CATHERINE.
Em algumas ocasiões sentia um buraco dentro de si. Não era como se estivesse com fome, era um ermo, um buraco enorme onde o coração estivera e sua cabeça também doía. Em alguns dias ou noites — era difícil distinguir — Cat não queria acordar. Gostaria de se aninhar ao velho manto e adormecer mais um pouco, ter a pouca paz que o silêncio lhe proporcionava poucas vezes.
Dividia espaço com um pequeno rato albino que insista em roubar os poucos grãos de comida lhe davam. A princípio tentara matá-lo de fome, escondendo o pão amanhecido sobre as roupas, mas bastou dois dias isolada para aquele roedor torna-se seu melhor amigo. “Venha pequeno Alfred”, chamava vez ou outra, mas o pequeno albino que tanto assemelhava à si, tendia a ignorar seus chamados.
Os passos sobre a escada era um alerta diário de que continuariam se movendo até obter um ambiente seguro o suficiente para finalizar o trabalho. Cat sabia disso, pois durante uma noite chuvosa, ela os ouvirá conversar.
Abriram a porta bruscamente fazendo a madeira velha roçar sobre a perna esquerda de Cat que se esforçava para parecer adormecida. Talvez tivessem revistado o pequeno cômodo antes de se retirarem, talvez não fossem a levar.
E não levaram.
Catherine tentava se alongar todas as vezes que acordava, retirava a roupa e a sacudia, a vestia de novo. O barulho do albino sobre o cômodo foi se tornando cada vez mais alto, mas ela não o via em nenhum lugar. Caminhou por poucos segundos e enxergou a claridade por debaixo da porta. De olhos cerrados tocou a maçaneta e a girou. Estava aberta.
Então encontrou o preto no branco, o mundo escuro e tão gelado. Bastou um pequeno passo para todo seu corpo ser direcionado para frente violentamente. O peito se movimentava de força rápida e desesperada, o coração parecia preparar um concerto de sapateado dentro de si.
Cat recolheu suas forças e tateando o novo ambiente com as mãos, descobriu uma textura diferente sobre os dedos. Era como um amontoado de molas flexíveis que se moviam de um lado ao outro a cada movimento que dava, como um túnel de molas. Isso, Cat tinha a certeza de se tratar de um túnel de molas. Percorreu durante um longo período, suas mãos e joelhos doíam por toda aquela textura diferente e então, estava de volta a floresta.
Se movimentou para fora do túnel sentindo a grama molhada sobre os dedos, sentindo a umidade sobre a face. A dor nas costas nunca lhe parecera tão ruim antes, mas agora que podia ficar ereta sentiu o corpo estalando.
Talvez pudesse voltar para dentro e se aninhar sobre o manto antes de partir, talvez fosse um jogo e logo que tentasse correr, alguém a pegaria de novo. Mas não havia cabana.
Finalmente ao olhar para trás, notou que o túnel era na verdade um amontoado de madeira velha, que não havia escadas, apenas um telhado acabado, algumas paredes em lodo, não havia manto nem Alfred. Onde estiveram os homens e a comida? A luz artificial que a rondava? Então passou a correr.
Havia lama e grandes poças de água gelada, as folhas sobre o solo eram amarelas e laranjas, os animais noturnos se escondiam ao vê-la passar, a grande camisola de inverno arrastava ao chão deixando seus passos mais difíceis a cada instante.
Cat tentava reconhecer o lugar que estava, tentava alcançar cada fragmento de memória que ainda restava em sua sanidade, mas não conseguia. Era tudo igual. Todas as árvores, canteiros, formigas e corujas. Estivera andando em círculos.
Correu até sentir os dedos dormentes em dor, desceu uma colina escorregando e o traseiro deveria estar em carne viva. Encontrou uma luz distante, como a de um lampião e se escondeu atrás de uma grossa árvore centenária. Mas não houve passos ou vozes, apenas silêncio.
Manteve-se escondida por mais tempo e quando pensou em se revelar para quem fosse, ouviu o quebra de folhas ecoar mais alto. Prendeu a respiração, mas não fechou os olhos, precisava saber.
O quebrar de folhas foi maior e maior e no instante em que a moça iria correr em medo, pôde observar a silhueta feminina caminhando em cautela, parecia assustada assim como Cat, mas a deixou passar e não proferiu som algum.
Não poderia saber quanto tempo havia se passado, mas mesmo assim decidiu correr. Seus olhos tentavam se manter fixos a qualquer coisa, mas era tudo igual. Árvores, canteiros, formigas e uma cabana. Então, em meio a toda a movimentação mundana, o craquelar de folhas e todos os animais noturnos, a albina sentiu sentiu uma forte pancada sobre toda extensão de seu corpo, tão forte capaz de levar seu corpo em total desgraça ao chão.
