- Será que foi ele quem deixou as cartas para nós três? - Roger falava para ninguém em especial, pensava alto. Hanna nem lhe chamou a atenção quando ele acendeu um cigarro, ela também estava imersa em pensamentos e só se afastou dele, involuntariamente por causa da fumaça.
- Pode ser. E o que é Solstício de Verão? - Indagou Bento.
- Dei uma olhada na biblioteca do colégio que fui hoje para ver se farei faculdade lá, e pesquisei um livro. Me parece que é o dia mais longo do ano, tipo, é quando os pólos da terra se inclinam ao máximo e recebe mais luz do sol, é o dia mais longo do ano, e a noite mais curta, alguma coisa assim. - Finalizou Hanna.
- E quando será isso?
- Perguntei à bibliotecária e ela me disse que será daqui há nove dias.
- Mas por que o endereço é na fazenda, no orfanato, se não enviamos a carta para lá? Morávamos lá e não foi para lá que enviamos a carta?
Pois bem, o assunto principal estava ali. Concordavam que isso só podia ser por causa da carta que enviaram.
- Está tudo muito estranho. Éramos crianças, nem sabíamos o que estávamos fazendo. - Exclamou Roger.
- Ficamos obcecados, Roge, acreditávamos o bastante quando enviamos a carta. - Hanna bebericava a água gelada, lembrando da carta.
- Como toda criança. Claro que acreditávamos, e repito: éramos crianças.
- Passamos anos lendo aquele livro, fazia todo sentido cada história que líamos, queríamos aprender feitiçaria, mágicas…
- Éramos crianças! - Roger interrompeu a amiga.
- Sei disso, mas não te parecia na época que era real?
- Como parece às crianças que o papai Noel, a fada do dente, o coelhinho da páscoa existem. Tantas coisas me pareciam real naquela época, Han. Eu acreditava que encontraria uma família maravilhosa que me amaria, acreditava até que seria adotado antes de vocês.
Talvez por esse motivo, os três se dessem tão bem. Não soava à eles que o amigo estava agindo como vítima, não o abraçavam quando ele estava revoltado por ter sido abandonado pelos pais em um orfanato. Ele mesmo nunca verbalizou uma revolta quanto à não ter sido adotado. Não passavam a mão em sua cabeça com condescendência quando ele se rebelava. Somente com os amigos, Roger podia ser ele mesmo, sem causar piedade, e isso desde que eram pequenos. Educadores, psicólogos, padres e freiras que visitavam e se voluntariavam na Casa Abrigo, tendiam a ter pena do garoto que demorara a aprender a falar, a ler, e que não se socializava; outras crianças que eram escolhidas por pais amorosos, vinham se despedir e deixavam a pena no olhar para os que ainda permaneceriam, em especial para Roger, Hanna e Bento jamais fizeram isso, jamais se apiedaram dele, tratavam-no como igual.
- São só conjecturas, posso estar errada, mas penso que temos que chegar a fundo nessa questão, temos que ir à Fazenda, que é como diz a carta, e ver o que se trata. Devemos ir no dia do Solstício e ver o que acontece.
- Meu Deus, não quero ir. O que direi ao padre Olivério? Que vou a, sei lá, um encontro de magia e feitiçaria? - Roger disse, abanando a mão em tom de recusa.
- Você nunca teve problemas com mentiras. - Falou Hanna. - Viu que não é uma opção recusar?
- O que você acha, Bento? - Perguntou Roger.
- Na verdade, penso igual a você. Nem me lembro bem o que escrevemos na carta, éramos pivetes à procura de algo oculto, sei lá. Mas ter jogado a carta fora e ela voltar, você rasgou a sua e está perfeita, Hanna viu o homem estranho e corcunda, ou seja lá o que for, entregando a carta, já o viu antes, a faxineira dela disse que a carta está escrita em ouro… não sei se quero me arriscar a ignorar, amigo.
- E o que pode acontecer se ignoramos? - Perguntou Roger, ainda cético.
- É isso que não queremos descobrir. - Sentenciou Hanna.
- Eu passo, vão vocês e me digam depois o que palhaçada foi essa.
- Você também foi convocado, Roge. Não só Bento e eu, e como nós, avisaram você que não é uma opção não comparecer.
- Convocaram-me, avisaram-me, está escutando como soa ridículo o que está falando, Han? Quem nos convocou?
- Não sabemos, Roge, mas creio que você também está preocupado, nós te conhecemos.
- Não conhecem, pelo jeito, estou pouco me fodendo para isso tudo.
