A faca deslizava sobre a cenoura, cortando fatias finas e uniformes. O cheiro das ervas frescas se misturava ao aroma da carne cozinhando lentamente, preenchendo a cozinha com um calor confortável. O vapor subia da panela, nublando minha visão por um instante, e eu fechei os olhos, respirando fundo.
Por um breve momento, esqueci tudo. O encontro com o Rei. O medo que me corroía por dentro. A vontade de sumir. Aqui, entre as panelas e os temperos, eu ainda era apenas uma serviçal. Apenas Lyara. "Você tem mãos habilidosas." A voz suave de Alma me fez sobressaltar. Me virei depressa, a faca ainda na mão, e encontrei sua figura delicada parada à porta. Sua expressão era serena, mas os olhos carregavam algo mais profundo. Preocupação? Curiosidade? Engoli em seco e abaixei a faca. "Senhora… Não ouvi a senhora entrar." "Você estava concentrada." Alma se aproximou, sua postura elegante e gentil como sempre. "E pensando. Consigo ver isso no seu rosto." Ela parou ao meu lado, observando meu trabalho. Pegou uma fatia de cenoura e a mastigou com um sorriso satisfeito. "Perfeito, como sempre." Abaixei os olhos, envergonhada pelo elogio. Alma sempre fora bondosa comigo, diferente da maioria dos nobres. Mesmo sendo a esposa de um general influente, ela nunca me tratou como algo descartável. Mas eu sabia que hoje ela tinha vindo por outro motivo. "Lyara…" Sua voz veio baixa, cuidadosa. "Por que fugiu daquele jeito?" O ar pareceu sair dos meus pulmões. Minha mão apertou a faca involuntariamente. "Eu…" As palavras travaram na minha garganta. O rosto do Rei Kael surgiu na minha mente, seus olhos escuros me estudando como um predador. A forma como me olhou… como se me conhecesse. Como se já tivesse me escolhido. Engoli a saliva com dificuldade. "Eu não quero nada com a realeza." Alma ficou em silêncio por um momento, apenas me observando. Seu olhar era gentil, mas afiado. "Ele te assustou?" Ri sem humor, colocando a faca sobre a mesa. "O Rei? Assustador?" Sacudi a cabeça. "Ele não precisa assustar ninguém, senhora. Ele tem poder suficiente para conseguir tudo o que quer sem precisar ameaçar." Alma continuou me olhando, os lábios franzidos levemente. "E o que ele quer… é você?" Minha pele se arrepiou. "Eu não sei." Admiti, sentindo um nó se formar no meu estômago. "Mas não quero descobrir." "Então por que voltou para cá?" Ela inclinou a cabeça, sua expressão mais séria. "Se estivesse mesmo desesperada para fugir da realeza, teria deixado a cidade completamente. Mas, em vez disso, voltou para esta casa. Para nós." Não respondi de imediato. Como eu poderia explicar? Esta casa era o único lugar onde eu havia encontrado um mínimo de paz nos últimos anos. Depois do que passei… Mordi o lábio e baixei o olhar para as minhas mãos. "Eu prefiro servir aqui. Prefiro servir à senhora e sua família." Alma suspirou baixinho, e quando ergui os olhos, vi que ela sorria de forma suave. "Você é parte da família, Lyara." Fiquei paralisada. "O quê?" "Sempre foi." Sua mão pousou sobre a minha com delicadeza. "Você acha que não percebo? O modo como cuida dessa casa, como cuida de nós… Como sempre faz mais do que qualquer outra empregada faria. Eu e meu marido confiamos em você." Meu peito apertou. Família. Fazia tanto tempo que não ouvia essa palavra sendo dita para mim. E pior: fazia tanto tempo que não sentia que pertencia a algo. Meu coração se apertou de um jeito estranho. Quis dizer que não era verdade, que eu não era nada além de uma serviçal. Mas Alma me olhava com tanta sinceridade que as palavras morreram na minha garganta. "Venha jantar conosco hoje." "O quê?" Minhas mãos suadas se fecharam em punhos. "Senhora, eu não posso… Eu não tenho roupas para isso, eu…" "Podemos arrumar um vestido." "Mas…" Me senti encurralada. "Quem são os convidados?" Alma hesitou por um instante, e um pequeno sorriso brincou em seus lábios. "São conhecidos do meu marido. Ele não me deu detalhes. Mas não se preocupe, tenho certeza