Os dias se passaram e os amigos se ligavam duas ou três vezes ao dia, às vezes mais. Estavam realmente preocupados.
- Fui a dezenas de bibliotecas e livrarias e em nenhuma delas encontrei o livro. - Dizia Hanna à Bento, em uma de suas ligações a noite. - Não me lembro muito bem dele, você se lembra?
- Engraçado que não, me lembro de algumas histórias, não todas elas, mas a capa, só me lembrei quando vi o desenho na carta de Roger, mas do autor, nada, não me recordo muito bem.
- As folhas eram parecidas com as da carta, você percebeu? Rústicas, envelhecidas.
- Como pergaminhos. Me lembro de estar com ele aberto, escondidos no quarto para não mandarem apagarmos a luz, e ao passar a mão sobre as folhas, elas faziam um barulho de folhas secas. Era bem antigo, eu acho, você se lembra que as folhas eram atadas com uma linha grossa?
- Sim, agora que falou estou me lembrando, das linhas que envolviam as folhas e a capa, era aquela linha crua, bem arcaico o modo. Eu passava o dedo com cuidado para virar, pois tinha medo de a linha se soltar.
- Tivemos sorte, né, Han? Digo, vivemos em um orfanato a infância e parte da adolescência e não foi de todo terrível, foi até muito bom.
- Muitas crianças com seus pais não tiveram a sorte que tivemos no orfanato; fomos crianças felizes, brincamos, tivemos comida na mesa.
- Fizemos ótimas amizades. Sim, tivemos muita sorte e ainda por cima fomos adotados por famílias maravilhosas.
Ambos ficaram em silêncio um pouco, talvez pensando em Roger, que não fora adotado, como eles.
- Sabe o que pensei? - Bento quebrou o silêncio.
- Hum?
- O livro deve estar ainda no orfanato e alguma criança nos enviou as cartas.
- Criança?
- Pensei nisso agora.
- Mas como uma criança, isso se o livro ainda estiver lá, saberia que enviamos uma carta, e teria o endereço de nós três, e para quê nos enviaria a carta e tão bem elaborada, ainda que curta, e escrita em ouro?
- É verdade, não faz sentido.
- Mas… e se for um adulto, digo, faz mais sentido que seja um adulto, pelo conteúdo bem escrito, não é?
- Realmente, mas quem?
- Vamos nos encontrar amanhã, você tem compromisso?
- Trabalho até às quinze horas de sábado. Vou ficar na padaria amanhã, depois disso estou livre. Você sabe se Roger estará tranquilo?
- Vou confirmar com ele e te ligo de volta.
Combinaram de se encontrarem os três no dia seguinte, no início da noite, novamente na cidade de Roger. Ele estava evitando ao máximo sair da cidade. Sete meses atrás passou uma noite na delegacia por perturbação da ordem e estar bêbado, com um baseado na boca. Foi libertado sob os cuidados do padre Olivério, mas Rúbia, sua conselheira e agente da condicional, estava sempre à espreita e lhe fazendo visitas surpresas.
- Não fiquem bravos comigo, mas ainda acho exagero irmos até a Casa Abrigo. Eu vou! - Falou Roger quando viu que Hanna ficara nervosa. - Disse que vou e irei. Mas penso que vamos desperdiçar nosso tempo.
- Será bom que você vai rever o pessoal, Roge.
- Estou indo lá uma ou duas vezes por mês, Han, não gosto que padre Olivério dirija por tanto tempo.
- E também porque sente saudades, não é, do pessoal?
Roger revirou os olhos. Estavam em uma praça, no bairro central de sua cidade, sentados no coreto, algumas crianças corriam de bicicleta, de skate, mães com carrinhos de bebê ou criança pequena, transitavam pela praça, conversando com outras mães.
- Do que vocês mais sentem falta, da Casa Abrigo? - Perguntou Roger, tragando um cigarro.
- Nossa, sinto falta de tantas coisas. - Bento sorriu, deitou-se no gramado, perto da escadinha que dava acesso ao coreto. - Das nossas corridas pelo mato, das nossas
caçadas de passarinhos. Lembram quando fizemos um estilingue e saímos caçando?
- Claro que lembro. - Respondeu Hanna. - E não tivemos coragem de acertar um sequer? Falando nisso, vocês dois me devem toneladas de sobremesa, que nunca me pagaram. Fui a vencedora em derrubar latas com pedradas por anos, e nunca me pagaram o que me devem.
- Só você mesmo para apostar comida. - Zombou Roger. Deitado ao lado de Bento, ele parecia estar emergindo no passado. - Sinto saudades do frio no inverno lá. Parece que na cidade não faz inverno como lá.
- Dora nos deixava tomar chocolate quente todas as noites no inverno. - Hanna também estava imersa em lembranças. - Tinha vez que até nos contava histórias.
- E contava tão bem, não é? - Perguntou Bento.
- Acho que é porque era adulta, ela sabia entonar bem a voz na mudança de personagens.
