e olharam ao redor. O silêncio parecia opressor e anormal ali. A Casa sempre estava com as luzes acesas, tanto dentro, quanto fora. Haviam luzes nos postes ao redor de toda a propriedade e só agora eles notavam que estavam apagadas. As luzes dos quartos, no andar de cima, só eram apagadas após à meia noite, haviam crianças de todas as idades e sempre uma ou outra demorava para conciliar o sono, por mais que tivesse o toque de recolher, sempre havia um cuidador ou voluntário que não seguiam as regras, ali, as crianças eram a prioridade, seus medos, fobias e inseguranças, eram ouvidos e acatados; até o mais rígido do cuidador, quebrava as regras.
- O que está acontecendo? - Roger estava preocupado. - Estive aqui mês passado e comentei com o padre que foi ótima a ideia das luzes com sensores de movimento que colocaram, onde estão, que não as vejo?
- Vai ver tiraram. - Respondeu Bento. - Vamos bater, nunca antes o fizemos, mas é o que nos resta. - Não passou despercebido aos amigos, que ele passava as mãos sobre os braços arrepiados, os três estavam arrepiados.
Ele seguiu para a enorme e antiga porta de carvalho com a aldabra pesada.
O barulho da aldrava batendo na porta, foi alto no silêncio sepulcral da noite. Mas ao bater duas vezes, eles notaram que a porta se abriu devagar, rangendo.
O corredor estava escuro, apenas uma lamparina, antiga, estava acesa em um móvel antigo no hall, as sombras dançavam.
- Que móvel é esse? - A pergunta de Roger foi baixa, ele falava baixo, mas qualquer mínimo barulho, se ampliava no silêncio, e sua voz ecoou por todo o recinto.
- Nunca o vi antes, deve ser uma doação nova. - Hanna também passava as mãos pelo braço arrepiado. - Olá, Dora, alguém?
O silêncio os saudou.
O hall de entrada, amplo e arejado, estava empoeirado, como se estivesse abandonado há anos. Sem obterem resposta e pela primeira vez sentindo-se intrusos, sem saber se deviam entrar, permaneceram ali na entrada, incertos.
- O que devemos fazer? - Perguntou Bento e sua voz parecia de criança, novamente, inseguro.
- Não sei, o que acham de entrarmos, subirmos? - Respondeu Hanna.
- Melhor irmos ao escritório, Dora sempre é a última a dormir. - Preferiu Roger, e sem que concordassem ou discordasse, com passos hesitantes, caminharam para o escritório em fila indiana.
Com assombro constataram que ali, como o hall, não parecia ser habitado há muito tempo.
- Mas o que aconteceu? - Hanna cortou o silêncio e sua voz retumbou, assustando os amigos. - Cadê o telefone? Precisamos ligar para alguém, para a polícia, para o padre, o prefeito, sei lá.
Dizendo isso, ela foi até próximo à janela do escritório, onde antes havia um armário com gavetas e um telefone. Não havia armário, não havia telefone, nem a mesa de Dora, não havia nada que lhes eram tão comuns, conheciam cada palmo desse cômodo, cada móvel e os encontrariam de olhos fechados.
- Vou buscar aquela vela do hall. - Bento se afastou em busca da lamparina à vela.
Sozinho no hall, ainda sentindo os arrepios, ele pegou a lamparina, o arrepio se intensificou quando ele viu em meio ao hall, bem em sua frente, um redemoinho se formar. O rapaz estacou, sentindo um gelo na espinha. O redemoinho foi aumentando, folhas e terra formavam um espiral e subia devagar; de repente, por mais incrível que pudesse parecer, a espiral desceu, formando no chão o formato de uma seta, como se a o instigar a ir para o lado da porta. A porta contrária a que ele viera, contrária de onde deixara seus amigos segundos atrás.
Sentindo a boca seca, ele correu ao encontro de seus amigos.
- O que foi? Parece que viu um fantasma. - Perguntou Roger.
- Talvez eu tenha visto. - Ele respondeu.
- O que quer dizer? - Hanna estava pálida, agora ele podia ver seu rosto com a luz da lamparina.
