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Capítulo 1: Primeira Noite no camarote

O cheiro dela me perseguia.

Não importava quantos litros de rum eu afogasse na garganta, quantas vezes eu esfregasse o rosto com água salgada. Lavanda e sangue. Era o que ela exalava, mesmo depois de eu ter jogado aquele vestido podre de sacrifício ao mar. Lavanda das freiras mortas. Sangue do corte que ainda latejava no ventre dela.

Eu a observei da escotilha, escondido nas sombras como um cachorro faminto. Ela estava no meu camarote — meu espaço, minhas paredes marcadas por facas e mapas roubados —, sentada no chão, encolhida contra a cama. Os dedos dela traçavam o contorno de uma mancha de vinho no madeirado, como se ali estivesse escrito algum tipo de salvação.

— Vai ficar a noite toda encarando ou vai entrar? — a voz dela saiu rouca, mas firme.

Entrei, fechando a porta com o pé. O Arraia negra rangia como um velho reclamão, mas ali, naquela sala apertada, o único som era a respiração dela. Curta. Controlada. Assustada.

— Você devia estar dormindo — gritei, mais para me convencer do que para mandar nela.

— E você devia estar me jogando aos tubarões. — Ela ergueu o queixo, os olhos verdes brilhando no escuro. — Por que não o fez?

Aproximei-me até que nossas pernas quase se tocassem. Ela não recuou.

— Tubarões são criaturas práticas. Só atacam o que vale a pena. — Inclinei-me, deixando o cheiro de rum e pólvora envolver ela. — Você não vale nem como isca.

Mentira. Mentira desgraçada.

Ela soltou um riso baixo, amargo.

— Então me deixe ir.

— Não. — A resposta saiu antes que eu pudesse parar. Rápida. Brutal. Verdadeira.

Ela ficou quieta por um momento, os dedos apertando a barra da minha cama. Depois, sussurrou:

— O que você quer de mim, Tessar Vrynn?

—Tudo.

A palavra queimou minha língua, mas eu a engoli. Em vez disso, puxei a gaveta do meu escrivaninho e joguei um embrulho de pano no colo dela.

— Coma.

Ela desdobrou o pano com mãos trêmulas. Dentro, um pedaço de pão duro e uma fatia de queijo — metade do meu jantar.

— Não tô com fome.

— Coma— gritei, batendo o punho na parede. O barulho fez ela encolher, e eu senti um gosto amargo na boca. Bom trabalho, capitão. Assusta mais a presa.

Ela mordeu o pão, devagar, como um gato desconfiado. Eu me virei, olhando para o mapa náutico pregado na parede, mas via cada movimento dela pelo canto do olho. A maneira como ela lambia os lábios após o primeiro gole de água. Como segurava o queijo como se fosse ouro.

— Por que está me fazendo isso? — ela perguntou, a voz mais suave agora.

— Porque posso.

— Isso não é resposta.

Virei de golpe, agarrando seus pulsos. O pão caiu no chão, e ela gemeu — de dor ou medo, não sabia dizer.

— Você quer respostas? — rosnei, aproximando meu rosto do dela. — Aqui vai uma: o mundo lá fora vai te devorar. Vão te usar, te machucar, te vender. Aqui, pelo menos, você tem a mim.

Ela pestanejou, mas não desviou o olhar.

— E você não vai me usar?

—Já estou.

Soltei-a como se ela estivesse em chamas. Ela caiu para trás, ofegante, os olhos arregalados. Eu saí do camarote antes que minha própria sanidade me abandonasse.

No convés, Garrick, meu imediato, me esperava com um olhar que eu conhecia bem. Aquele olhar de "Capitão, você tá fazendo merda".

— A tripulação tá comentando — ele disse, acendendo um cachimbo de ópio. — Dizem que a garota é bruxa. Que trouxe a tempestade.

Olhei para o horizonte. O céu estava limpo, estrelado.

— E você? Acredita nessa bobagem?

Ele cuspiu no chão.

— Acredito que você tá arriscando o pescoço por uma mina que nem sabe amarrar um nó.

Sorri, sem humor.

— Eu arrisco meu pescoço todo dia, Garrick. Pelo menos dessa vez, o prêmio é bonito.

Ele bufou, mas não discutiu. Ninguém no Arraia discutia comigo. Não depois do que eu fiz por eles.

— E se ela tentar fugir?

— Não vai.

— Como pode ter tanta certeza?

Encostei na amurada, sentindo o sal grudar na minha pele.

— Porque ela não tem pra onde ir.

Na madrugada, voltei ao camarote. Ela estava dormindo no chão, enrolada no meu casaco. Meu casaco. A visão fez algo dentro do meu peito se contorcer.

Me ajoelhei ao lado dela, observando a respiração irregular. O vestido emprestado subira até as coxas, revelando cicatrizes antigas — marcas de chicote? Queimaduras? — que nenhuma garota deveria ter.

Estiquei a mão para tocar uma delas, mas parei a um centímetro. Não. Não hoje.

Foi quando ela murmurou:

— Não… não me deixe…

Pensei que estivesse acordada, mas seus olhos permaneciam fechados. Pesadelos talvez.

— Shhh — sussurrei, sem saber por que caralhos estava fazendo aquilo. — Tô aqui.

Ela se virou, e sua mão quente agarrou meu pulso.

— Fica… — ela respirou fundo, ainda dormindo. — Por favor…

Fiquei. Até o sol raiar. Até ela soltar minha mão.

E naquela manhã, jurou que o mar ficou mais calmo.

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