O tecido do vestido me incomodava. Não era ruim, na verdade, era até bonito—um tom discreto de azul escuro, simples, mas elegante. Mas não era meu. Não fazia parte de mim.
Puxei a manga levemente, ajeitando-a enquanto me encarava no espelho do pequeno quarto. Meu reflexo parecia o de outra pessoa. Eu não estava acostumada a ver minha pele tão limpa, meu cabelo tão bem preso, sem as marcas do dia de trabalho. Suspirei. A ideia de me sentar à mesa como uma convidada me dava nos nervos. Eu deveria estar na cozinha, supervisionando o jantar, limpando pratos, servindo vinho. Era ali que eu pertencia. Mas Alma havia insistido tanto, e sua bondade comigo sempre fora tão genuína que dizer não parecia errado. O jantar seria tranquilo, eu me convenci. Os convidados eram do General Kinsley, amigos dele. Eu só precisava sorrir, comer algo e depois me retirar discretamente. Respirei fundo antes de sair do quarto. O corredor estava silencioso, apenas o eco distante das conversas no salão indicava que o jantar já havia começado. Cada passo que eu dava parecia mais pesado. Quando finalmente cheguei à sala de jantar, percebi que a mesa já estava quase cheia. Alma sorriu ao me ver, acenando para que me aproximasse. Engoli em seco e caminhei até um dos lugares vagos. O clima na mesa era agradável, apesar de um pouco formal. O general Kinsley conversava com alguns homens sobre assuntos militares, enquanto Alma mantinha um diálogo animado com as esposas dos convidados. Tentei me manter discreta, focada no prato à minha frente, mas algo me incomodava. Uma sensação estranha no ar. Como se algo estivesse errado. E então ouvi a voz. Uma voz profunda, imponente, que fez meu corpo inteiro gelar. "Espero não estar atrapalhando." O silêncio caiu sobre a mesa. Minha respiração travou. Com um arrepio percorrendo minha espinha, levantei os olhos devagar. Kael. Ele estava ali, parado à entrada da sala de jantar, seu olhar pousado diretamente sobre mim. Os convidados se levantaram às pressas, reverenciando o rei. Meu coração martelava tão forte que eu podia senti-lo na garganta. Por quê? Por que ele estava aqui? Kinsley foi o primeiro a se recompor. "Majestade! Que honra recebê-lo em minha casa." Kael deu alguns passos para dentro da sala, sua presença dominando o ambiente com facilidade. Ele não precisou dizer nada para que todos percebessem quem realmente estava no controle ali. "Perdoe-me por aparecer sem aviso." Seu tom era quase cortês, mas havia algo afiado nele. "Mas havia um assunto que precisava resolver." Seus olhos voltaram para mim. Minha garganta secou. Alma percebeu a tensão no ar e se adiantou, sua postura levemente protetora. "Majestade, o que o traz aqui?" Kael inclinou a cabeça levemente, um sorriso frio brincando nos lábios. "Vim buscar algo que me pertence." Um arrepio percorreu meu corpo. Os olhares se voltaram para mim. Não. Não. Isso não podia estar acontecendo. "Lyara." Ele pronunciou meu nome devagar, como se estivesse provando o gosto da palavra. Eu quis me encolher, desaparecer. Kinsley franziu a testa, confuso. "Minha serva?" "Ela não é sua serva." Kael corrigiu, calmamente. "E nem sua propriedade." A tensão na sala se tornou quase sufocante. Alma segurou minha mão debaixo da mesa, como se quisesse me dar forças. "Majestade," ela disse, cuidadosa, "Lyara faz parte da nossa casa. Ela é como uma filha para nós." Kael observou Alma por um momento, mas seu olhar voltou para mim logo em seguida. "Isso não muda nada." Sua voz era calma, mas firme. "Ela vem comigo para o castelo." Meu coração parou. Kinsley e Alma trocaram um olhar aflito. Eu me levantei, tentando manter a compostura. "Eu não quero ir." Foi a primeira vez que falei, e a única coisa que consegui ver no rosto de Kael foi… diversão. Como se ele estivesse esperando exatamente essa resposta. "Isso não é uma escolha." Minhas mãos tremiam ao lado do corpo. "Eu não sou uma prisioneira." Kael se aproximou lentamente, parando à minha frente. A diferença de altura entre nós era intimidadora. "Não." Ele inclinou a cabeça, analisando cada detalhe da minha expressão. "Você é muito mais do que isso." Algo na maneira como ele disse aquelas palavras me fez sentir como se estivesse sendo devorada viva. "Lyara não é uma peça para ser tomada," Alma interveio, sua voz cheia de indignação. "Ela tem o direito de decidir." Kael nem sequer olhou para ela. Seus olhos continuaram presos aos meus. "Ela já decidiu." Sua voz era baixa, mas implacável. "Ela decidiu fugir de mim. E eu não permito isso." Meu sangue gelou. Ele já