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Capítulo 3: lembranças

LIORA NIX

Não fazia ideia do porquê Tessar estava tão bravo comigo, mas também… o que eu podia fazer? Eu só tinha que continuar limpando, fazendo o que mandassem. Era isso que um escravo fazia, afinal.

Só percebi que estava chorando quando senti algo quente escorrendo pelo meu rosto. Limpei rápido, desesperada, antes que alguém visse. Se me pegassem chorando, eu podia acabar sem comida. Ou pior… com o chicote cortando minhas costas de novo. O pensamento da dor me trouxe memórias ruins, e meu estômago roncou.

Fazia dois dias que eu não comia nada além do pedaço de pão e queijo que Tessar me deu. Depois disso, não tive coragem de tocar na comida. Todos acreditavam que, se eu comesse, a comida ficaria amaldiçoada. Que ninguém mais conseguiria comer. Que adoeceriam, morreriam de fome, e o navio se tornaria um navio fantasma… tudo por minha causa.

Meus olhos começaram a arder, e o mar… o mar começou a se agitar. Eu pisquei, e no reflexo da água percebi que meus olhos, antes verdes, agora estavam azuis.

E então, veio o caos.

Um cardume de peixes-espada começou a se atirar contra o barco, um após o outro, como se algo os tivesse enlouquecido. O som das batidas ecoava pelo convés, e eu continuei esfregando o chão freneticamente, tentando ignorar tudo, tentando desaparecer. Mas os marujos não ignoraram. Eles olhavam, maravilhados e assustados ao mesmo tempo.

Meu rosto estava molhado. Eu estava chorando.

As lágrimas continuavam caindo, até que senti uma mão forte segurar a minha. Meu corpo travou. Olhei para cima e encontrei Tessar. Ele me encarava de um jeito que fez meu peito apertar. Meu primeiro pensamento foi puro pânico: "Eu estou chorando."

— Me desculpe, senhor. — Minha voz saiu apressada, e eu tentei soltar minha mão, pegar o pano e continuar limpando. — Eu já vou voltar ao trabalho, não se preocupe. Não estava chorando, eu juro.

Esfreguei as lágrimas no rosto, espalhando mais sal do que limpando. Mas ele não me soltou. Pelo contrário. Segurou minha mão com mais força e me puxou para si, me envolvendo em um abraço forte.

No começo, resisti. Tentei pegar o pano de novo, tentei voltar a esfregar o chão, mas ele não me soltou. Meu corpo cedeu antes da minha mente. Parada ali, no calor do abraço dele, eu senti algo que não sentia há muito tempo.

Descanso.

Fechei os olhos. Por um momento, o mundo não existia. Nem o barco, nem o mar, nem os peixes enlouquecidos. Nem mesmo as lembranças ruins.

Mas o passado sempre encontra um jeito de nos alcançar.

Naquele instante, voltei para o dia em que desisti de tudo. O dia em que meu corpo estava frio, meus pés sangravam e as pedras se cravavam nas feridas abertas. O dia em que os locais me condenaram.

Eles disseram que eu era uma bruxa. Que Deus os perdoaria se me tirassem da aldeia. As freiras… elas tentaram me proteger. Foram boas para mim. E pagaram com a própria vida.

Então eu corri. Corri até onde o mundo acabava, até onde só existia o céu e o mar. E pulei.

A morte parecia uma amiga. O fundo do oceano era um abraço. Mas, quando achei que finalmente seria livre, ele apareceu.

Um homem forte, sem camisa, me puxou de volta, me arrastando para a margem.

— Por que fez isso?! — gritei, assim que meus pulmões conseguiram ar.

Ele franziu o cenho. — Eu salvei você.

— Eu não pedi pra ser salva! Você não me salvou de nada!

Levantei, furiosa, e corri de volta para o mar. Mas ele me segurou.

— Espera! O que está fazendo?!

— Você é cego e surdo? Me deixa em paz! Eu não quero mais viver!

Tentei me soltar, mas ele apertou meu braço com força. O suficiente para doer, mas não o bastante para machucar de verdade. Seu olhar prendeu o meu. Ele viu. Viu o desespero. A dor.

E então ele disse:

— Se não quer mais a sua vida… então eu a reivindico. Você pertence a mim agora.

Eu pisquei. O quê?

— Você bebeu muito rum ou bateu a cabeça?

— Eu já disse. — Antes que eu pudesse reagir, ele me jogou nos ombros.

Eu esperneei, chutei, bati nele, mas ele não cedeu. Apenas continuou andando, carregando-me como se eu não passasse de um saco de batatas, enquanto as pessoas na cidade nos olhavam boquiabertas.

— Você pertence a Tessar Vrynn, o rei dos sete mares.

Eu queria rir. Mas não consegui.

Quando vi as novas freiras vindo em minha direção, meu corpo encolheu de medo.

— O que está fazendo?! Por que está toda molhada, garota?

Antes que eu pudesse responder, Tessar interveio.

— Não fale assim com ela.

As freiras se entreolharam, confusas.

— Tessar Vrynn. — Ele disse seu próprio nome devagar, como se ele fosse um aviso.

Os olhos delas se arregalaram.

— Ca… Capitão Tessar! É bom vê-lo aqui.

Ele me apontou.

— Ela é minha e ...

A freira piscou, parecendo perdida. — Sua...?

— Não me interrompa. — A voz dele saiu baixa, mas afiada como uma lâmina. — Liora Nix é minha protegida. Se uma lágrima cair dos olhos dela, eu matarei os responsáveis. Se ela se machucar, eu esfolarei o culpado vivo e o pendurarei no mastro do meu navio. Estamos entendidos?

O silêncio foi pesado.

— Sim, senhor. — Elas responderam em uníssono, a voz tremendo.

Tessar se virou para sair.

— Estou indo. Mas volto para buscar o que é meu.

E ele voltou.

Dez anos depois.

Eu já tinha desistido, me esquecido dele, já tinha aceitado meu destino. Mas ele veio. Ele me salvou daquele ritual.

Só que… agora ele sabia.

Dez anos atrás, ele não sabia o que eu era. Ele não sabia que havia salvo uma bruxa.

E eu sabia. Cedo ou tarde, ele se arrependeria.

Apertei meu rosto contra o peito dele, tentando ignorar o aperto no meu coração.

Mas, por enquanto… só por agora… eu queria ficar ali. Ele cumpriu o que prometeu, ele estava ali.

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