- Não sei… eu vi um redemoinho, parecia que…
- Que o quê? - Roger parecia estar tremendo.
- Parecia que era para eu segui-lo.
- Redemoinho, seguir para onde?
- Para o porão. - Ele respondeu, engolindo em seco.
- Para mim chega. Não há telefone aqui, não temos como contactar ninguém, vamos embora. - Roger se encaminhou para a porta, os dois o seguiram rapidamente, sem questionar.
- Da primeira cidade ligamos para a polícia. - Hanna disse e não sufocou um grito quando a porta que entraram se fechou com um estrondo, vibrando as paredes e chacoalhando os vidros das janelas. - Abram a porta! - Ela pediu aos meninos que estavam à sua frente e já tentavam, sem sucesso.
- Meu Deus, não estou gostando disso. - Roger girava a maçaneta e por fim chutava a porta freneticamente. - Vou pôr essa porta abaixo, me ajudem.
Os três tentaram e não conseguiram abri-la, parecia que ela havia sido soldada ao batente, a maçaneta sequer rodava.
Bento pegou a lamparina que havia deixado no chão para tentar abrir a porta e iluminou a maçaneta mais de perto. Viram que a lingueta estava acusando a porta trancada.
- Há outra passagem. - Roger se distanciou da porta. - Vamos subir, ou vamos encontrar uma janela para sairmos daqui.
- Podemos tentar, mas não creio que conseguiremos sair. - Disse Bento, com a voz de agouro.
- Cale a porra da boca, Bento. Não tem graça, vamos dar o fora daqui.
- Só não acho que conseguiremos. - Sentenciou o amigo.
- Cale a maldita boca e vamos tentar.
- E me xingar vai adiantar?
- Ficarmos parados aqui, também não vai adiantar. - Roger pegou a mão de Hanna e puxou-a para acompanhá-lo. Bento correu atrás dos dois.
- Vamos ficar juntos, não podemos nos separar. - Ele disse, se encaminhando com os amigos, que saíram do hall de entrada e subiram as escadas para o primeiro andar, com a lamparina segura na mão.
Apenas seus passos eram ouvidos, e a mochila de Roger que batia em suas costas. A escadaria era larga e no meio da sala de acolhimento, chamavam-na assim por ser o primeiro contato, propriamente dito às crianças que ali chegavam. Era uma sala ampla e agradável, com sofás aconchegantes, um piano branco de cauda e muitas caixas de brinquedos encostadas na parede, além de mesas enormes com os mais variados jogos manuais. Não se via nada disso, mesmo na penumbra, via-se que a sala estava deserta, as janelas de vidro, do teto ao chão, com suas cortinas claras, estavam cerradas, sem cortinas, a sujeira e poeira de anos, impedia que se visse lá fora. Dora teria um surto ao ver tanta sujeira e descaso, era orgulhosa daquele cômodo, em particular.- Podemos quebrar os vidros das janelas, se não encontramos uma saída. - D
- Nunca senti tantos arrepios em minha vida. - Disse Hanna.Desceram devagar os degraus. Um Lugar que brincaram muito de esconde esconde, que jamais temeram estar, que escolhiam livros que não tinham ainda sido separados para a biblioteca, gostavam de serem os primeiros a lerem; mais Hanna, que era obcecada pela leitura, passava horas pesquisando para o colégio. Agora desciam os quinze degraus de madeira, temerosos, os rangidos que nunca antes perceberam, parecia ser o prelúdio de algo nefasto.Nem perceberam que seguravam as mãos enquanto desciam, mesmo em fila indiana, muito menos se deram conta de suas mãos trêmulas a segurar a do outro que também tremia.Nenhum redemoinho. A fraca luz da lamparina era o suficiente para saber que ali estava tão deserto quanto
- Parece normal, não? Começava assim, com a história de Nena, a marrenta. - Hanna passava as páginas devagar. A cachorrinha era magra, cor caramelo, olhos tristes e cansados.- Deixe-nos ver também - Pediu Bento, puxando o livro para que os três o lessem. - Sim, isso mesmo, uma cadelinha ingrata que sempre mordia seu dono, que a acolheu da rua.- Chamavam-na de Lena melequenta. - Ele lia rápido a história, pulando linhas.- Mas que no fundo era uma cadela revoltada e até primorosa. - Lia Roger, as linhas de letras grandes.- Vamos ver as seguintes, me lembro de algumas. - Hanna passou as páginas, haviam algumas gravuras, desenhos de uma cadelinha magra, toda suja, quando foi resgatada das