- Mas você sempre foi ótima para contar histórias, eu odiava quando era a vez de Roger, ele demorava um século, repetia a mesma linha, gaguejava.
- Ainda leio assim. - Ele sorriu e tragou uma última vez o cigarro, apagando-o na sola do tênis e colocando a bituca no maço vazio. - Ainda odeio leitura. Era uma tortura ler em voz alta. Estive lá com o padre mês passado, há lá agora a Rebeca, uma garotinha encantadora, ela tem o mesmo problema que eu com a leitura, com a escola em geral. Não consegue focar no que está lendo, às vezes lê a mesma coisa por não prestar atenção, e nem percebe que está relendo, justamente por não ter prestado atenção.
- Por esse motivo, penso em ser pedagoga, ajudar crianças com dificuldades no aprendizado.
- Bom saber que sempre fui sua inspiração. - Roger deu um soquinho no braço da amiga, zoando-a.
- Você se acha muito importante, não é mesmo? Acha que só existe você com essa dificuldade no mundo?
- Não, mas sou o problemático mais antigo que você conhece.
- Ah, disso não tenha dúvida, você é problemático mesmo. E você, Bento, continua apaixonado pelos astros, pelas estrelas?
- Ganhei um telescópio da Tina no meu aniversário, dos bons mesmo. Vou mostrar à voces qualquer dia que o céu estiver bem estrelado e fácil de ver.-
Tina é um anjo, mas passo. Não acho a menor graça olhar para as estrelas, você acha, Han?
- Nunca olhei com um telescópio, não saberia muito bem como apreciar, mas Bento pode me ensinar, quero experimentar.
- É incrível, vocês não tem ideia. Percebemos como somos ínfimos ao olhar para o céu.
- Quem disse que quero me sentir assim? Já me sinto assim sem precisar olhar para o céu, muito obrigado.
- Mas eu quero, Bento, traga sim o estetoscópio. - Hanna sorriu para o amigo.
- É telescópio. Estetoscópio é de médicos. - Bento gargalhou.
- Seria mais interessante então, um estetoscópio, daria para auscultar nossos batimentos. - Roger entrou na brincadeira. - Mais produtivo.
- Você é um babaca, Roge, está sempre estragando a conversa. Bento vai levar o estetos… o telescópio qualquer dia para olharmos as estrelas e fim de papo.
- Não me ofende ser chamado de babaca, muitas meninas me chamam assim, e por falar em viagem, posso levar um baseado na viagem para a Fazenda? Vou precisar de uma viagem, nessa viagem que faremos, uma brisa, sabe.
- Vá te catar! Nem pense em levar drogas, e não vai fumar no meu carro. Seus cigarros são tão fedorentos quanto seus baseados.
- Han, você me chamou de babaca, de fedorento, o que mais falta hoje?
- Mal começou a noite, temos tempo e uma infinidade de adjetivos para você, seu mau caráter.
- Opa, mais um nome carinhoso para anotar. - Ele fingia anotar com uma caneta e um caderno imaginário. - A mãe da Tici me chama de mau caráter.
- Quem é Tici? - Perguntou Bento.
- Uma garota que fico, de vez em quando. Ela é uma graça, mas a mãe dela é insuportável.
- Está apaixonadinho, amigo.
- Não seja idiota, Bento. Tici não é para mim, a mãe dela tem toda razão.
- Não se deprecie, cara.
- Não quero que ela perca o tempo dela, só isso.
Os amigos perceberam que a tal garota podia ter mexido com Roger, era a primeira vez que ele mencionava o nome de uma garota e sabiam que se insistisse, ele se fecharia. Tinham que deixá-lo ir no tempo dele.
- Bem, vamos continuar os planejamentos para a viagem? O que vamos levar? - Roger se encarregou de mudar o assunto.
