CAPÍTULO UM

NADIA.

O dia começou amargamente frio e cinzento e os cães não sentiam cheiro. A grande matilha de cães farejadores que um dia encontraram drogas dentro de troncos de árvores no meio da floresta, se aninhavam um com os outros na tentativa em vão de se aquecer um pouco mais.

— Os melhores de todo o batalhão, você disse.

— Até mesmo os melhores tem seus dias ruins — o tempo mantinha um vento cortante, deixando uma tarefa simples como falar se tornar miserável.

— Está frio demais para caçar.

Mas isso Nadia já sabia. Sabia que não era possível encontrar uma poça de sangue sobre tanta neve, um corpo perdido há dias não seria farejado.

Mike, Furiosa e Donzela choravam quando a Sargento enfim decidiu partir. Os cães andavam rápido demais, ansiosos por ração e um lugar quente, mas alguém poderia culpá-los? Até seus subordinados choravam pela mesma coisa.

O parque esteve interditado há mais de uma quinzena e cada centímetro inabitado lhe parecia a grande e assustadora floresta durante as madrugadas de silêncio.

— O que foi querida? — indagou à Donzela. O cão parecia mais nervoso que o comum, tentando escapar da coleira e fugir sem seus irmãos atrás de si. Nadia entendia que era um risco desnecessário, sabia que o cão poderia apenas correr em volta das árvores e voltar com nada mais que um pedaço de graveto ou algum pacote de maconha esquecido, mas ainda sim tinha que arriscar. Donzela nunca falhava. — Vamos lá, me traga algo bom.

O cão saltou por cima dos irmãos em uma velocidade exagerada o bastante para fazer Nadia soltar as coleiras e correr atrás dos cães. Seus parceiros tinham que esperar ou simplesmente correr também.

Cruzaram um tronco em putrefação, pisaram em territórios macios demais pela neve, pelo lago congelado até chegarem a uma leve colina, tão pequena que mais parecia uma lombada de asfalto. Mas ali poderia guardar um pote de ouro. Nadia atravessou a parte mais estreita do lago, que rachava sobre seus pés pesados pelas galochas. Naquela situação correr ou ser cautelosa não mantinha muita diferença. Os cães a aguardavam do outro lado. Respirou fundo e caminhou em cautela, demorando mais que o necessário para atravessar uma beirada tão pequena aos olhos comuns.

— O que temos aqui? - perguntou aos seus cães que descansavam sobre algo. Nadia os afastou surpresa demais para chamar por qualquer um e quando o último cão se afastou, havia um amontoado de roupas velhas. - Porra. O que há de errado com vocês?

— Sargento! — a voz pendia sobre o ar como um leve sussurro, como um segredo. Mas Nadia não gostaria de ouvir reclamações sobre o quão arriscada fora sua decisão. — Sarge! Você precisa ver isso!

Direita ou esquerda? A voz mantinha-se tão distante que era difícil decifrar. Seus ouvidos doíam pelo forte vento, seu olfato já não parecia ser existente. Mais um chamado. Apenas um.

Nadia enfiou-se ao máximo em seu casaco e prendeu os cães novamente, eles tinham que ajudá-la.

— Vamos lá garotos, eu sei que conseguem.

E conseguiram. Nadia não poderia entender a facilidade que um cão poderia ter para farejar, na verdade, Nadia gostaria de ser tão boa quanto eles. Roger e Donald mantinham-se abaixados sobre qualquer coisa escondida demais para ser vista de longe. Os cães estavam inquietos e prendê-los sobre uma árvore fora necessário.

— O que temos aqui? — ao se afastarem Donzela uivou alto como um lobo de floresta.

A garota tentava sair do lago e marcas grandes de mãos formavam um desenho até bonito em volta do corpo. Estava bem protegida do frio, com luvas, um grosso casaco impermeável e touca. Nadia se aproximou rodeando a cena de longe para não alterá-la.

A jovem mantinha seus grandes olhos castanhos abertos, vermelhos e fundos, a boca estava entreaberta deixando uma pequena criatura presa entre os dentes, como se a moça estivesse o pondo para fora.

— Ela ainda está quente.

