Eu passei os últimos quatro anos longe da minha antiga vida, vivendo nas sombras de um passado que parecia distante, mas cujas cicatrizes ainda doíam. Depois de ser expulsa da alcatéia e forçada a viver longe dos que um dia foram minha família, encontrei abrigo em uma cidade distante. A cidade de Meridia, longe de tudo o que eu conhecia.
Aqui, servi uma boa família. Embora eu fosse apenas uma serva, a casa me tratava com gentileza, e isso, de certa forma, me permitia encontrar alguma paz. Hoje, estava com minha senhora no mercado da cidade, escolhendo legumes frescos para o grande jantar que ela prepararia naquela noite. O cheiro da comida misturado ao grito dos vendedores me dava uma sensação de normalidade, algo raro nos últimos anos. "Lyara, você prefere as cenouras maiores ou as mais finas?" minha senhora, a Senhora Alma, perguntou, enquanto ajustava sua capa de lã. Ela era uma mulher gentil, com cabelos dourados e olhos azuis que sempre pareciam atentos a tudo ao seu redor. “Eu... acho que as maiores, minha senhora,” respondi, distraída, olhando para as barracas ao redor. Minha mente estava em outro lugar. As ruas estavam mais cheias do que o normal, e havia algo no ar que me fazia sentir desconfortável. “Você ouviu os rumores?” Alma perguntou, inclinando-se para pegar as cenouras. “O rei... dizem que ele está em busca de sua Luna.” “A Luna...?” Fiquei confusa, mas sabia do que ela falava. O Rei Kael, o rei do reino vizinho, era uma figura mítica. Diziam que ele possuía um poder imenso, mas também uma solidão profunda. Ele havia perdido sua esposa há anos e nunca mais se casara. Rumores de que ele procurava uma nova Luna para assumir seu lado começaram a circular nas últimas semanas. “Sim, o oráculo revelou que sua Luna está entre nós,” Alma disse com um tom de mistério, os olhos brilhando com a fofoca. “E o rei já anunciou que, assim que vê-la, saberá que é ela.” Eu me encolhi, sentindo uma pressão inexplicável no peito. A ideia de um rei à procura de sua Luna era algo fascinante, mas ao mesmo tempo me parecia distante da minha realidade. Eu, uma simples serva, não tinha nada a ver com isso. “Eu não acredito nesses boatos, minha senhora,” disse, tentando manter a conversa leve. Mas algo me incomodava. O que seria uma Luna? E por que minha pele começava a arrepiar ao pensar no rei, mesmo sem nunca tê-lo visto? De repente, algo no ar mudou. O ambiente na feira ficou tenso. Vendedores começaram a olhar nervosamente para as ruas, e uma inquietação tomou conta da praça. E foi então que ele apareceu. No meio da multidão, o rei surgiu, como uma sombra imponente. Ele não estava acompanhado de soldados, nem de comitiva. Ele estava sozinho, mas sua presença era suficiente para que todos os olhos se voltassem para ele. Eu congelei. O Rei Kael. Ele tinha por volta de cinquenta anos, mas sua aparência parecia desafiar o tempo. Sua pele, de um tom bronzeado profundo, parecia brilhar à luz do sol. Seus cabelos negros eram curtos, mas bem cuidados, e seu olhar era penetrante, dourado como a chama de um fogo incontrolável. Ele tinha uma aura de autoridade, de poder, mas havia algo de incomum em sua postura. Era como se ele fosse uma criatura mítica, um ser que transcende o comum. Ele caminhou lentamente, seu olhar fixo à frente, mas algo na maneira como ele olhava... algo que parecia penetrar nas pessoas, fazer com que cada um se sentisse observado, como se ele visse a alma. Meu coração disparou. O ar ficou mais denso, como se o tempo se alongasse a cada passo que ele dava. Seus olhos, dourados e intensos, de repente se fixaram em mim. Eu fiquei paralisada. Ele me olhava com tanta intensidade que parecia como se o mundo inteiro tivesse desaparecido, e tudo o que restava era ele e eu. "Você," ele disse, sua voz profunda, carregada de uma calma perigosa, como se ele tivesse total controle de tudo ao