Já não sentia frio e os dedos se moviam perfeitamente. Cat respirou o aroma de lavanda e sentiu o tecido quente sob o corpo. Abriu os olhos enxergando uma face próxima a si, olhou ao redor e sentiu uma dor crescente sobre o braço.
— Finalmente acordou — disse em sua voz rouca e feminina — Achamos que iria morrer — limpou o ferimento com algodão fazendo Cat gritar em dor, mas seu timbre não ecoou pela enfermaria — Pronto, pronto. Não tema, minha jovem, agora pode comer alguma coisa? Uma sopa talvez?
Assentiu em sua insegurança. A velha ajudou Cat a sentar enquanto sua visão se tornava cada vez menos turva. A enfermaria parecia convidativa se não fosse julgar todas as camas vazias, as paredes brancas demais e o silêncio que percorria cada vez mais. Até mesmo o pernilongo poderia ser ouvido, mas não visto.
Fora uma longa pausa entre o desaparecimento da Velha gentil e a volta de passos humanos, leves demais. Quando deu por si, Cat estava acordando outra vez.
Havia um rapaz que mais se assemelhava a um padre e uma garota uma cabeça mais baixa que ele, vestida em seu hábito. A moça sentia-se tonta de alguma forma com toda a visão turva demais para enxergar detalhes, mas viu sua cama ser levemente erguida até seu corpo se sentir sentado o suficiente para uma refeição. A moça em seu hábito ergueu uma colher para si.
A sopa não era ruim, nabos, batatas e repolho juntos a um molho avermelhado.
— Querida, você consegue se lembrar de como veio parar aqui? — era uma voz grossa como a de um homem, mas quem emitia era uma figura esguia como lança, feminina a sua maneira. Quando Cat negou, a mulher suspirou.
— Coma um pouco mais — o rapaz a sua frente era um tipo de traços fortes, porém sua voz era uma coisa calma quase robótica.
A deixaram em paz pelo resto do dia para descansar, mas de longe poderia. Em seus sonhos, Catherine pôde ouvir o timbre rouco de sua voz, as milhares de palavras que costumava proferir então a umidade passou a escorrer sobre as clavículas. Acordou em susto e tocou a pele suja de sangue, precisava de alguém para ajudá-la a cuidar daquele infortúnio.
De pés no chão ergueu o tecido que lhe cobria em agonia e o retirou, caminhou pela sala com uma vela em mãos, adentrou um corredor largo e cumprido e o seguiu até o fim, não havia portas ou janelas, apenas candelabros sobre a parede, desligados. Não enxergava mais que quatro metros de si, mas não tinha medo. Havia corrido pela floresta sobre a luz da Lua, sentido a umidade das chuvas sobre o corpo, não temeu nenhum momento. Porque havia de temer agora?
Tem alguém aí? Perguntava em pensamento. Não há ninguém?
A porta de madeira estava aberta então a cruzou. Cat sentiu a cera quente sobre o indicador e tremeu em dor, mas continuou a caminhar. O ambiente agora parecia uma eternidade de entradas sem portas para esconder o que estava por dentro. Sobre a primeira havia um corpo de cabeça enfaixada, imóvel como se estivesse morto. O segundo encontrava-se duas camas vazias e ao terceiro nada. Cat respirou fundo e sentiu o gosto da bílis sobre a língua. Algo a fez continuar até o fim do novo corredor.
Havia um grande espelho cobrindo toda a extensão da parede, prateleiras com livros gastos até onde a vela conseguia captar. A moça sentiu os dedos roçando sobre o carpete do chão, se aproximou do espelho e fitou-se.
A faixa sobre o pescoço estava tão vermelha que o sangue escorrera por entre os seios sem que percebesse e algo tocou seu ombro a fazendo derrubar o que restava da vela.
“Não pode andar por aí assim”, ela lhe disse após acender três candelabros e a sentar sobre o sofá da saleta, Cat não entendia a linguagem de sinais “Temos mulheres aqui, mas também temos homens”.
Mas fora apenas quando a garota gentil retirou o grande casaco e a cobriu, que Cat pareceu entender alguma coisa. Fitou as mãos e a pele e o todos poderiam ver sua nudez. Ela se encolheu ao máximo ao sentir as mãos gélidas sobre seu pescoço.
Eu não quero ficar sozinha, gostaria de lhe dizer.
“Eu me chamo Teresa”, ela gesticulou devagar, entretanto sua expressão comum indicava que todos os seres humanos do mundo poderiam compreendê-la. “Você me entende?”.
Mas seu silêncio foi o suficiente.