de que será uma noite tranquila." Meu estômago revirou. Algo me dizia que não seria.O tecido do vestido me incomodava. Não era ruim, na verdade, era até bonito—um tom discreto de azul escuro, simples, mas elegante. Mas não era meu. Não fazia parte de mim.Puxei a manga levemente, ajeitando-a enquanto me encarava no espelho do pequeno quarto. Meu reflexo parecia o de outra pessoa. Eu não estava acostumada a ver minha pele tão limpa, meu cabelo tão bem preso, sem as marcas do dia de trabalho.Suspirei.A ideia de me sentar à mesa como uma convidada me dava nos nervos. Eu deveria estar na cozinha, supervisionando o jantar, limpando pratos, servindo vinho. Era ali que eu pertencia. Mas Alma havia insistido tanto, e sua bondade comigo sempre fora tão genuína que dizer não parecia errado.O jantar seria tranquilo, eu me convenci. Os convidados eram do General Kinsley, amigos dele. Eu só precisava sorrir, comer algo e depois me retirar discretamente.Respirei fundo antes de sair do quarto. O corredor estava silencioso, apenas o eco distante das conversas no salão indicava q
O ar estava pesado, sufocante. Desde que o jantar terminara e Kael proferira aquelas palavras como uma sentença, minha mente trabalhava freneticamente. Eu não podia aceitar. Não podia simplesmente ser levada como um objeto, arrancada da única casa que conheci nos últimos anos.Meus dedos tremiam enquanto eu terminava de amarrar as botas gastas. Meus pensamentos giravam, a respiração curta, rápida. O coração martelava no peito."Eu preciso sair daqui."Alma dormia no quarto ao lado, e eu sabia que o General Kinsley ainda estava acordado, conversando com os outros convidados. O tempo era curto, mas eu tinha uma chance. Com os pés descalços para não fazer barulho, deslizei pela pequena passagem que dava para os fundos da casa. A noite estava escura, a lua escondida atrás de densas nuvens. O vento gelado cortava minha pele, mas a adrenalina me impedia de sentir qualquer desconforto."Corra."E eu corri.As ruas de pedra pareciam intermináveis sob meus pés ligeiros. Passei pelas casas sile
O silêncio dentro da carruagem era opressor. O único som audível era o trote ritmado dos cavalos no chão de pedra e a batida apressada do meu coração. Minhas mãos estavam cerradas sobre o tecido amarrotado do meu vestido, e minha respiração vinha rasa, pesada, enquanto meu olhar saltava para a janela, observando a cidade se distanciar.Eu ainda sentia o toque de Kael em meu pulso, o aperto firme que me impediu de fugir. Ainda ouvia a sua voz — um misto de diversão e autoridade — me dizendo que eu não poderia escapar dele.Eu odiava isso.Odiava o jeito como ele me olhava, como se já me possuísse. Odiava o modo como seu cheiro invadia minha mente, como se fosse uma droga viciante. Mas acima de tudo, odiava a impotência queimando dentro de mim.A carruagem sacolejou levemente quando cruzamos os portões da fortaleza, e eu me forcei a erguer o queixo, recusando-me a parecer assustada. Mas quando minha visão captou o castelo imponente à nossa frente, um frio cortante percorreu minha espinh
O castelo era sufocante. Eu já estava ali há três dias, e cada canto daquele lugar parecia mais apertado do que o último. O silêncio era absoluto nos corredores de pedra escura, e o aroma amadeirado dos móveis misturava-se com o cheiro de velas queimando. As criadas evitavam cruzar olhares comigo, apenas sussurravam entre si antes de desaparecerem por portas escondidas. Eu as invejava. Elas podiam ir e vir como quisessem. Eu não. Kael havia me trancado ali como um animal enjaulado, e, mesmo sem correntes visíveis, eu sabia que estava presa. Sempre havia guardas vigiando os corredores. Sempre havia olhares atentos ao menor movimento que eu fizesse. Eu estava sendo observada. E ele estava por perto. Eu não o via desde a noite em que chegamos, mas sentia sua presença como uma sombra persistente. Kael gostava de jogar. Gostava de me provocar sem precisar dizer uma única palavra. Então, eu fazia o mesmo. Se ele queria me desafiar, eu resistiria. Passei os últimos dias evitando qua