seu redor. “Você é diferente....seus olhos... Não é comum uma loba com heterocromia, ainda mais se um de seus olhos é cinza e o outro violeta." Eu engoli em seco, sentindo um arrepio percorrer minha espinha. Eu queria desviar o olhar, queria esconder-me, mas não conseguia. Algo nele... algo nos seus olhos... me atraía, como se fosse uma força magnética. "A qual família pertence jovem? Não lembro de vê-la em nenhum baile ou evento real.", Seus olhos me analisaram com cautela, como se estivesse tentando decifrar meus pensamentos. "Diga seu nome" "Desculpe, senhor," minha voz saiu embargada, tentando recuperar minha compostura. “Eu sou só uma serva de uma boa família... Eu não vou a bailes ou eventos, sou apenas uma humilde serviçal. Não sei o que...” “Qual família você serve?” ele interrompeu, sua voz suave, mas cheia de autoridade. “Você não parece uma serviçal, sua aura... Você tem a aura de uma nobre.” Fiquei sem palavras. O que ele via em mim? Como ele conseguia ver a aura e saber que eu estava mentindo? Eu era apenas uma mulher comum, uma serva de uma família simples. Nada especial. Então, por que ele parecia tão... intrigado? Como se tivesse encontrado algo que nem eu sabia que possuía? "Lyara serve a minha família, senhor.", Alma fez uma referência, segurando a barra de seu vestido. Ela me lança um olhar cúmplice, como se estivesse dizendo que cuidaria da situação. "Ela nos serve desde muito jovem, nossa família a tem como uma filha." "Você é a esposa do general Kinsley.", O rei diz olhando para Alma com seriedade. "Quanto quer pela sua serviçal?" Espera. Ele estava tentando me comprar? Encarei minha senhora com pavor, Alma piscou desnorteada com a pergunta do Rei. "Eu não estou a venda!", Protestei furiosa atraindo a atenção das pessoas. Eu poderia me encrencar pela minha atitude, mas não iria permitir que ele me comprasse como um animal qualquer. "Majestade, peço desculpas pela ousadia mas não sou uma mercadoria para o senhor comprar. Sou uma serviçal, sou uma mulher livre!" O clima de tensão se instalou na ausência de respostas do Rei que me fitava com intensidade. "Senhora Kinsley, já que sua serviçal não está a venda. Gostaria de pedir a permissão para levá-la ao meu castelo.", Disse com uma calma assustadora. Antes que eu pudesse responder, algo aconteceu. Um grito cortou o ar, seguido de uma correria. Uma confusão instantânea surgiu na feira. Pessoas começaram a gritar e correr, tentando se afastar de algo que acontecia ali perto. O rei virou-se abruptamente, seus olhos piscando com frieza. "O que está acontecendo?" Sua voz era de comando, mas ele não se moveu. Ele não parecia temer a confusão ao redor, apenas observava, com um olhar afiado, como uma fera pronta para atacar. Um homem corria em direção a ele, mas não era um homem qualquer. Ele estava vestido de forma suspeita, carregando algo escondido sob seu manto. Um ladrão. Ele tentou se aproximar do rei, mas foi interceptado por dois guardas. A confusão aumentou, e o caos tomou conta da feira. Eu, por instinto, afastei-me da multidão, tentando desaparecer na confusão. Eu sabia que não podia ficar ali, não enquanto ele estava tão perto. O rei parecia tão absorvido pela distração que, por um breve momento, ele perdeu o foco em mim. Foi o suficiente. Meus passos foram rápidos. Eu me esgueirei pela rua, com o coração batendo forte em meu peito, até que a agitação me cobriu, e eu desapareci entre as sombras da feira. Eu não sabia o que ele tinha visto em mim, mas eu sabia que não podia deixar que ele soubesse mais. Não agora. O que quer que tivesse começado, não era para mim. Não naquele momento.A faca deslizava sobre a cenoura, cortando fatias finas e uniformes. O cheiro das ervas frescas se misturava ao aroma da carne cozinhando lentamente, preenchendo a cozinha com um calor confortável. O vapor subia da panela, nublando minha