Assim que Eliza entrou na galeria, ela encontrou um típico homem italiano: alto, moreno, bonito em fisionomia e aparentemente na casa dos trinta anos. Ele estava elegantemente sentado em uma das cadeiras de espera da recepção. Contudo, ao julgar pelo seu porte sério e a inquietação de sua perna, ele provavelmente estava ansioso para falar com Giulietta Pallot. Era inegável: ele parecia tão opulente quanto o veículo que ostentava.
Como se um ímã o atraísse para ela, o estranho pousou os olhos em Eliza e ela sentiu-se capturada pela floresta mais selvagem, mais enigmática e mais escura do verde cintilante de seu olhar. Naquele momento ela percebeu que poderia fazer vários retratos mentais sobre ele e colocá-los em uma pintura. No entanto, pela maneira descarada como os olhos dele a varreram de cima a baixo – percorrendo cada centímetro de seu corpo como um cão feroz –, ela deduziu que esse homem não valia o tempo de sua admiração. Estava visível: ele fazia o estilo "Conquistador de muitas", assim como qualquer homem rico.
Frente ao olhar irritantemente constrangedor dele, Eliza sentiu suas faces pegando fogo e deixando momentaneamente sua timidez de lado, ela o saldou, conforme as regras da boa educação e dirigiu-se apressada para o salão de exposições, e, a medida que caminhava o olhar faminto dele a acompanhava.
Depois do desconforto inicial, Eliza respirou fundo e retomou suas atividades há todo vapor, porém não demorou muito para uma nova onde de inquietação a atingir ao sentir-se novamente observada. No primeiro momento ela o ignorou e fingiu não perceber a presença dele, contudo ela não poderia deixá-lo no escuro durante o restante do dia; o que restou-lhe de alternativa senão virar-se e atendê-lo.
— Em que posso ajudá-lo, Sr...
— Vallone, Giulio Vallone. — Ele se apresentou com um sorriso enigmático enquanto lhe estendia a mão para cumprimentar.
O aperto de mão foi caloroso, embora um pouco demorado para o gosto dela e diante daquela delonga ela aproveitou a proximidade entre eles para analisá-lo detidamente.
Giulio Vallone era realmente um homem impressionante e uma figura marcante. Ele era bastante alto, tinha cabelos escuros como uma noite de inverno, olhos verdes e altivos, pele bronzeada e um físico de dá inveja a qualquer atleta. Provavelmente em sua adolescência ele participou de alguma liga estudantil de voleibol.
— Então, signorina? Gostou do que viu ou prefere que eu me sente naquela poltrona enquanto você faz meu retrato?
Giulio tirou-lhe de suas especulações com o tom ligeiramente esnobe, em meio a um sorriso tão cínico que não deixava dúvidas quanto a indiscrição de sua análise. Infelizmente ele parecia ser como a maioria dos homens bonitos: arrogante e egocêntrico.
Diante de sua acentuada indiscrição, ela piscou completamente desconcertada por ter sido flagrada por Giulio, e a única alternativa que encontrou para sair daquele embaraço foi fingir não entender a pergunta. Nessas horas a melhor fuga era a falsa ignorância e por sorte antes que ela tivesse tempo de esboçar qualquer resposta vazia, eles foram interrompidos por Giulietta.
— Meu querido, sinto muito fazê-lo esperar: estava em uma reunião de negócios. — Giulietta desculpou-se, abraçando-o carinhosamente.
Frente àquela interrupção oportuna, Eliza se distanciou consideravelmente deles. Giulio era um homem envolvente e aparentemente sinônimo de confusão e quanto mais distante se mantivesse de problemas, melhor.
— Você está linda, minha querida. — Ele a elogiou segurando-lhe o braço, demonstrando assim certa intimidade.
— Oh, pare de ser galanteador! — Ela observou sorridente e acrescentou logo depois. — Quase não acreditei quando minha secretária falou-me que estavas aqui. Quando chegou de viagem?
— Ontem à noite. — Respondeu amável e olhando a seguir para Eliza, observou. — Confesso que estou surpreso por ter contratado uma estrangeira.
— Ela foi uma exceção, meu querido. Eliza foi muito bem recomendada pelo professor Salvattori. — Giulietta respondeu entrelaçando seu braço ao dele, puxou-o a seguir para seu escritório.