— Isso não é possível — retrucou aproximando-se mais que deveria, não havia cheiro de putrefação, os corvos ainda não bicavam nenhuma parte e o pássaro parecia uma escultura bem feita. Ela estava quente ao toque. — Me dê seu celular.

— Nós já chamamos reforços.

— Me de seu celular — o timbre saíra de si como facas cortantes na garganta, como se as palavras doessem. Nadia tirou algumas fotos específicas, aproximando-se ainda mais da face da moça, captando cada detalhe. Até mesmo um simples zoom de celular poderia revelar coisas que seus olhos não poderiam ver. Ainda de luvas, deu mais um passo para frente, fitando o animal tão de perto, havia um leve movimento. — Está vivo.

Retirou sua luva sentindo o frio cortante sobre a ponta dos dedos, gostaria de colocá-la novamente, mas não poderia. Quebrando todas suas regras básicas de cenas criminais, Nadia abriu a boca do cadáver com cuidado, mas conseguiu sentir o leve craque de um possível osso se partindo.

— Sargento... — chamou-lhe.

— Eu sei o que estou fazendo — a criatura começou a piar baixinho, com a barriga fazendo seus movimentos de vaivém de uma respiração desesperada. O envolveu sobre a luva cuidadosamente e com o polegar, começou uma leve massagem — Eu sei que parece loucura, mas algo me diz que esse animal vivo quer dizer algo.

Com o animalzinho sobre o bolso do casaco, levantou-se em cautela, voltando a atenção aos companheiros.

— Vocês sabem...

— Você nunca esteve tão próxima à cena do crime, nada tem suas digitais, tenente.

— Sargento Jaworska — o som de sua voz pareceu-lhe baixo, cauteloso — Você acha que... Eles voltaram?

Soltaram um relance para todos os corpos e pequenos pássaros putrefatos sob a neve.

— Isso é outra coisa.

Doze xícaras grandes de café, algumas pílulas e coragem era tudo que Nadia precisava em noites de sábado, ainda mais tratando-se de noites como aquela.

Eram mais de duzentas fotos a serem processadas cuidadosamente, sem contar nas pistas encontradas ao redor da cena. Mas Nadia não conseguia entender o grande quebra-cabeça que residia ali.

— Então mais uma noite sem dormir? — disse-lhe com nada mais que um roupão sobre o corpo arrepiado como de quem acabara de sair das cobertas — O que temos aqui?

— Um amontoado de corpos, um tanto de pássaros na cena.. Você sabe só rotina.

Mas Malina Jaworska não seria dispensada tão facilmente, isso era fato. A mulher sentou-se ao lado de uma pilha de documentos e passou a analisar todas as fotos espalhadas pelo tapete da sala.

— Corpo com pássaros? Eu não me lembro de ter analisado isso.

— Os arquivos foram enviados à mim — começou interrompendo as palavras com goles de café — Eu mesma pedi cópias para estudar fora do expediente.

— Se fosse fácil assim, não é? Mas você tem que se dedicar em excesso em todos os casos... — Malina levantou-se enfim — Não quero atrapalhar sua obsessão, digo.... Investigação, vou dormir. Deixei cobertas limpas caso queira um pouco de sono e paz.

Mas sono e paz Já não eram palavras familiares a Nadia. A mulher não conseguia se lembrar da última vez que dormira por oito horas seguidas, da última vez que fizera algo com Malina. Juntando seus papéis sobre uma grande caixa de papelão, a Sargento se enrolou em sua manta e caminhou em direção ao quarto onde encontraria a mulher mais incrível do mundo encostada sobre a três travesseiros grossos, de abajur aceso lendo um novo exemplar que pegara na biblioteca.

— Desculpe.

— Tudo bem — o livro fora deixado de lado, mas a face brilhante por debaixo de todo o creme de argila negra que lhe cobria a face demonstrava toda sua ira — Só não espere que eu vá te acobertar todas as vezes.

— Lina, esse caso...

Mas ela a conhecia bem demais.

— “Eu estou realmente próxima de pegá-lo” — disse em seu timbre analítico.

— Não, não é isso. Você consegue ver esse padrão? Todas as cores? Os animais?

A mulher encarou as fotografias por um período longo.

— Não há mais portais. Eles não podem nos tocar.

...