sabia. Desde o momento em que saí correndo naquela feira, desde o instante em que tentei desaparecer… ele sabia que eu fugiria. Ele sempre soube. E ainda assim, me deixou ir. Um jogo. Kael gostava de jogos. Meu peito subia e descia rápido demais. O general Kinsley limpou a garganta, incerto. Ele sabia que contrariar o rei não era uma opção. Por fim, suspirou pesadamente. "Majestade… se isso for uma ordem real, então não há nada que possamos fazer." Alma arregalou os olhos. "Kinsley!" Kael sorriu, satisfeito. "O rei já decidiu." Alma apertou minha mão uma última vez antes de me soltar. Seu olhar estava cheio de tristeza e frustração. "Lyara…" Engoli o nó na garganta. Nada que eu dissesse mudaria aquela situação. Eu havia sido capturada antes mesmo de tentar fugir. Kael se virou para mim novamente, oferecendo sua mão. "Vamos." Olhei para sua mão, mas não a toquei. Minhas pernas estavam pesadas quando comecei a caminhar ao seu lado, sentindo os olhares da família Kinsley me acompanhando. O que seria de mim agora? Meu coração martelava contra as costelas. Eu precisava fugir. E dessa vez, não podia falhar.O ar estava pesado, sufocante. Desde que o jantar terminara e Kael proferira aquelas palavras como uma sentença, minha mente trabalhava freneticamente. Eu não podia aceitar. Não podia simplesmente ser levada como um objeto, arrancada da única casa que conheci nos últimos anos.Meus dedos tremiam enquanto eu terminava de amarrar as botas gastas. Meus pensamentos giravam, a respiração curta, rápida. O coração martelava no peito."Eu preciso sair daqui."Alma dormia no quarto ao lado, e eu sabia que o General Kinsley ainda estava acordado, conversando com os outros convidados. O tempo era curto, mas eu tinha uma chance. Com os pés descalços para não fazer barulho, deslizei pela pequena passagem que dava para os fundos da casa. A noite estava escura, a lua escondida atrás de densas nuvens. O vento gelado cortava minha pele, mas a adrenalina me impedia de sentir qualquer desconforto."Corra."E eu corri.As ruas de pedra pareciam intermináveis sob meus pés ligeiros. Passei pelas casas sile
O silêncio dentro da carruagem era opressor. O único som audível era o trote ritmado dos cavalos no chão de pedra e a batida apressada do meu coração. Minhas mãos estavam cerradas sobre o tecido amarrotado do meu vestido, e minha respiração vinha rasa, pesada, enquanto meu olhar saltava para a janela, observando a cidade se distanciar.Eu ainda sentia o toque de Kael em meu pulso, o aperto firme que me impediu de fugir. Ainda ouvia a sua voz — um misto de diversão e autoridade — me dizendo que eu não poderia escapar dele.Eu odiava isso.Odiava o jeito como ele me olhava, como se já me possuísse. Odiava o modo como seu cheiro invadia minha mente, como se fosse uma droga viciante. Mas acima de tudo, odiava a impotência queimando dentro de mim.A carruagem sacolejou levemente quando cruzamos os portões da fortaleza, e eu me forcei a erguer o queixo, recusando-me a parecer assustada. Mas quando minha visão captou o castelo imponente à nossa frente, um frio cortante percorreu minha espinh
O castelo era sufocante. Eu já estava ali há três dias, e cada canto daquele lugar parecia mais apertado do que o último. O silêncio era absoluto nos corredores de pedra escura, e o aroma amadeirado dos móveis misturava-se com o cheiro de velas queimando. As criadas evitavam cruzar olhares comigo, apenas sussurravam entre si antes de desaparecerem por portas escondidas. Eu as invejava. Elas podiam ir e vir como quisessem. Eu não. Kael havia me trancado ali como um animal enjaulado, e, mesmo sem correntes visíveis, eu sabia que estava presa. Sempre havia guardas vigiando os corredores. Sempre havia olhares atentos ao menor movimento que eu fizesse. Eu estava sendo observada. E ele estava por perto. Eu não o via desde a noite em que chegamos, mas sentia sua presença como uma sombra persistente. Kael gostava de jogar. Gostava de me provocar sem precisar dizer uma única palavra. Então, eu fazia o mesmo. Se ele queria me desafiar, eu resistiria. Passei os últimos dias evitando qua