- Padre Olivério ficaria chocado se soubesse quanto palavrão você fala em sua ausência.
- Não falo só na ausência dele, e também estou me fodendo para isso.
- Olha. - Interferiu Bento. - Não acho que possamos obrigá-lo a ir com a gente, mas me pergunto até quando você vai querer manter essa banca de bad boy, de rebelde sem causa, não cansa sustentar essa máscara? Às vezes penso que deve ser cansativo para você manter essa pose.
- Olha, Bento, por que você não vai se foder?
Bento se levantou, derrubando a cadeira e o puxou pelo colarinho. Hanna de um salto, estava entre os dois, separando-os. Roger era mais alto e mais forte que Bento e, com um sorriso de deboche, fitava-o sem se defender.
- Estou cansado das suas frescuras. Cansado de ver você ofender as pessoas que se preocupam com você, cansado de sua boca suja na frente de Hanna e de qualquer pessoa, cansado de ver o trabalho que dá para o pobre padre. - Bento falava entre dentes, perdigotos molhavam o rosto de Roger, mas ele mantinha um sorrisinho de desafio.
- Me solte ou eu vou quebrar a sua cara! - Vociferou Roger, aproximando ainda mais o rosto de Bento.
Só quando o dono do bar gritou com eles, foi que perceberam os tapas que Hanna dava nas costas dos dois. Chocados, eles viram que ela tinha o nariz vermelho e uma lágrima lhe escorria pelo rosto delicado.
- O que está acontecendo com vocês?! - Perguntou a amiga, com uma voz chorosa.
Bento se sentou, meio entorpecido. Estava envergonhado de ter quase agredido o amigo. Roger, após se sentar também, chacoalhou a cabeça, como se tentasse voltar a si.
- Me desculpe, Han. Me desculpe também, Roger… não sei o que me deu.
- Peço desculpas aos dois também, que estranho, eu… me desculpem.
- Não quero mais discussão, ouviram? Chega de discussão e brigas, chega de palavrões, nunca fizemos isso antes, somos adultos!
- Hanna, eu juro para você que não sei o que me aconteceu, Roger já me tirou do sério inúmeras vezes, já fez coisas absurdas e nem por isso o ameacei.
- Eu também. Parece que saí do sério, não vai mais acontecer. Prometo.
Ela segurou a mão dos dois sobre a mesa, entre as suas, fechou os olhos aliviada.
- Tem algo estranho acontecendo, meninos
- Percebemos. - Disseram os garotos, juntos.
- Vamos nos encontrar no dia, daqui há nove dias e irmos os três juntos? - Ela perguntou.
- Não vou em seu carro, odeio seu carro fresco. - Disse Roger, sorrindo.
- Meu carro é automático, muito melhor que o da paróquia.
- Sem chances, e nem no do pai do Bento, não sei o que vocês vêem nesses carros modernos.
- Você já se acha o especialista em carros, o melhor mecânico e entendido de carros do universo. - Gargalhou Bento. - Vamos no da Hanna mesmo, é mais novo e tem menos chance de quebrar na estrada, são quase cinco horas de viagem até a Casa Abrigo.
Os dias se passaram e os amigos se ligavam duas ou três vezes ao dia, às vezes mais. Estavam realmente preocupados.- Fui a dezenas de bibliotecas e livrarias e em nenhuma delas encontrei o livro. - Dizia Hanna à Bento, em uma de suas ligações a noite. - Não me lembro muito bem dele, você se lembra?- Engraçado que não, me lembro de algumas histórias, não todas elas, mas a capa, só me lembrei quando vi o desenho na carta de Roger, mas do autor, nada, não me recordo muito bem.- As folhas eram parecidas com as da carta, você percebeu? Rústicas, envelhecidas.- Como pergaminhos. Me lembro de estar com ele aberto, escondidos no quarto para não mandarem apagarmo
- Não precisamos levar muita coisa, não vamos nos demorar por lá, e lá tem tudo o que precisamos. Podemos comprar algo para comer nos postos da estrada, água. Ah, vou levar uma garrafa térmica com chá.- Ah, por Deus, Han. Leve café, quem leva garrafa com chá em uma viagem por mais curta que ela seja? Nunca vi uma pessoa levar chá em um passeio ou viagem.- Leve o que você quiser, Roge, eu vou levar chá e pronto acabou.- Você viu, Bento, ela me disse para levar o que eu quiser.- Menos bebidas alcoólicas ou drogas, seu infeliz.- Mais um adjetivo. - Ele novamente fingiu anotar.Riram e