A primeira luz da aurora veio acompanhada de um punhado de biscoitos de leite e café fresco. A garota gentil estava sentada à sua frente com o silêncio a lhes rondar. Catherine gostaria de conversar com alguém, mas não fora preciso muito pois logo após o café, um trio de polícias queria ter com ela.
— Você poderia nos informar seu nome? — sua voz era profunda como a de um locutor, porém menos emotiva. Seu uniforme era uma coisa mal passada, manchada pelo tempo.
Então um longo e tenebroso som de sapatos fora ouvido por toda extensão do ambiente, desesperado, apressado e de certa forma, desajeitado.
— Uma palavrinha? — sua voz pendeu em um eco com meias palavras ecoando pelo cômodo. Ali, o trio desapareceu por um instante longo e quando a porta novamente se abriu, só havia ela.
A mulher usava uma camisa branca de tecido fino, transparente ao ponto de não cobrir sua pele tão bem, o amontoado de cachos negros e tão brilhosos estava levemente amassado na parte de trás, indicando seu costume noturno.
— Eu sou Detetive Wilkowski e vou cuidar de você a partir de agora — puxando uma cadeira para perto da cama, ela sentou — Estamos na cidade de Truskaw em um hospital católico então você está segura agora. Consegue me dizer seu nome?
Cat sentiu como se uma grande bola de gelo estivesse percorrendo por todo seu corpo a fazendo estremecer. Os olhos formaram um nistagmo ainda maior e turvo.
— Está tudo bem, não precisa sentir medo.
Mas o silêncio a atingiu de forma negativa. A garota ergueu uma das mãos lentamente, tocando a faixa que lhe cobria o pescoço e então, Wilkowski pode entende-la.
— Aqui, tome meu caderno de notas. Você consegue me entender? — a viu assentir e palavras foram escritas — Catherine. Sobrenome? Não se lembra? Tudo bem. Vamos começar pelo mais fácil, qual a última coisa que você se lembra?
Fora preciso mais de uma hora para descarregar tudo. Contou sobre a cabana, a comida ruim, o rato Alfred e a floresta, os sonhos de Lua e túnel.
Fora um toc toc leve como de quem não quer incomodar, então a garota gentil se pôs para dentro com um copo mediano repleto de remédios, Catherine teve que tomá-los.
— Você ficará aqui pelos próximos dias, Catherine. Espero que esse tempo a ajude a se lembrar melhor de onde veio e onde queria chegar. Agradeço sua informações.
Wilkowski deixou o quarto em um aceno simpático, porém breve demais. Cat entendeu que seu trabalho de fala fora uma coisa inútil, que não poderia ser real. Como uma detetive iria acreditar que uma cabana havia desaparecido no meio da floresta? Que havia uma criatura gigante e esguia à lhe fitar, com olhos de lontra e garras de águia?
SPENCERO dia era uma escuridão cinzenta onde névoa pálida erguia-se sobre o cheiro de musgo e morte.E ali onde suas narinas captavam o cheiro metálico, a umidade sob a língua se tornava cada vez mais nítida. Uma grande linha curva se intensificou uma vez que os dedos puderam sentir toda textura grossa do amontoado de fios negros como petróleo. Fora uma margarida em cada pálpebra deixando teu olhar antes de ao ávido e azul, completamente branco.Os passos ficavam cada vez mais pesados e o nariz escorria em uma cachoeira sem sabor ou cheiros, o Viajante e sua longa capa negra foram caminhando pela estrada de terra, pelos rastros que vários caminhões de construção haviam deixado ao longo dos anos. Aquela era a parte feia da floresta, a parte desmatada pelo homem e sua ganância.
