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Capítulo 2: A Tempestade

Tessar Vrynn

A primeira regra do mar: nunca confie em um céu azul.

Acordei com o cheiro de eletricidade no ar — aquele odor metálico que precede os piores pesadelos de qualquer marinheiro Arraia balançava suave, mas minhas entranhas sabiam. Uma tempestade vinha. E não era qualquer vendaval. Era aquela espécie de tormenta que faz até os tubarões se esconderem.

Encontrei Garrick no convés, os olhos grudados no horizonte.

— A leste — ele murmurou, apontando para uma mancha cinza que se aproximava como uma avalanche de água e raios. — Vai ser pior que a maldita Noite dos Cascos Partidos.

Eu cuspi no chão. A Noite dos Cascos Partidos foi quando perdi metade da tripulação para um redemoinho. Os homens ainda sussurravam sobre isso nas noites de rum.

— Prepare os canhões de amarração — ordenei. — E amarre tudo que não estiver preso ao casco.

Garrick hesitou, o queixo apontando para a escotilha do meu camarote.

— E a garota?

A palavra saiu como um veneno. Não respondi. Em vez disso, desci as escadas com passos que ecoavam como trovões.

Ela estava de pé no centro do camarote, vestindo uma de minhas camisas — larga demais, cobrindo-lhe até as coxas —, com os braços envoltos em... cordas?

— O que diabos você tá fazendo? — gritei, arrancando os nós das mãos dela.

Liora pestanejou, surpresa.

— Aprendi a fazer nós ontem. Com o marinheiro da coxia. — Ela apontou para um manual de navegação em cima da cama, aberto na página "Amarrações Básicas".— Pensei que...

— Pensei que nada — cortei, jogando as cordas no chão. — Você não é tripulação. Não precisa se fazer útil.

Ela encolheu os ombros, mas vi o brilho teimoso nos olhos.

— Não quero ser um fardo.

—Você já é. Mentira, mentira sem escrúpulos.

A tempestade rugeu lá fora, e o navio inclinou violentamente. Liora caiu para frente, as mãos se agarrando ao meu peito para se equilibrar. Seus dedos queimaram através da camisa.

— Desculpe — ela sussurrou, recuando como se eu fosse fogo.

Eu a segurei pelo braço antes que pudesse cair de novo.

— Fica aqui. Não suba pro convés.

— Por quê?

— Porque eu disse.

Ela franziu a testa, mas assentiu. Saí, trancando a porta com uma chave enferrujada que guardei no bolso.

No convés, o caos já reinava. Homens gritavam, amarrando velas e arrastando barris para o porão. O céu estava verde agora — verde e roxo, como um hematoma gigante. Garrick me jogou um chicote de mar, e eu o enrolei no braço, preparando-me para o pior.

— Capitão! — Um marinheiro novo, Jarek, apontou para o mar. — Lá!

Uma onda do tamanho de uma montanha se ergueu à frente, sua crista branca brilhando como dentes.

— Segurem-se!

A água nos atingiu com a força de um deus vingativo. O Arraia gemeu, levantando-se quase verticalmente. Homens voaram como bonecos de pano, e ouvi o som de ossos quebrando antes mesmo de o navio colidir com a água de novo.

— Maldita seja! — gritei, arrastando-me até o leme. — Garrick! Onde está o...

Um clarão iluminou o céu. Não foi um raio.

Foi ela.

Liora estava no convés, descalça, com a camisa encharcada colada ao corpo. Seus cabelos dançavam no vento como tentáculos escuros, e os olhos... Os olhos dela brilhavam azuis.

— Volte lá pra baixo! — rugi, mas o vento roubou minhas palavras.

Ela não me ouviu. Ou não quis ouvir. Caminhou até a amurada, ignorando os homens que tentavam agarrá-la.

— PARE! — gritei, soltando o leme.

Foi quando ela levantou as mãos.

A tempestade parou.

Não gradualmente. Não com gentileza. Foi como se alguém tivesse cortado a garganta do furacão. As ondas congelaram em cristais de espuma. Os ventos viraram sussurros. Até a chuva parou no ar, pingando devagar, como lágrimas de vidro.

Liora caiu de joelhos, ofegante, as mãos tremendo.

— O que... o que você fez? — um marinheiro sussurrou, cruzando-se.