visão por um instante, e eu fechei os olhos, respirando fundo.Por um breve momento, esqueci tudo. O encontro com o Rei. O medo que me corroía por dentro. A vontade de sumir. Aqui, entre as panelas e os temperos, eu ainda era apenas uma serviçal. Apenas Lyara."Você tem mãos habilidosas."A voz suave de Alma me fez sobressaltar.Me virei depressa, a faca ainda na mão, e encontrei sua figura delicada parada à porta. Sua expressão era serena, mas os olhos carregavam algo mais profundo. Preocupação? Curiosidade?Engoli em seco e abaixei a faca."Senhora… Não ouvi a senhora entrar.""Você estava concentrada." Alma se aproximou, sua postura elegante e gentil como sempre. "E pensando. Consigo ver isso no seu rosto."Ela parou ao meu lado, observando meu tra
O tecido do vestido me incomodava. Não era ruim, na verdade, era até bonito—um tom discreto de azul escuro, simples, mas elegante. Mas não era meu. Não fazia parte de mim.Puxei a manga levemente, ajeitando-a enquanto me encarava no espelho do pequeno quarto. Meu reflexo parecia o de outra pessoa. Eu não estava acostumada a ver minha pele tão limpa, meu cabelo tão bem preso, sem as marcas do dia de trabalho.Suspirei.A ideia de me sentar à mesa como uma convidada me dava nos nervos. Eu deveria estar na cozinha, supervisionando o jantar, limpando pratos, servindo vinho. Era ali que eu pertencia. Mas Alma havia insistido tanto, e sua bondade comigo sempre fora tão genuína que dizer não parecia errado.O jantar seria tranquilo, eu me convenci. Os convidados eram do General Kinsley, amigos dele. Eu só precisava sorrir, comer algo e depois me retirar discretamente.Respirei fundo antes de sair do quarto. O corredor estava silencioso, apenas o eco distante das conversas no salão indicava q
O ar estava pesado, sufocante. Desde que o jantar terminara e Kael proferira aquelas palavras como uma sentença, minha mente trabalhava freneticamente. Eu não podia aceitar. Não podia simplesmente ser levada como um objeto, arrancada da única casa que conheci nos últimos anos.Meus dedos tremiam enquanto eu terminava de amarrar as botas gastas. Meus pensamentos giravam, a respiração curta, rápida. O coração martelava no peito."Eu preciso sair daqui."Alma dormia no quarto ao lado, e eu sabia que o General Kinsley ainda estava acordado, conversando com os outros convidados. O tempo era curto, mas eu tinha uma chance. Com os pés descalços para não fazer barulho, deslizei pela pequena passagem que dava para os fundos da casa. A noite estava escura, a lua escondida atrás de densas nuvens. O vento gelado cortava minha pele, mas a adrenalina me impedia de sentir qualquer desconforto."Corra."E eu corri.As ruas de pedra pareciam intermináveis sob meus pés ligeiros. Passei pelas casas sile
O silêncio dentro da carruagem era opressor. O único som audível era o trote ritmado dos cavalos no chão de pedra e a batida apressada do meu coração. Minhas mãos estavam cerradas sobre o tecido amarrotado do meu vestido, e minha respiração vinha rasa, pesada, enquanto meu olhar saltava para a janela, observando a cidade se distanciar.Eu ainda sentia o toque de Kael em meu pulso, o aperto firme que me impediu de fugir. Ainda ouvia a sua voz — um misto de diversão e autoridade — me dizendo que eu não poderia escapar dele.Eu odiava isso.Odiava o jeito como ele me olhava, como se já me possuísse. Odiava o modo como seu cheiro invadia minha mente, como se fosse uma droga viciante. Mas acima de tudo, odiava a impotência queimando dentro de mim.A carruagem sacolejou levemente quando cruzamos os portões da fortaleza, e eu me forcei a erguer o queixo, recusando-me a parecer assustada. Mas quando minha visão captou o castelo imponente à nossa frente, um frio cortante percorreu minha espinh