Mesmo Eliza mantendo uma distância considerável deles, ela não pode deixar de ouvir o comentário preconceituoso dele em relação a sua admissão e isso mexeu com seu brio, pois era inadmissível que em pleno século XXI ainda existissem pessoas com convicções fortíssimas a respeito do desmerecimento de um estrangeiro em seu país e ela era a prova viva dessa descriminação, pois ao acordar e levantar todos os dias ela sentia na pele o peso de ser estrangeira, de jeito que ela tinha que lidar constantemente com a indiferença e a desconfiança das pessoas pelo simples fato de sua nacionalidade. O estágio na galeria só foi possível graças aos esforços do professor Salvattori que era amigo pessoal de Giulietta e se não fosse por ele, certamente ela não estaria ali.
Durante o tempo que estava em Florença, Eliza viu muitas portas se fecharem para si e vários olhares tortos de descrença lhe foram dirigidos assim que sua pronúncia do dialeto falhava. Às vezes ela se esquecia e dirigia-se a alguém em português ou misturava os dois idiomas. Mesmo com toda a dificuldade e, graças a convivência, seu italiano estava melhorando.
Absorta em meio a tantos pensamentos conturbados, o tempo pareceu voar sem que ela percebesse e quando ela deu-se conta do avançado das horas a tarde já tinha dado lugar a noite.
— Está na hora de fechar a galeria, signorina Villar. — A secretaria disse-lhe aparentemente incomodada com aquela demora.
— Oh, desculpe-me! Não vi a hora passar. — Justificou-se constrangida.
Depois de se situar quanto as horas, ela deixou a galeria e se dirigiu ao ponto de ônibus mais próximo, pois ela ainda teria uma longa caminhada pela frente até chegar ao seu destino final. Se ser de outra nacionalidade já era difícil, imagine ainda ser estrangeira e pobre.
Como sua situação financeira não lhe permitia grandes regalias, Eliza tinha que se contentar com um pequeno apartamento de três quartos, que ela dividia com duas jovens que ela conheceu na universidade: uma chilena e outra mexicana. Mesmo sendo o oposto delas, o seu relacionamento com suas colegas de quarto até o momento era agradável. Elas não tinham muitos atritos e basicamente Eliza passava a maior parte do tempo sozinha, pois ao contrário dela, suas amigas gostavam muito da vida noturna, e embora Mirella fosse enfermeira de Platão noturno, ela quase nunca recusava uma balada em seu dia de folga. Contudo, como Eliza sempre foi uma jovem retraída e muito caseira, ela preferia o silêncio de seu quarto do que a agitação dos bares e boates de Florença.
Enquanto caminhava para o ponto de ônibus, seus pensamentos iam de encontro a figura imponente de Giulio. Era como se ele tivesse vontade própria e inconscientemente sua mente o projetava a sua frente numa proporção assustadora; parecia que cada transeunte era Giulio e isso começou a assustá-la.
Fechada em seu mundo, ela caminhou a passos largos receosa de perder sua condução, contudo ao dobrar a esquina uma Mercedes prateada chamou-lhe sua atenção. Nesse momento o sinal fechou e o carro parou próximo a ela; fazendo-a reconhecer o motorista imediatamente: era Giulio Vallone acompanhado de uma estonteante loira, e mesmo sendo difícil ignorar a presença dele, ela continuou seu caminho fingindo não vê-lo.
Ver ao longe sua condução se aproximar deu-lhe certo alívio, pois inegavelmente a imagem daquele homem arrogante ao lado de outra lhe causou certo desconforto. Porquê? Ela não sabia. Tudo que ela sabia e queria naquele momento era chegar em casa e se enfiar debaixo do chuveiro para lavar seus pensamentos controversos e sua alma, já que ela não estava exausta apenas fisicamente como também mentalmente.
Deixando mais uma vez seus pensamentos de lado, ela entrou na condução e quando chegou em casa já passava das dezenove horas. Assim que Lúcia a viu entrar, perguntou por mera formalidade.
— Como foi seu primeiro dia de trabalho?
— Foi maravilhoso! A galeria é um sonho. Estou amando meu trabalho. — Eliza respondeu numa euforia contagiante.
— Fico muito feliz por você. Sei o quanto você batalhou por essa oportunidade. — Lúcia observou enquanto caminhava em direção a porta.
— Vai sair, Lúcia? — Eliza perguntou diante do óbvio.
— Claro. Ao contrário de você, não tenho vocação para a solidão ou celibato.
— Divirta-se! — Ela desejou sincera diante do azedume de Lúcia.
Como resposta, Lúcia a brindou com seu silêncio e saiu em seguida deixando-a pensativa.
