Tessar Vrynn
A primeira vez que a vi, pensei que fosse um fantasma. Estava escondido atrás dos rochedos, o cheiro de sal e sangue velho entupindo minhas narinas. A aldeia de Tallinn era um cemitério de pedra à beira-mar, onde as ondas batiam como punhos famintos. Os abutres estavam todos lá: velhas de véu preto, homens com rostos de cobra, e aqueles malditos sacerdotes de túnica vermelha. No centro, uma garota. Ela estava de pé na borda do penhasco, os pulsos amarrados com corda de cânhamo, o vestido branco colado ao corpo por causa do vento e da brisa que o mar trazia. Sangue escorria da barriga dela, onde uma adaga de cabo enferrujado Ainda estava cravada — aquela merda de ritual . Praguejei sozinho. Ela não era só bonita, havia algo mais. o seu rosto pálido contrastava com os cabelos castanhos, seus lábios azulados e olhos vermelhos de tanto chorar quase me hipnotizavam . Mas não gritava. Não pedia ajuda. Apenas olhava para o mar, como se já estivesse morta. Um dos sacerdotes, um velho com tatuagens de serpente no pescoço, ergueu as mãos pro céu e berrou algo sobre "purificação". Outro, mais novo, hesitou. Vi ele segurar o braço do velho, sussurrar algo. A resposta foi um tapa seguido de um estalo — o jovem sacerdote caiu de joelhos, sangrando pelo nariz. — J**a ela! — o velho ordenou. Dois homens pegaram-na pelos ombros. Ela não lutou. Só fechou os olhos, e um único soluço escapou quando a levantaram no ar, ela virou o rosto e relaxou o corpo como se aceitasse a queda e abraçasse a morte como amiga. O som do corpo dela batendo na água me fez encolher os dentes. Não sei por que corri. Não era meu problema. Já tinha me fodido demais salvando gente que não valia a pena. Mas meus pés se moveram sozinhos. Mergulhei na água gelada antes mesmo de pensar. A escuridão do mar engoliu tudo. A luz da lua era fraca, mas vi o rastro de sangue subindo como fumaça. Nadando pra baixo, quase engasguei quando a encontrei: flutuando de bruços, cabelos como algas ao redor da cara, a adaga ainda cravada na carne. Seus olhos estavam abertos. Olhando pra mim. Puxei ela com uma força que quase deslocou meu ombro. Quando rompemos a superfície, ela vomitou água e sangue, e eu... eu ri. Ri igual um maldito louco, porque ela tossia, ela respirava, e aquilo me fez sentir vivo pela primeira vez em anos. Os tiros começaram antes que eu pudesse puxá-la pra areia. — Pirata! — alguém gritou. O jovem sacerdote o que tinha levado o tapa correu em nossa direção com uma faca de cozinha. Ergueu a lâmina, mas congelou quando nossos olhares se encontraram. — Ela não é maldita — ele sussurrou, trêmulo. — Só assustada. Quase o matei. Quase. Mas alguma coisa na voz dele, um arrependimento? me fez baixar o cutelo. — Fuja — gritei, enquanto os outros sacerdotes avançavam com mosquetes. — Antes que eu mude de ideia. Ele fugiu. O resto não teve sorte. No convés do Arraia negra enquanto o cirurgião costurava o ferimento dela, eu me perguntei o que caralhos tinha feito. Mais tarde quando estávamos longe do caos do cais do porto procurei por ela, ela estava encolhida num canto, envolta no meu casaco, tremendo feito um filhote de foca. Cheirava a medo. A morte. Aproximei-me, e ela encolheu os ombros. — V… Vai me matar? — a voz dela era áspera, quebrada pela água salgada. Agarrei seu queixo, forçando-a a me encarar. — Se eu quisesse você morta, garota, teria deixado os peixes fazerem o trabalho. Ela engoliu seco. Seus olhos eram verdes. Verdes como a porra do mar antes de uma tempestade. — Então… o que você quer? Soltei-a e recuei, os nós dos dedos brancos de tanto segurar minha raiva. — Você vai trabalhar pra mim. Cozinhar. Limpar. O que for preciso. — E se eu me negar? Sorri, mostrando todos os dentes. — Aí eu te jogo de volta lá embaixo. Mentira. Mas ela não precisava saber disso. Mais tarde, quando a tripulação dormia, voltei ao convés. Ela estava lá, encostada no mastro principal, olhando pro céu. — Não consegue dormir? — perguntei, acendendo um charuto. Ela não me olhou. — Tenho medo de fechar os olhos. Cuspi a fumaça pro lado, observando o tremor nas mãos dela. Dez anos mais nova. Dez anos mais pura.E ainda assim… — O que fizeram com você no convento? — a pergunta saiu antes que eu pudesse pará-la. Liora encolheu-se ainda