O departamento de polícia era uma coisa apertada onde uma fileira extensa de mesas era dispostas a todos. Nadia deixara sua mesa decorada com uma moldura clássica e um punhado de livros para enfeite, um adesivo no computador. Notou a expressão séria do capitão e um inseto percorreu sua espinha.

Quando a porta se fechou automaticamente atrás de si, Nadia sabia que era seu fim.

— Por favor — indicou o assento — Sargento, você entende a importância de um caso arquivado dentro do departamento? O tamanho do problema que ele causa no meu sono durante as madrugadas livres de sexta-feira? — em confusão, ela optou por negar em gesto — há um amontoado de folhas que me assombra há mais de dois anos e meio e eu não vou conseguir ter uma boa noite com minha esposa enquanto esse arquivo não estiver finalizado.

— Certamente acharei uma forma de ajudá-lo com suas noites de sexta-feira — aquilo definitivamente soara melhor em sua mente se fosse julgar a expressão de Rybarski.

— Você sabe porque entre todos eu escolhi você para esse caso? — porque sou superior a todos na equipe? — Porque você entende como as coisas devem ser feitas. Teve sucesso em resgatar as gêmeas do Tridente, violou uma cena de crime por intuição.

Então ele sabia.

— Capitão...

— Alguma coisa aconteceu nesse último ano e nós sabemos bem o que.

— Capitão...

— Você começa amanhã.

Mas o amanhã surgiu em linhas cinzentas e repletas de gelo. Nadia demorou quase duas horas para chegar enfim ao departamento, com os pneus atolados e sujos de lama e neve, com os vidros tão brancos quanto leite e as mãos tão trêmulas quanto um terremoto. Sua equipe aguardava na sala de reuniões.

Não era a primeira vez que ficava em frente à detetives para discutir um caso, instigar ideais e tomar dois litros de café antes de uma busca, de longe era primeira vez em que não dormira de noite focada em páginas detalhadas, mas naquela ocasião em especial, tudo pareceu desmoronar.

Seu novo esquadrão era composto por quatro homens altos e atléticos à sua maneira. Ali, onde todos poderiam vê-la, Nadia mantinha uma certa personagem que criara ao longo dos anos, ali era Nadia Jaworska uma sargento respeitada e temida por muitos, séria demais, competente.

— Suponho que tenham feito a lição de casa — e com o controle passou para a primeira das fotos. O corpo fora encontrado na floresta, onde lebres e pássaros empalhados formavam uma espécie de cenário. A figura cadavérica era uma mulher de vinte e três anos, sem arcada dentária ou dedos, tornando a identificação difícil até mesmo para os mais experientes.

— Garota da floresta, aproximadamente vinte e quatro anos, caucasiana, dentre cinquenta e três a sessenta quilos.

— E devo supor que passou a maior parte do expediente apenas ensaiando falas. Você — Nadia encarou seu crachá por um instante — Stoch.

Era como seu pequeno clube de escola. Nadia pôde sentir o olhar raivoso da maioria.

— A garota da floresta transmitia toda sua dor entre um olhar, os animais eram parte de si — o mais tênue dos timbres fora adentrando a cena sem pretensões. Era uma coisa calma, afetuosa de alguma forma — Os animais são a passagem de estação, onde o verão assume um papel doloroso de passagem, onde a maioria não sobrevive, as lebres são a caça pela sobrevivência, a lembrança de estar vivo.

Nadia a fitou por um longo período. Era uma coisa magricela, alta demais. Os cabelos um amontoado de fios escuros e tão enrolados, os olhos eram profundos como um oceano durante uma madrugada gélida.

— E você é?

— Provisoriamente parte de sua equipe, Sargento — mas não precisou encarar um crachá sobre seu uniforme, já que não usava nenhum. A moça a sua frente era uma cabeça mais alta que a maioria dos policiais presentes, mantinha uma camisa levemente manchada de algum líquido mostarda no qual havia tentado limpar minutos antes, havia uma leve mancha de rímel na face.

— Muito bem rapazes, parece que alguém fez a lição da casa - indicou para que sentasse — Creio que não repassei as regras enviadas ao e-mail de cada um de vocês. Não tolero piadas homofóbicas e sexistas, qualquer tipo de bajulação e para você, detetive, não tolero atrasos.

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