Ela não respondeu. Apenas olhou para mim, os olhos voltando ao verde habitual — mas agora cheios de medo.

Garrick puxou minha manga.

— Capitão. Isso não é natural.

Eu sabia. Mas também sabia o que precisava ser feito.

— Todos abaixo! — ordenei. — Agora.

Os homens obedeceram, arrastando os feridos. Só eu e Garrick ficamos.

— Você também — disse eu, sem tirar os olhos de Liora.

— Tessar...

— Abaixo!

Ele resmungou, mas desceu.

Aproximei-me dela devagar, como se fosse um animal ferido. Ela tentou se afastar, mas estava fraca demais para se levantar.

— O que você é? — perguntei, ajoelhando-me ao seu lado.

Liora tremeu.

— Não... não sei.

Menti. Sabia. Aqueles olhos azuis. O mar obedecendo. Só uma criatura tinha esse poder.

Filha de Seraphine.

— Você me odeia agora? — ela sussurrou, enxugando o rosto com a manga.

Eu ri. Um som seco, vazio.

— Odeio que você seja tão teimosa. Eu disse pra ficar no camarote.

Ela olhou para as mãos, onde veias azuladas ainda cintilavam.

— Eu só... não queria que eles morressem.

Peguei seu queixo, forçando-a a me encarar.

— Nunca mais faça isso. Nunca mostre esse poder pra ninguém. Entendeu?

Ela assentiu, uma lágrima escorrendo. Eu a ergui no colo — leve demais, frágil demais — e a carreguei de volta ao camarote.

Garrick me esperava na escotilha, os braços cruzados.

— Precisamos falar.

— Não agora.

— Agora.

Joguei Liora na cama — mais bruto do que pretendia — e fechei a porta. No corredor abafado, Garrick cheirou a ópio e preocupação.

— Ela é uma delas. Uma filha da puta da Seraphine.

— Não.

— Tessar, eu vi! O mar se ajoelhou pra ela como um cachorro!

Agarrei seu casaco, empurrando-o contra a parede.

— E daí? Você vai me dizer como comandar meu navio?

Ele não recuou.

— Vai me dizer que não sente o cheiro da morte nela? Que não tá colocando todos nós em risco por causa de uma buceta?

Meu punho acertou seu queixo antes que eu pudesse pensar. Garrick caiu, cuspindo sangue.

— Fala dela assim de novo, e te jogo no mar — rosnei.

Ele riu, limpando a boca.

— Tá apaixonado, capitão?

Virei as costas, as mãos tremendo.

— Tô entediado. Ela me diverte.

Mentira. Mentira desgraçada.

Liora dormia quando voltei. Encolhida como um ouriço, as mãos ainda azuladas. Sentei no chão, as costas contra a cama, e observei.

O que você está fazendo comigo, garota?Ela se virou, murmurando algo em um idioma que não entendi. Antigo. Perigoso. Puxei o cobertor sobre seus ombros, e ela agarrou minha mão no sono.

— Não vá... — sussurrou.

Fiquei.

Até o dia raiar.

A tripulação passou a evitá-la como se carregasse a peste negra nos dedos.

Na manhã seguinte à tempestade, encontrei Liora sentada no convés, encolhida contra o mastro principal. Os homens desviavam dela como se fosse uma miragem venenosa, cruzando-se ou cuspindo no chão quando passavam. Até Jarek, o novato que costumava sorrir pra ela, agora carregava um punhal na cintura sempre que se aproximava.

Ela fingiu não notar. Concentrava-se em amarrar nós em um pedaço de corda gasto, os dedos ágeis, mas trêmulos. Meus nós. Os mesmos que eu a ensinara na noite anterior, quando a insônia nos mantivera acordados até o amanhecer.

— Por que não comem? — ela perguntou de repente, apontando para um grupo de marinheiros que empurravam tigelas de ensopado para longe.

— Acham que você envenenou a comida — respondi, encostando-me ao mastro ao lado dela.

Ela franziu a testa.

— Mas eu nem toquei no jantar.

— Não precisa fazer sentido. Só precisa de medo.

Ela mordeu o lábio, observando um homem cuspir no convés após provar o ensopado.

— Então eu vou embora.

Meu coração deu um salto, mas minha voz permaneceu estável.

— Pra onde?