mais. — Diziam que eu… que eu atraía coisas ruins. Tempestades. Doenças. — Uma lágrima escorreu, mas ela a limpou rápido. — Mataram elas por minha causa. As freiras. Eu não sou homem de consolar. Mas naquela noite, por algum motivo, me sentei ao lado dela. Nossos ombros quase se tocando. — O mundo é uma merda — resmunguei. — Você ou aprende a nadar ou afunda. Ela virou o rosto, e pela primeira vez, vi ela. — E você? — sussurrou. — Afunda ou nada? Sorri de novo, mas dessa vez, foi diferente. — Eu sou o maremoto, garota. E naquele momento, jurou que vi um canto da boca dela se erguer. Só um pouco.O cheiro dela me perseguia. Não importava quantos litros de rum eu afogasse na garganta, quantas vezes eu esfregasse o rosto com água salgada. Lavanda e sangue. Era o que ela exalava, mesmo depois de eu ter jogado aquele vestido podre de sacrifício ao mar. Lavanda das freiras mortas. Sangue do corte que ainda latejava no ventre dela. Eu a observei da escotilha, escondido nas sombras como um cachorro faminto. Ela estava no meu camarote — meu espaço, minhas paredes marcadas por facas e mapas roubados —, sentada no chão, encolhida contra a cama. Os dedos dela traçavam o contorno de uma mancha de vinho no madeirado, como se ali estivesse escrito algum tipo de salvação. — Vai ficar a noite toda encarando ou vai entrar? — a voz dela saiu rouca, mas firme. Entrei, fechando a porta com o pé. O Arraia negra rangia como um velho reclamão, mas ali, naquela sala apertada, o único som era a respiração dela. Curta. Controlada. Assustada.— Você devia estar dormindo — gritei, mais para me conven
Tessar Vrynn A primeira regra do mar: nunca confie em um céu azul. Acordei com o cheiro de eletricidade no ar — aquele odor metálico que precede os piores pesadelos de qualquer marinheiro Arraia balançava suave, mas minhas entranhas sabiam. Uma tempestade vinha. E não era qualquer vendaval. Era aquela espécie de tormenta que faz até os tubarões se esconderem. Encontrei Garrick no convés, os olhos grudados no horizonte. — A leste — ele murmurou, apontando para uma mancha cinza que se aproximava como uma avalanche de água e raios. — Vai ser pior que a maldita Noite dos Cascos Partidos. Eu cuspi no chão. A Noite dos Cascos Partidos foi quando perdi metade da tripulação para um redemoinho. Os homens ainda sussurravam sobre isso nas noites de rum. — Prepare os canhões de amarração — ordenei. — E amarre tudo que não estiver preso ao casco. Garrick hesitou, o queixo apontando para a escotilha do meu camarote. — E a garota? A palavra saiu como um veneno. Não respondi
LIORA NIXNão fazia ideia do porquê Tessar estava tão bravo comigo, mas também… o que eu podia fazer? Eu só tinha que continuar limpando, fazendo o que mandassem. Era isso que um escravo fazia, afinal. Só percebi que estava chorando quando senti algo quente escorrendo pelo meu rosto. Limpei rápido, desesperada, antes que alguém visse. Se me pegassem chorando, eu podia acabar sem comida. Ou pior… com o chicote cortando minhas costas de novo. O pensamento da dor me trouxe memórias ruins, e meu estômago roncou. Fazia dois dias que eu não comia nada além do pedaço de pão e queijo que Tessar me deu. Depois disso, não tive coragem de tocar na comida. Todos acreditavam que, se eu comesse, a comida ficaria amaldiçoada. Que ninguém mais conseguiria comer. Que adoeceriam, morreriam de fome, e o navio se tornaria um navio fantasma… tudo por minha causa. Meus olhos começaram a arder, e o mar… o mar começou a se agitar. Eu pisquei, e no reflexo da água percebi que meus olhos, antes verdes, agor
TESSAR VRYNN Eu não sabia o que estava acontecendo.Estava no meu camarote, concentrado nas cartas náuticas, traçando uma rota que nos mantivesse longe da enseada de Lhamar, a ilha das sereias. Se fossemos pegos pelo seu canto, o navio inteiro poderia se perder. Era um risco que eu não estava disposto a correr.Então começaram os golpes no casco.Não parecia um canhão. O barulho era diferente, mais seco, como se algo estivesse se chocando contra a madeira repetidamente.Saí do camarote em passos rápidos, o cenho franzido, já preparado para qualquer ataque, mas o que vi no convés me deixou surpreso. Meus homens estavam parados, olhando maravilhados para o mar. Alguns pareciam encantados, outros assustados. E quando segui seus olhares, entendi o motivo.Peixes-espada se jogavam contra o navio. Um após o outro, como se tivessem enlouquecido. Alguns não sobreviveram ao impacto, caindo mortos na água ou deslizando pelo convés encharcado.— Bem, não precisaremos de suprimentos essa