- Não precisamos levar muita coisa, não vamos nos demorar por lá, e lá tem tudo o que precisamos. Podemos comprar algo para comer nos postos da estrada, água. Ah, vou levar uma garrafa térmica com chá.- Ah, por Deus, Han. Leve café, quem leva garrafa com chá em uma viagem por mais curta que ela seja? Nunca vi uma pessoa levar chá em um passeio ou viagem.- Leve o que você quiser, Roge, eu vou levar chá e pronto acabou.- Você viu, Bento, ela me disse para levar o que eu quiser.- Menos bebidas alcoólicas ou drogas, seu infeliz.- Mais um adjetivo. - Ele novamente fingiu anotar.Riram e
Pararam em um posto, há duas horas da cidade em que iam.- Preciso mijar. - Roger pulou do carro antes mesmo da garota o estacionar direito. - Hanna é uma péssima motorista, não se preocupa com o bem estar de seus passageiros. Estou com fome, também.- Vou ao banheiro e os encontro na lanchonete. - Ela disse, se afastando com a mochila do amigo, ia realmente revistá-la.- Por que traz uma faca? - Perguntou ao se sentar com eles em uma mesinha na lanchonete, que naquela hora, pouco mais de vinte horas, não estava muito movimentada.- É um canivete, Han, não uma faca. Sempre carrego esse canivete para emergências.- Que emergências ter&iacu
Apenas seus passos eram ouvidos, e a mochila de Roger que batia em suas costas. A escadaria era larga e no meio da sala de acolhimento, chamavam-na assim por ser o primeiro contato, propriamente dito às crianças que ali chegavam. Era uma sala ampla e agradável, com sofás aconchegantes, um piano branco de cauda e muitas caixas de brinquedos encostadas na parede, além de mesas enormes com os mais variados jogos manuais. Não se via nada disso, mesmo na penumbra, via-se que a sala estava deserta, as janelas de vidro, do teto ao chão, com suas cortinas claras, estavam cerradas, sem cortinas, a sujeira e poeira de anos, impedia que se visse lá fora. Dora teria um surto ao ver tanta sujeira e descaso, era orgulhosa daquele cômodo, em particular.- Podemos quebrar os vidros das janelas, se não encontramos uma saída. - D
- Nunca senti tantos arrepios em minha vida. - Disse Hanna.Desceram devagar os degraus. Um Lugar que brincaram muito de esconde esconde, que jamais temeram estar, que escolhiam livros que não tinham ainda sido separados para a biblioteca, gostavam de serem os primeiros a lerem; mais Hanna, que era obcecada pela leitura, passava horas pesquisando para o colégio. Agora desciam os quinze degraus de madeira, temerosos, os rangidos que nunca antes perceberam, parecia ser o prelúdio de algo nefasto.Nem perceberam que seguravam as mãos enquanto desciam, mesmo em fila indiana, muito menos se deram conta de suas mãos trêmulas a segurar a do outro que também tremia.Nenhum redemoinho. A fraca luz da lamparina era o suficiente para saber que ali estava tão deserto quanto
- Parece normal, não? Começava assim, com a história de Nena, a marrenta. - Hanna passava as páginas devagar. A cachorrinha era magra, cor caramelo, olhos tristes e cansados.- Deixe-nos ver também - Pediu Bento, puxando o livro para que os três o lessem. - Sim, isso mesmo, uma cadelinha ingrata que sempre mordia seu dono, que a acolheu da rua.- Chamavam-na de Lena melequenta. - Ele lia rápido a história, pulando linhas.- Mas que no fundo era uma cadela revoltada e até primorosa. - Lia Roger, as linhas de letras grandes.- Vamos ver as seguintes, me lembro de algumas. - Hanna passou as páginas, haviam algumas gravuras, desenhos de uma cadelinha magra, toda suja, quando foi resgatada das
- Meu pai vai me matar, deve ter riscado o capô. - Hanna mordia a unha, ainda sentada entre os bancos da frente e sem cinto de segurança.- Dê-se por satisfeita se ainda estiver viva até os verem novamente, está tudo muito estranho. Acelere mais Roger, ligue o farol alto, ao menos até passarmos pela porteira.Roger acendeu os faróis e pisou no acelerador. O fecho da luz artificial cortou o negrume da noite, só se viam árvores por todos os cantos e o chão de terra vermelha à frente.Não estava longe da porteira, viam-na adiante, Bento já tinha a mão na porta para abri-la ao chegarem nela para poder abri-la. Foi quando o facho de luz iluminou o homem no meio da porteira. - Me parece que temos que continuar a olhar o livro, entendi que ele é um manual. - Bento pegou o livro e passou a folheá-lo, os amigos, agora sentados juntos atrás, o acompanharam.- Supondo que sejamos nós, os que cita o livro, diz que não somos os três mosqueteiros, creio que sejamos nós. - Começou Bento a tentar decifrar o que liam. - Diz que somos desgarrados… não somos desgarrados!- Nem sobreviventes. - Acrescentou Hanna.- Somos sim, estamos vivos. - Roger encarava os amigos. - Será que morremos na estrada e nem percebemos?- Não seja idiota, Hanna está sangrando, eu estou com dor de cabeça por causa da pancada, estamos bem vivos. Deve ser um enigma issoCAPÍTULO TREZE
- Tenham calma, pensem que de nada vai adiantar entrarmos em pânico. - Bento bateu amavelmente no ombro de Roger, que dirigia e segurou a mão de Hanna, sentada atrás. - Vamos seguir as pistas do livro, não nos resta outra coisa.- Ok, o que fazemos então?- Continue dirigindo, vamos usar as estrelas como orientação, deixem essa parte comigo - Bento disse, apertando a mão fria de Hanna, ele percebeu que Roger se acalmava um pouco e começou a dirigir.Estavam em uma rua estreita de terra, Roger desligara o farol alto e mantinha-se a cinquenta quilômetros por hora; Bento tinha o rosto para fora para observar o céu melhor, seus cabelos escuros e cacheados, estavam desarrumados e o vento o açoitava.Último capítulo