Pararam em um posto, há duas horas da cidade em que iam.- Preciso mijar. - Roger pulou do carro antes mesmo da garota o estacionar direito. - Hanna é uma péssima motorista, não se preocupa com o bem estar de seus passageiros. Estou com fome, também.- Vou ao banheiro e os encontro na lanchonete. - Ela disse, se afastando com a mochila do amigo, ia realmente revistá-la.- Por que traz uma faca? - Perguntou ao se sentar com eles em uma mesinha na lanchonete, que naquela hora, pouco mais de vinte horas, não estava muito movimentada.- É um canivete, Han, não uma faca. Sempre carrego esse canivete para emergências.- Que emergências ter&iacu
Apenas seus passos eram ouvidos, e a mochila de Roger que batia em suas costas. A escadaria era larga e no meio da sala de acolhimento, chamavam-na assim por ser o primeiro contato, propriamente dito às crianças que ali chegavam. Era uma sala ampla e agradável, com sofás aconchegantes, um piano branco de cauda e muitas caixas de brinquedos encostadas na parede, além de mesas enormes com os mais variados jogos manuais. Não se via nada disso, mesmo na penumbra, via-se que a sala estava deserta, as janelas de vidro, do teto ao chão, com suas cortinas claras, estavam cerradas, sem cortinas, a sujeira e poeira de anos, impedia que se visse lá fora. Dora teria um surto ao ver tanta sujeira e descaso, era orgulhosa daquele cômodo, em particular.- Podemos quebrar os vidros das janelas, se não encontramos uma saída. - D
- Nunca senti tantos arrepios em minha vida. - Disse Hanna.Desceram devagar os degraus. Um Lugar que brincaram muito de esconde esconde, que jamais temeram estar, que escolhiam livros que não tinham ainda sido separados para a biblioteca, gostavam de serem os primeiros a lerem; mais Hanna, que era obcecada pela leitura, passava horas pesquisando para o colégio. Agora desciam os quinze degraus de madeira, temerosos, os rangidos que nunca antes perceberam, parecia ser o prelúdio de algo nefasto.Nem perceberam que seguravam as mãos enquanto desciam, mesmo em fila indiana, muito menos se deram conta de suas mãos trêmulas a segurar a do outro que também tremia.Nenhum redemoinho. A fraca luz da lamparina era o suficiente para saber que ali estava tão deserto quanto
- Parece normal, não? Começava assim, com a história de Nena, a marrenta. - Hanna passava as páginas devagar. A cachorrinha era magra, cor caramelo, olhos tristes e cansados.- Deixe-nos ver também - Pediu Bento, puxando o livro para que os três o lessem. - Sim, isso mesmo, uma cadelinha ingrata que sempre mordia seu dono, que a acolheu da rua.- Chamavam-na de Lena melequenta. - Ele lia rápido a história, pulando linhas.- Mas que no fundo era uma cadela revoltada e até primorosa. - Lia Roger, as linhas de letras grandes.- Vamos ver as seguintes, me lembro de algumas. - Hanna passou as páginas, haviam algumas gravuras, desenhos de uma cadelinha magra, toda suja, quando foi resgatada das
- Meu pai vai me matar, deve ter riscado o capô. - Hanna mordia a unha, ainda sentada entre os bancos da frente e sem cinto de segurança.- Dê-se por satisfeita se ainda estiver viva até os verem novamente, está tudo muito estranho. Acelere mais Roger, ligue o farol alto, ao menos até passarmos pela porteira.Roger acendeu os faróis e pisou no acelerador. O fecho da luz artificial cortou o negrume da noite, só se viam árvores por todos os cantos e o chão de terra vermelha à frente.Não estava longe da porteira, viam-na adiante, Bento já tinha a mão na porta para abri-la ao chegarem nela para poder abri-la. Foi quando o facho de luz iluminou o homem no meio da porteira. - Me parece que temos que continuar a olhar o livro, entendi que ele é um manual. - Bento pegou o livro e passou a folheá-lo, os amigos, agora sentados juntos atrás, o acompanharam.- Supondo que sejamos nós, os que cita o livro, diz que não somos os três mosqueteiros, creio que sejamos nós. - Começou Bento a tentar decifrar o que liam. - Diz que somos desgarrados… não somos desgarrados!- Nem sobreviventes. - Acrescentou Hanna.- Somos sim, estamos vivos. - Roger encarava os amigos. - Será que morremos na estrada e nem percebemos?- Não seja idiota, Hanna está sangrando, eu estou com dor de cabeça por causa da pancada, estamos bem vivos. Deve ser um enigma issoCAPÍTULO TREZE