- Meu pai vai me matar, deve ter riscado o capô. - Hanna mordia a unha, ainda sentada entre os bancos da frente e sem cinto de segurança.- Dê-se por satisfeita se ainda estiver viva até os verem novamente, está tudo muito estranho. Acelere mais Roger, ligue o farol alto, ao menos até passarmos pela porteira.Roger acendeu os faróis e pisou no acelerador. O fecho da luz artificial cortou o negrume da noite, só se viam árvores por todos os cantos e o chão de terra vermelha à frente.Não estava longe da porteira, viam-na adiante, Bento já tinha a mão na porta para abri-la ao chegarem nela para poder abri-la. Foi quando o facho de luz iluminou o homem no meio da porteira. - Me parece que temos que continuar a olhar o livro, entendi que ele é um manual. - Bento pegou o livro e passou a folheá-lo, os amigos, agora sentados juntos atrás, o acompanharam.- Supondo que sejamos nós, os que cita o livro, diz que não somos os três mosqueteiros, creio que sejamos nós. - Começou Bento a tentar decifrar o que liam. - Diz que somos desgarrados… não somos desgarrados!- Nem sobreviventes. - Acrescentou Hanna.- Somos sim, estamos vivos. - Roger encarava os amigos. - Será que morremos na estrada e nem percebemos?- Não seja idiota, Hanna está sangrando, eu estou com dor de cabeça por causa da pancada, estamos bem vivos. Deve ser um enigma issoCAPÍTULO TREZE
- Tenham calma, pensem que de nada vai adiantar entrarmos em pânico. - Bento bateu amavelmente no ombro de Roger, que dirigia e segurou a mão de Hanna, sentada atrás. - Vamos seguir as pistas do livro, não nos resta outra coisa.- Ok, o que fazemos então?- Continue dirigindo, vamos usar as estrelas como orientação, deixem essa parte comigo - Bento disse, apertando a mão fria de Hanna, ele percebeu que Roger se acalmava um pouco e começou a dirigir.Estavam em uma rua estreita de terra, Roger desligara o farol alto e mantinha-se a cinquenta quilômetros por hora; Bento tinha o rosto para fora para observar o céu melhor, seus cabelos escuros e cacheados, estavam desarrumados e o vento o açoitava. Hanna não havia sido muito explícita quanto ao sujeito. Quando os vira de longe, na porteira, não dava para se ter uma noção de quão alto ele era; devia ter dois metros de altura, os ombros largos e meio encurvados em um ângulo que o deixava parecendo ser deficiente. Os músculos que saltavam do seu sobretudo preto aberto, que quase arrastava ao chão, não parecia ter sido produzido por exercícios em uma academia.O chapéu preto, escondia parcialmente seus cabelos loiros até os ombros e suas feições. Realmente ele não era um humano muito comum. Os três sentiram o corpo todo estremecer, quando a criatura vergou o corpo, há dois passos deles e urrou:- AHHHHHHH.Roger e Hanna, de joelhos, tentavam CAPÍTULO QUINZE
Não havia ninguém lá fora. Apenas a tal mulher Serena, Bento, o tal Téron e eles três, que haviam sido desamarrados; o sol despontava ainda fraco.Se aproximaram de Serena que se aproximou de uma fogueira recém avivada, com um sorriso ela lhes ofereceu um prato contendo uma mistura de ovos mexido com algo verde e saboroso.Pegaram cada um um prato e com as mãos, não lhes foi oferecido talher, eles comeram o mexido já morno. Serena e Téron também se serviram, comeram de pé e acompanharam-na para outro lugar, sentaram-se novamente no chão. Téron lhes ofereceu uma terrina e um copo para beberem água, estava tépida, não gelada, mas muito fresca e gostosa. Seguravam o copo, quando Serena recomeçou a falar:Último capítulo