HENRY.Os longos fios avermelhados pareciam uma longa e bem produzida pintura emoldurada perfeitamente sobre a tela caucasiana e levemente rosada que sempre parecia-lhe doente. O nariz fino e sem projeção no torso estava sempre avermelhado e as bochechas nem precisavam de maquiagem.— Definitivamente esse é meu melhor look para casamento — disse ao entrar no carro.Henry captou o momento em que o tecido fino e rendado se movimentou sobre o corpo feminino, a forma com que o casaco preto e tão pesado caia aos ombros e as botas eram tão longas e brilhosas.Mas aquele não era casamento onde roupas sociais eram aceitáveis, sendo assim, Henry viu-se vestindo a velha jaqueta de couro de seu pai, um jeans levemente destruído no joelho e coturnos. Sentia-se fantasiado até demais.A grande e gótica decoração do jardim estava razoável ape
A maioria dos pássaros de pequeno porte não sobreviviam à passagem de ano naquela região. Os pequenos eram sempre vistos sob o solo úmido pelas fortes chuvas, gelados e sem vida. Os pequenos olhos ficavam abertos, porém vazios e as asas que antes o arremessaram a tantos lugares jazia encolhida sob o corpo em leve putrefação. As flores começavam a surgir na parte menos montanhosa da floresta, mas ainda sim a maior parte da floresta era um amontoado de branco gélido e marrom. As chuvas não tinham parado totalmente e apesar de todos os malditos casacos, Hanna sentia-se pronta para congelar. — Porque a floresta? — limpou um amontoado de lama das botas de serviço em um suspiro — Porque nunca em uma linda casa no centro? — Parece que ninguém vê graça em cadáveres apodrecendo em casas. MAGNUSAs folhas em putrefação formavam um grande tapete natural mostrando um caminho não cruzado por pés humanos havia tanto. Magnus sentia o odor de musgo, a umidade da terra deixava um cheiro tênue no ar e a vontade de correr pela floresta era tão grande.Mesmo distante era possível ouvir as vozes agudas sobre o mundo, o nome comum sendo proferido tantas vezes. Durante toda a busca, ninguém conseguiu ouvir sequer uma menção de esperança. Foram três dias completos de pesquisa onde grupos grandes se revezavam pela grande floresta gritando o nome comum.Magnus sentia os pés em leve dor pelo esforço da caminhada e vez ou outra, sentia a necessidade de sentar e descansar. Mas não tardou mais que um próximo dia para as buscas se tornarem mais escassas. As pessoas não se moviam como antes, o nome comum se tornava mais escasso à cada hora e a polícia menos pacientCAPÍTULO SEIS
SPENCERAs luzes ora azuladas ora avermelhadas deixava sua visão levemente confusa, como se o festival fosse uma tortura sem fim. O grande espetáculo estava prestes a começar. Era possível ouví-los cantando e batendo palmas, mas estava distante demais para entender.Tambores, fleches de celulares, vozes unidas a uma única canção, antiga demais para ser compreendida pelos mais novos, mas mesmo assim, com papéis em mãos, tentavam acompanhar.— Você sabe que língua é essa? — indagou observando o papel que havia ganho de uma senhora gentil — Nossa, parece de outro mundo. Olha só!Mas a letra da canção não era mais importante que a falta de dançarinos. A melodia era lenta apesar dos tambores serem anima
RITAHavia algo triste na forma com que seu corpo fora deixado a beira do lago. Talvez o tecido branco de sua camisola de verão que estava submerso deixando uma doce transparência passar por suas pernas e quadris, os mostrando tão ossudos e pálidos, como se o líquido rubro não fosse mais parte de si. Era uma figura tristonha pousando seu cansaço sobre um velho tronco grosso e putrefo, escuro pela liquefação. Talvez fosse o emaranhado de fios negros que cobriam parte de sua face vazia de expressões, talvez Rita visse tristeza em cada parte daquela cena.Dale retirara o corpo após uma análise minuciosa e parcial, captara cada evidência e se pudesse, teria pego também o tronco e toda a água do lago para analisar. Rita fizera toda a inspeção do lugar, analisara cada centímetro quadrado e mesmo assim ainda sentia como se esque
HENRY.A Lua surgira à cena como um longo lembrete de horário excessivo. Com não mais que uma centena de arquivos e fotos espalhados por toda a sala de análise, organizadas por ordem cronológica e em algumas vezes por semelhança, Henry sentia exausto e inútil.Passara metade de uma noite deitado sobre um gramado gelado, sonhando sonhos de Lua, bebendo da mais tênue lembrança inventada para no fim não ter nada.— Eu vou matar você enquanto dorme — ela havia lhe dito tão irritada e mesmo assim, passara toda a noite consigo, estudando até adormecer no divã. Henry pegara sua manta de estudo para cobri-la.Juntou todas as peças necessárias para um estudo maior e sem qualquer tipo de autorização, as enfiou em uma pasta e guardou em sua bolsa. Henry teve que recolher tudo sozinho, organizar como deveria ser organizado e limpar a sala, sentir o cheiro de limpeza emerg
CATHERINE.Estava revestida em um grande manto branco e macio. Seus dedos acariciaram o pelo macio sentindo cada fio até chegar a grande e dura pata negra como ferradura. Havia um leve peso sobre a cabeça da pequena e por mais que tentasse se livrar da máscara, estava grudada à si. Um grande bode branco como leite e seus chifres eram pontiagudos,os olhos estavam fechados.Sentiu os dedos apertando a carne macia de um braço magricela e repleto de pelos e quando seus olhos se abriram encontrou Wilkoskia lhe fitar.— Sonho ruim? — perguntou em sua gentileza. Ela assentiu e com um leve movimento nada sutil tentou sentar — Tudo bem, venha cá.Ritaera uma pessoa gentil apesar de seu devaneio constante. Não eram raras as vezes em que a policial adormecia apoiada sobre o sofá.— Você se lembra um pouco mais hoje do que onte