De fato ela era uma jovem solitária, porém cair na noite não amenizaria em nada sua solidão; pelo contrário, ela continuaria a sentir-se só, pois, embora fosse jovem, ela conhecia muitas histórias de pessoas quê, mesmo cercada de amigos continuavam sentindo-se solitárias. Talvez esse fosse seu destino, e se fosse, o que havia de errado com isso? Algumas vezes a solidão era uma opção e não uma condição.
Com esse pensamento enraizado na memória ela entrou no banheiro e tomou um banho rápido. Refrescada e totalmente a vontade, ela saiu do quarto e foi em direção a cozinha para preparar uma refeição leve. Nada muito elaborado.
Após o jantar ela organizou a cozinha e não demorou muito para sentir-se sonolenta, e como ela teria trabalho no dia seguinte, não demorou muito para ela sucumbiu ao apelo do sono e tão logo colocou a cabeça no travesseiro, caiu no mais longo e profundo sono.
Eliza acordou na manhã seguinte com o barulho insistente do despertador gritando em seu ouvido como se dissesse: ‘Levante-se, preguiçosa!’ Hora de acordar! A fim de se livrar do som insuportável do aparelho, ela tateou a mesa de cabeceira, mas como a sorte era fugaz como uma raposa, em um único descuido o despertador se vingou fazendo-a derrubar o celular e os livros no chão. Depois de ver sua bagunça espalhada pelo chão, ela choramingou em silêncio, e se recriminou mentalmente por sua falta de atenção: como você é desastrada, Eliza. E o dia estava apenas começando! Como nem tudo era perfeito, e seguindo a lógica do velho ditado que dizia que a pressa era inimiga da perfeição, ela descobriu que se enquadrava perfeitamente na análise de Newton em que toda ação gera uma reação: Eliza recebeu o dela. Conformada de que não começaria o dia com o pé direito, ela se contentou com o esquerdo e depois de está totalmente desperta, recolheu rapidamente seu celular do chão – ou o que restou de
Mesmo diante da onipotência no olhar de Giulio, por um breve momento Eliza pensou ter vislumbrado um fascínio malicioso. No entanto, ela se recusou a aceitar a ideia de que ele estivesse zombando de sua inferioridade, afinal, por que Giulio Vallone perderia tempo humilhando uma garota como ela? — Se você me der licença Signore, preciso voltar ao meu trabalho. — Pediu ainda extremamente envergonhada. — Quem a está impedindo Signorina Villar? Diante daquelas palavras ela teve mais uma vez a sensação de que ele estava provocando-a, já que o olhar astuto dele naquele momento era igual a de uma raposa traiçoeira tentando confundi-la e, mediante àquela certeza, ela achou mais conveniente afastar-se dele e daquela situação embaraçosa, e retomar suas funções — ou pelo menos tentar. Seja por descuido ou por ainda está abalada com as palavras dele; fato era que ela se esbarrou acidentalmente em uma das telas e só quando o tilintar da obra caindo sobre o piso de porcelanato chegou a seus ouvi
Depois de se agarrar à esperança e arrancar o nó que estava preso em sua garganta, Eliza lavou o rosto e decidiu retocar a maquiagem borrada, pois ela ainda tinha uma reputação a zelar — isso se ela conseguisse controlar o tremor de suas mãos gélidas. Ainda sob o efeito das palavras de Giulietta, ela suspirou profundamente e começou a refazer a maquiagem, com a nítida sensação de que sairia da galeria desempregada, e, se, fosse para ser demitida, que fosse pelo menos com um mínimo de dignidade. Frente a essa forte convicção, Eliza terminou de se arrumar, e ao olhar-se atentamente no espelho sentiu-se mais forte e mais bonita do que nunca. A névoa avelã de seu olhar pálido se foi, deixando apenas uma bela jovem a desabrochar, de maneira que quem a visse pela rua não diria que ela se debulhou em lágrimas em frente ao espelho, e muito menos notaria a turbulência interna que ela estava enfrentando naquele fatídico dia. No entanto, apesar da aparente calmaria que Eliza demonstrou sentir
Depois que Mirella a deixou, Eliza começou a refletir sobre o que aconteceu e ela descobriu que, infelizmente, Giulio Vallone não era apenas o grande responsável por sua futura demissão, mas também por derrubar as paredes sólidas que ela havia construído em torno de si mesma durante anos – algo que ela lutou muito para conseguir preservar. Desde o fatídico dia em que o encontrou na galeria, algo dentro dela a avisou aos gritos para se afastar dele. Sua intuição lhe dizia que Giulio era perigoso, astuto e cruel e que ela era apenas a parte vulnerável da história e, como toda parte fraca ela iria perder, e isso estava começando a se concretizar. Envolta em tantos pensamentos perturbadores, Eliza se esqueceu completamente do café que estava no fogo, de maneira que quando ela acordou de seu transe, era tarde demais: o líquido já havia transbordado e sujado todo o fogão. — Não acredito que fiz isso. Como posso fingir que estou calma destruindo a cozinha dessa maneira? Concentre-se, Eliza