Eu sabia que não podia mais viver naquele castelo. Cada corredor me parecia um labirinto de armadilhas, onde o rei era o monstro à espreita, sempre observando, esperando, pronto para me devorar. Naquela noite, o castelo estava em silêncio, uma calma que mais parecia uma ilusão, um respiro momentâneo antes da tempestade. Quando a última criada passou por mim e as luzes começaram a se apagar, eu sabia que era a minha chance.Escorreguei pela porta lateral do meu quarto, tentando fazer o mínimo de barulho possível. O ar frio da noite acariciou minha pele nua, a lua iluminando o caminho diante de mim. A sensação de liberdade foi como um sopro de ar fresco nos meus pulmões, mas eu sabia que não tinha muito tempo.Antes que eu pudesse dar mais do que dois passos, uma presença familiar se fez sentir nas sombras.“Você está tentando fugir de novo, Lyara?” A voz de Kael cortou a noite como uma lâmina afiada.Congelei, o coração batendo tão rápido que mal consegui ouvir meus próprios pensamento
O castelo estava quieto demais. O som das minhas botas ecoava pelos corredores vazios enquanto eu andava, quase sem rumo, tentando entender o que havia acontecido comigo. Uma parte de mim queria gritar, correr até a casa dos Kinsley e pedir para voltar. Mas outra parte—uma parte que eu mal reconhecia—estava... diferente. Eu não sabia o que Kael tinha feito comigo. O que ele tinha... me feito sentir.Quando entrei no meu quarto, ele estava lá. De pé, com os ombros largos, a postura impassível, como sempre. Olhei para ele, sentindo meu coração disparar. Ele parecia saber exatamente o que estava acontecendo dentro de mim, o que me aterrorizava ainda mais."Você está fugindo de mim, Lyara?", ele perguntou, sua voz grave quebrando o silêncio.Eu dei um passo atrás, encarando-o com raiva. "Eu não sou sua prisioneira, Kael", falei, tentando manter a voz firme, embora minhas mãos tremessem. "Eu não quero ficar aqui, e você não pode me forçar."Kael sorriu de forma divertida, mas havia algo em
Sete dias se passaram desde que vi Kael pela última vez, e sua ausência, ao invés de aliviar, parece aumentar a presença dele em minha mente. Eu não consigo escapar dele — não apenas fisicamente, mas na minha mente, em cada pensamento que tento bloquear. Ao longo desses dias, ele não apareceu no castelo, mas sua presença se fez sentir de maneiras inesperadas.A cada amanhecer, um novo buquê de flores perfumadas aparecia em meu quarto. Rosas vermelhas, lírios brancos, orquídeas exóticas. Cada uma acompanhada de uma carta. As flores sempre eram novas, sempre cuidadosas, escolhidas com algo mais do que simples intenção. Eu sabia que não eram apenas presentes, mas mensagens silenciosas, um jeito de ele me cercar sem estar fisicamente presente.“Para a mulher que ilumina meu dia, mesmo nas sombras. Com todo o meu carinho, Kael.”Eu li as palavras, sentindo um nó apertado no meu peito. A cada carta, a cada flor, ele me fazia questionar o que eu realmente sentia. Eu sabia o que queria dizer
O castelo estava inquieto naquela noite. Desde o momento em que os primeiros mensageiros chegaram anunciando que o Rei havia sido atacado no meio do trajeto de volta, um clima pesado tomou conta dos corredores. Servos corriam de um lado para o outro, os curandeiros foram convocados às pressas, e os guardas mantinham uma vigilância reforçada nos portões.Eu não deveria me importar. Não deveria sentir o nó apertado no peito enquanto caminhava de um lado para o outro no salão principal, esperando qualquer notícia. Mas era impossível ignorar a ansiedade que me consumia.Então, finalmente, o barulho dos portões se abrindo me fez girar nos calcanhares. O cheiro de sangue veio antes da visão do Rei.Kael estava sobre um cavalo, segurando-se na sela com dificuldade. Sua armadura estava suja de terra e sangue, e seus olhos, normalmente tão intensos, pareciam opacos. Assim que ele desmontou, seu corpo vacilou, e dois guardas correram para segurá-lo."Chamem os curandeiros! Agora!" ordenou um do
A noite se arrastava lenta, sufocante. O castelo estava mergulhado no silêncio, interrompido apenas pelo ocasional uivo do vento contra as janelas. Eu não conseguia me afastar do quarto de Kael. Algo dentro de mim me impedia de deixá-lo sozinho.Os curandeiros vinham e iam, carregando ervas, poções e compressas. Nenhum deles parecia otimista. A febre persistia, os ferimentos estavam infectados, e ele sequer acordava.Fiquei de pé ao lado da cama, observando-o. Seu rosto, sempre marcado por uma imponência inquebrantável, agora parecia frágil. A cada respiração pesada, meu peito apertava mais."Você precisa lutar, Kael", sussurrei, minha voz embargada. "Não pode morrer assim."Ele não reagiu.Minha garganta ficou seca, e meus olhos começaram a arder.Por que isso estava me afetando tanto?Eu deveria me importar? Esse homem era apenas o meio para minha sobrevivência, minha proteção… minha vingança. E ainda assim, a mera ideia de perdê-lo fazia algo dentro de mim desmoronar.Fechei os olh