O castelo era sufocante. Eu já estava ali há três dias, e cada canto daquele lugar parecia mais apertado do que o último. O silêncio era absoluto nos corredores de pedra escura, e o aroma amadeirado dos móveis misturava-se com o cheiro de velas queimando. As criadas evitavam cruzar olhares comigo, apenas sussurravam entre si antes de desaparecerem por portas escondidas. Eu as invejava. Elas podiam ir e vir como quisessem. Eu não. Kael havia me trancado ali como um animal enjaulado, e, mesmo sem correntes visíveis, eu sabia que estava presa. Sempre havia guardas vigiando os corredores. Sempre havia olhares atentos ao menor movimento que eu fizesse. Eu estava sendo observada. E ele estava por perto. Eu não o via desde a noite em que chegamos, mas sentia sua presença como uma sombra persistente. Kael gostava de jogar. Gostava de me provocar sem precisar dizer uma única palavra. Então, eu fazia o mesmo. Se ele queria me desafiar, eu resistiria. Passei os últimos dias evitando qua
Eu sabia que não podia mais viver naquele castelo. Cada corredor me parecia um labirinto de armadilhas, onde o rei era o monstro à espreita, sempre observando, esperando, pronto para me devorar. Naquela noite, o castelo estava em silêncio, uma calma que mais parecia uma ilusão, um respiro momentâneo antes da tempestade. Quando a última criada passou por mim e as luzes começaram a se apagar, eu sabia que era a minha chance.Escorreguei pela porta lateral do meu quarto, tentando fazer o mínimo de barulho possível. O ar frio da noite acariciou minha pele nua, a lua iluminando o caminho diante de mim. A sensação de liberdade foi como um sopro de ar fresco nos meus pulmões, mas eu sabia que não tinha muito tempo.Antes que eu pudesse dar mais do que dois passos, uma presença familiar se fez sentir nas sombras.“Você está tentando fugir de novo, Lyara?” A voz de Kael cortou a noite como uma lâmina afiada.Congelei, o coração batendo tão rápido que mal consegui ouvir meus próprios pensamento
O castelo estava quieto demais. O som das minhas botas ecoava pelos corredores vazios enquanto eu andava, quase sem rumo, tentando entender o que havia acontecido comigo. Uma parte de mim queria gritar, correr até a casa dos Kinsley e pedir para voltar. Mas outra parte—uma parte que eu mal reconhecia—estava... diferente. Eu não sabia o que Kael tinha feito comigo. O que ele tinha... me feito sentir.Quando entrei no meu quarto, ele estava lá. De pé, com os ombros largos, a postura impassível, como sempre. Olhei para ele, sentindo meu coração disparar. Ele parecia saber exatamente o que estava acontecendo dentro de mim, o que me aterrorizava ainda mais."Você está fugindo de mim, Lyara?", ele perguntou, sua voz grave quebrando o silêncio.Eu dei um passo atrás, encarando-o com raiva. "Eu não sou sua prisioneira, Kael", falei, tentando manter a voz firme, embora minhas mãos tremessem. "Eu não quero ficar aqui, e você não pode me forçar."Kael sorriu de forma divertida, mas havia algo em
Sete dias se passaram desde que vi Kael pela última vez, e sua ausência, ao invés de aliviar, parece aumentar a presença dele em minha mente. Eu não consigo escapar dele — não apenas fisicamente, mas na minha mente, em cada pensamento que tento bloquear. Ao longo desses dias, ele não apareceu no castelo, mas sua presença se fez sentir de maneiras inesperadas.A cada amanhecer, um novo buquê de flores perfumadas aparecia em meu quarto. Rosas vermelhas, lírios brancos, orquídeas exóticas. Cada uma acompanhada de uma carta. As flores sempre eram novas, sempre cuidadosas, escolhidas com algo mais do que simples intenção. Eu sabia que não eram apenas presentes, mas mensagens silenciosas, um jeito de ele me cercar sem estar fisicamente presente.“Para a mulher que ilumina meu dia, mesmo nas sombras. Com todo o meu carinho, Kael.”Eu li as palavras, sentindo um nó apertado no meu peito. A cada carta, a cada flor, ele me fazia questionar o que eu realmente sentia. Eu sabia o que queria dizer