— Não sei. Para qualquer lugar onde não seja uma maldição.

Agarrei seu braço com força suficiente para deixar marcas.

— Você é uma maldição. E agora é minha. — Puxei-a para perto, até que seu hálito quente misturasse-se ao meu. — Se pular desse navio, juro que vou pescar seu cadáver e mantê-lo na minha cama só pra provar que posso.

Ela não recuou. Em vez disso, riu. Um som seco, sem humor.

— Que romântico.

Soltei-a como se queimasse.

— Não tente ser engraçada.

— Não tente ser dono de mim.

Virou as costas e caminhou até a coxia, deixando-me ali, mastigando minha própria raiva.

A noite trouxe mais problemas.

Encontrei Garrick no porão, embebedando-se com aguardente barata. O rosto dele ainda estava inchado do meu soco.

— Precisamos falar sobre a garota — ele resmungou, jogando a garrafa vazia contra a parede.

— Já falamos.

— Não o suficiente. — Ele ergueu-se, cambaleando. — Os homens tão com medo, Tessar. Medo de você. Acham que ela enfeitiçou o capitão.

Apertei os punhos.

— E você? Também acha que sou um fantoche?

Ele hesitou, então soltou uma risada amarga.

— Sei que você tá tão enfeitiçado quanto um cachorro no cio. Mas não é magia. É pior. — Apontou para meu peito. — É isso. Qual é capitão, deixei você uma hora sozinho, e quando volto você está com uma bruxa no camarote?

Não respondi. Não precisava. Ambos sabíamos que ele estava certo.

— Mande ela trabalhar — ele sugeriu, esfregando o rosto. — Cozinha. Limpeza. Qualquer coisa. Se ela se provar útil, talvez os homens parem de cochichar.

Saí sem prometer nada.

No camarote, Liora estava debruçada sobre meu diário de bordo, tentando copiar mapas com uma pena embotada. Ergueu os olhos quando entrei, mas não sorriu.

— Você precisa trabalhar — disse, jogando um avental sujo em cima dos papéis.

Ela olhou para o avental como se fosse uma cobra.

— Por quê?

— Porque piratas não carregam peso morto.

Ela levantou-se tão rápido que a cadeira caiu.

— Eu não sou peso morto!

— Então prove.

Peguei seu pulso e a arrastei até a cozinha, ignorando seus protestos.

A cozinha do Arraia negra era um inferno de panelas queimadas e gordura rançosa. Bjorn, o cozinheiro sueco de um olho só, quase cortou minha mão quando jogou uma faca em nossa direção.

— Não quero ajudante!— rugiu, mostrando os dentes podres.

— Ela não é ajudante. É sua nova aprendiz.

Liora olhou para as paredes negras de fuligem, a pilha de batatas mofadas, e engoliu seco.

— Eu não sei cozinhar.

— Ótimo. — Dei um tapinha nas costas de Bjorn, que cheirava a peixe estragado. — Combina com ele.

Saí antes que ela pudesse argumentar.

Duas horas depois, o cheiro de queimado invadiu o convés.

Corri para a cozinha, onde uma cortina de fumaça cinzenta envolvia Liora e Bjorn. Ela estava em cima da mesa, batendo em chamas com uma tigela de sopa, enquanto ele gritava em sueco.

— O que aconteceu?

Liora jogou a tigela no chão, onde ela se espatifou em cacos ensopados.

— Ele disse que eu deveria "temperar a carne"!

— Com pólvora? — gritei, apontando para o saco aberto no balcão.

— Eu não sabia o que era! Parecia sal!

Bjorn cuspiu no chão, chamando-a de "trollunge" — algo que definitivamente não era um elogio.

Agarrei Liora pelo braço e a puxei para o convés. Ela tossia, o rosto manchado de fuligem, mas os olhos brilhavam de raiva.

— Satisfeito? — ela cuspiu.

— Nem um pouco.

— O que mais quer que eu faça? Lave o convés com minha língua?

Sorri, mostrando todos os dentes.

— Pode começar pelos canhões.

Ela lavou os canhões.

E as amuradas.

E até a privada do capitão.

Observei de longe enquanto ela esfregava o convés de joelhos, as mãos vermelhas de frio. Os homens riam, jogando restos de comida em seu caminho. "Bruxinha lavadeira!", um deles gritou. Ela não chorou. Não reclamou. Apenas continuou esfregando, a tatuagem nas minhas costelas latejando como um coração emprestado.