Liora Nix Acordei depois do desastre dos peixes. O mar estava calmo, e o céu, mais estrelado do que nunca. Uma visão linda, quase irreal. O convés estava silencioso, apenas o marujo no topo do mastro montava guarda. Observei quando ele desceu devagar e, estranhamente, me desejou boa noite antes de seguir em direção à cozinha. Apesar do frio, não me cobri. Só queria sentir aquele momento, respirar a brisa salgada. A sensação de querer ir embora havia sumido, e isso era estranho. Ele fez isso comigo. De alguma forma, parecia ter arrancado a dor de dentro de mim com as próprias mãos. Me chamavam de bruxa, mas quem teve o poder de me acalmar foi ele. Ouvi passos lentos atrás de mim. Era ele. Por um momento, achei que fosse me abraçar por trás, mas ele respeitou meu espaço e sentou-se ao meu lado. — Se sente melhor? — Sua voz era baixa, quase um sussurro. Assenti sem encará-lo. — A tripulação pediu para que eu lhe agradecesse. Os peixes vão evitar que passemos a semana inteira comend
Acordei com uma dor de cabeça latejante. A noite passou rápido demais, e meu corpo parecia pesado, como se não fosse realmente meu. Nunca tinha bebido rum antes; ontem foi a primeira vez. Espero, de verdade, que tenhamos terminado a tradução das cartas. — Boa tarde, moça — Bjorn disse, entrando no camarote com um sorriso animado. — Tarde? — perguntei, confusa, enquanto me sentava na cama. — Você nunca bebeu, né? — ele riu, colocando uma tigela de caldo de peixe na mesa ao lado da cama. — Não, em 27 anos. — Isso se vê — ele respondeu, rindo baixinho. — Trouxe caldo de peixe pra você. Vai ficar enjoada, mas vai melhorar, tá? — Obrigada, Bjorn. Você é um amor. Ele sorriu, como se eu tivesse feito a melhor coisa do mundo. Quando ele saiu do camarote, sua alegria pareceu me contagiar, mesmo com a cabeça latejando. A porta se abriu devagar novamente, e ele entrou. O cheiro dele invadiu minhas narinas, e tudo ficou lento. Vi ele andando em minha direção, devagar, como se o te
Tessar Vrynn Duas noites. Malditas duas noites com ela naquele estado, e ainda nem chegamos à enseada de Lhamar. Se eu ficar, Liora não vai passar por tudo isso, mas se não ultrapassar a ilha, nunca serei, de fato, o rei dos Sete Mares. Que pirata maldito eu seria se temesse mulheres-peixe? — Capitão, estamos a todo pano, como o senhor mandou, mas... O senhor tem certeza? A senhorita Nix não parece nada bem. Olhei por cima do ombro para Garrick, meus olhos cheios d’água. A cena dela amarrada veio outra vez à minha mente, e eu levei a mão ao rosto. — Senhor, talvez, se dissesse a ela... talvez… Toquei o ombro de Garrick e desci as escadas do camarote. Havia pouco que eu não faria se Garrick me aconselhasse. Ele era um demônio do mar quando o conheci, tinha perdido esposa e filhos para uma doença e se embebedava todas as noites até ficar sem dinheiro para pagar. Quase morreu depois de ser espancado pelo dono da taverna. Eu saldei sua dívida e o convidei para navegar comigo. — Um h
Tessar VrynnMeu pequeno problema. Ela é tão linda… Não sei por quanto tempo serei humano e evitarei tomá-la.— Está quente. Você se sente bem?— Sim, me sinto bem. Mas já que você não pode sair, vamos dormir na mesma cama? — Os olhos dela brilham. Essa voz doce é linda. Qualquer homem cederia ao desejo, mas eu não sou qualquer homem. Eu sou Tessar Vrynn.— Não. Pode ficar com a cama, tenho muito a fazer — respondi, colocando-a no chão e me virando para sentar na cadeira.— Tudo bem, capitão Vrynn, irei dormir agora. Eu ganho um beijo de boa noite?Caralho. Ela sentou de perna aberta no meu colo. Que visão maravilhosa. Engulo seco, imaginando as diversas formas de fodê-la.— Um beijinho? — ela pede de forma manhosa, se aproximando de mim.O beijo dela é anestesiante. Nessa posição, ela me tem nas mãos.— Não faça isso. Posso machucar você, meu pequeno problema.Ela sorri com essas malditas covinhas lindas.Não curtimos muito tempo. Ouço os gritos de Asher no convés.— Não saia. Mesmo