Depois de ser ignorada por horas, Eliza entrou no escritório de Giulietta com as emoções à flor da pele. Por mais que ela tentasse permanecer firme, a verdade era que ela não estava preparada para aquele momento. Mesmo assim, depois de uma longa jornada para chegar à Itália, à galeria, ao sonho de sua infância, sua vida parecia andar em uma corda bamba. — Sente-se! — Giulietta pediu indicando-lhe a cadeira à sua frente. Extremamente ansiosa e obediente, Eliza sentou-se esperando as intervenções de sua chefe. Naquele instante ela soube que a sorte estava sendo lançada, e agora era tudo ou nada, e honestamente, ela esperava que fosse tudo. Como Giulietta não era mulher de fazer rodeios ela foi direta em sua fala. — Vejo que você não trabalhou hoje, signorina Villar. Pode me dizer o motivo? — Eu pensei que... — Você pensa demais, Eliza. Mas é compreensível dada a sua idade. Embora você não seja paga para pensar. — Giulietta a interrompeu com tanta força que suas mãos começaram a tre
Depois de sua conversa desastrosa com Giulietta, Eliza regressou as suas atividades com os ânimos abalados, pois a dura realidade sob seus olhos nublava qualquer tipo de faísca esperançosa que ela pudesse ter. O certo era que a partir daquele momento nada mais seria como antes — não para ela e nem para Giulietta. Como tudo ao redor dela parecia fora de contexto, o dia se arrastou em uma lentidão surpreendente, frente ao ar melancólico da galeria, a pressa exacerbada dos funcionários e os olhares distantes. Parecia haver algo acontecendo ali e seus instintos lhe apontavam que, provavelmente, Giulietta estava descontando seu mau humor nos empregados ao redor – se não fosse um dia tão miserável, Eliza teria sorrido para animar-se. O dia, contudo, só tendia a piorar, já que, como pensou que seria dispensada do emprego, ela não levou dinheiro para o almoço. Resultado: estava faminta! Decidida a ignorar os apelos sôfregos de seu estômago, Eliza tentou se concentrar no trabalho; uma tarefa
Livrar-se de Giulio não seria uma tarefa tão fácil como a princípio Eliza pensou e, ela descobriu isso no final do expediente, pois ao contrário de suas convicções, Giulio não pretendia deixá-la em paz. Ela não era apenas uma garota interessante; tinha algo de especial nela que o atraia como louco e isso o estava deixando impaciente e determinado a descobrir o que era. — Boa noite, Eliza. A voz rouca e sensual de Giulio penetrou em seus ouvidos, deixando-a momentaneamente apreensiva; o que a fez responder o cumprimentou polidamente e continuar seu caminho. — Precisamos conversar, Eliza. — Não temos nada a conversar, signore Vallone. — Ela rebateu ríspida e acelerou os passos enquanto fragmentos da conversa dela com Giulietta jorravam como torrentes em sua mente, por fim, quando deu por si, já estava praticamente correndo. — Eliza pare e me ouça. — Ele tentou chamá-la, mas ao contrário das outras vezes, foi ignorado. Diante da recusa de Eliza em parar para conversar, Giulio
Eliza saiu do restaurante ao lado de Giulio, pensativa. Procurando pela memória algo que tenha falado para que ele mudasse tão repentinamente de comportamento. Era esquisito, pois de um momento para o outro, ele mudou radicalmente sua postura e o modo como a via: não que isso fosse um problema real, mas havia algo lá que ele não disse e isso a estava intrigando, pois o homem até então, quase atencioso e preocupado, transformou-se em um grosseirão num piscar de olhos. Se não bastasse a hostilidade que ele demonstrou para com ela, o sem caráter ainda teve a ousadia de chamá-la de mal-educada. Para aumentar ainda mais a indignação de Eliza, ela o viu pegar algumas notas da carteira e sem o menor constrangimento, ele as estendeu a ela. — O que pensa que está fazendo? Não estou pedindo-lhe dinheiro. Não estou pedindo-lhe nada. — Ela acrescentou exasperada, após questioná-lo. O que o fazia agir de forma tão arrogante quando se tratava dela? Giulio sempre a tinha como uma mulher inferior.