Garrick se aproximou, carrancudo.

— Isso já chega.

— Ela precisa aprender.

— Você precisa parar de fingir que isso é sobre disciplina.

Ignorei-o. Até ver Jarek se aproximar dela com um balde de água suja.

— Deixa eu te ajudar, bruxa — ele disse, derramando o líquido marrom em sua cabeça.

Liora congelou. A água escorria por seu rosto, ensopando a camisa até transparente. Os homens riam.

Até que ela se levantou.

E sorriu.

— Quer ajuda de verdade? — sussurrou, colocando a mão no rosto de Jarek.

Ele parou de rir.

— O... o que tá fazendo?

Os olhos dela brilharam azuis por um segundo.

— Mostrando minha gratidão.

Jarek gritou, recuando como se tivesse sido queimado. Suas mãos voaram para o pescoço, onde marcas vermelhas — impressões de dedos — apareceram como se alguém o estivesse estrangulando.

— Pare! — gritei, puxando Liora para trás.

Ela sacudiu minha mão, ofegante.

— Ele mereceu!

Os homens cercaram-nos, facas e ganchos em punho. Garrick colocou-se à minha frente, protegendo Liora.

— Acalmem-se! — ele ordenou.

— Ela é uma bruxa! — Jarek chorou, as marcas vermelhas ainda visíveis. — Vai nos matar todos!

Liora tremeu, os olhos voltando ao verde.

— Eu... eu não quis...

Agarrei-a pelo braço e a arrastei para o camarote, sob os olhares furiosos da tripulação.

Na privacidade do meu quarto, ela desmoronou.

— Por que fiz isso? — sussurrou, olhando para as próprias mãos como se não as reconhecesse.

— Porque você é humana — menti, enrolando uma bandagem em seu dedo sangrando.

— Não. — Ela puxou a mão. — Humanos não fazem isso.

Olhei para a tatuagem nas minhas costelas. A data pulsava em vermelho.

— Humanos fazem coisa pior.

Ela encostou a cabeça na parede, fechando os olhos.

— Me deixe ir, Tessar. Antes que eu machuque alguém.

Deitei-a na cama, cobrindo-a com meu casaco.

— Você não vai machucar ninguém.

— Como pode ter tanta certeza?

Sentei na beirada da cama, os nós dos dedos brancos de tanto segurar o medo.

— Porque eu não vou deixar.

Ela riu, um som triste e vazio.

— Você não pode controlar tudo.

— Posso controlar você.

— Não pode. — Ela sentou-se, o rosto a centímetros do meu. — Porque você não é meu dono. É meu refém.

Beijei-a.

Foi rápido. Brutal. Desesperado. Seus lábios eram mais macios que eu imaginara, mas sabiam a sal e lágrimas. Ela não recuou. Não puxou-me para perto. Apenas existiu ali, imóvel, enquanto eu me perdia em seu sabor.

Quando me afastei, ela estava olhando para mim com algo que poderia ser pena.

— Isso é tudo? — sussurrou.

— Não. — Levantei-me, as pernas trêmulas. — Isso foi um erro.

Saí antes que meu corpo traísse minha mente.

Pela manhã ainda via os homens fugindo dela, como se ela fosse uma doença, somente meu imediato falava com ela. Ela sorriu ? O que ele disse a ela que a fez sorrir? Caminhei até ela com pessoas largos, imaginando ainda o que ia dizer.

—sobre o que estão conversando? – minha voz saiu como um juiz, que condenaria qualquer resposta

—sobre você

Eu olhei para Garrick surpreso

—ela pediu ajuda, se machucou ontem, provavelmente caiu quando saiu do camarote, e precisou de alguns pontos, perguntei a ela se você não tinha visto ou ouvido nada, mas eu só me esqueci que você dorme como uma pedra.

Eu parei de ouvir qualquer coisa depois disso, eu só pensava no sorriso dela era tão lindo, os olhos dela tão verdes e esse cabelo negro cacheado , ela era perfeita.

—não é capitão? Capitão!?

—me desculpem, tenho algumas coisas pra resolver– meus passos apressados só reforçam o quanto quero fugir dali, droga eu amo mesmo essa mulher.

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