Eu sabia que não podia mais viver naquele castelo. Cada corredor me parecia um labirinto de armadilhas, onde o rei era o monstro à espreita, sempre observando, esperando, pronto para me devorar. Naquela noite, o castelo estava em silêncio, uma calma que mais parecia uma ilusão, um respiro momentâneo antes da tempestade. Quando a última criada passou por mim e as luzes começaram a se apagar, eu sabia que era a minha chance.Escorreguei pela porta lateral do meu quarto, tentando fazer o mínimo de barulho possível. O ar frio da noite acariciou minha pele nua, a lua iluminando o caminho diante de mim. A sensação de liberdade foi como um sopro de ar fresco nos meus pulmões, mas eu sabia que não tinha muito tempo.Antes que eu pudesse dar mais do que dois passos, uma presença familiar se fez sentir nas sombras.“Você está tentando fugir de novo, Lyara?” A voz de Kael cortou a noite como uma lâmina afiada.Congelei, o coração batendo tão rápido que mal consegui ouvir meus próprios pensamento
O castelo estava quieto demais. O som das minhas botas ecoava pelos corredores vazios enquanto eu andava, quase sem rumo, tentando entender o que havia acontecido comigo. Uma parte de mim queria gritar, correr até a casa dos Kinsley e pedir para voltar. Mas outra parte—uma parte que eu mal reconhecia—estava... diferente. Eu não sabia o que Kael tinha feito comigo. O que ele tinha... me feito sentir.Quando entrei no meu quarto, ele estava lá. De pé, com os ombros largos, a postura impassível, como sempre. Olhei para ele, sentindo meu coração disparar. Ele parecia saber exatamente o que estava acontecendo dentro de mim, o que me aterrorizava ainda mais."Você está fugindo de mim, Lyara?", ele perguntou, sua voz grave quebrando o silêncio.Eu dei um passo atrás, encarando-o com raiva. "Eu não sou sua prisioneira, Kael", falei, tentando manter a voz firme, embora minhas mãos tremessem. "Eu não quero ficar aqui, e você não pode me forçar."Kael sorriu de forma divertida, mas havia algo em
Sete dias se passaram desde que vi Kael pela última vez, e sua ausência, ao invés de aliviar, parece aumentar a presença dele em minha mente. Eu não consigo escapar dele — não apenas fisicamente, mas na minha mente, em cada pensamento que tento bloquear. Ao longo desses dias, ele não apareceu no castelo, mas sua presença se fez sentir de maneiras inesperadas.A cada amanhecer, um novo buquê de flores perfumadas aparecia em meu quarto. Rosas vermelhas, lírios brancos, orquídeas exóticas. Cada uma acompanhada de uma carta. As flores sempre eram novas, sempre cuidadosas, escolhidas com algo mais do que simples intenção. Eu sabia que não eram apenas presentes, mas mensagens silenciosas, um jeito de ele me cercar sem estar fisicamente presente.“Para a mulher que ilumina meu dia, mesmo nas sombras. Com todo o meu carinho, Kael.”Eu li as palavras, sentindo um nó apertado no meu peito. A cada carta, a cada flor, ele me fazia questionar o que eu realmente sentia. Eu sabia o que queria dizer
O castelo estava inquieto naquela noite. Desde o momento em que os primeiros mensageiros chegaram anunciando que o Rei havia sido atacado no meio do trajeto de volta, um clima pesado tomou conta dos corredores. Servos corriam de um lado para o outro, os curandeiros foram convocados às pressas, e os guardas mantinham uma vigilância reforçada nos portões.Eu não deveria me importar. Não deveria sentir o nó apertado no peito enquanto caminhava de um lado para o outro no salão principal, esperando qualquer notícia. Mas era impossível ignorar a ansiedade que me consumia.Então, finalmente, o barulho dos portões se abrindo me fez girar nos calcanhares. O cheiro de sangue veio antes da visão do Rei.Kael estava sobre um cavalo, segurando-se na sela com dificuldade. Sua armadura estava suja de terra e sangue, e seus olhos, normalmente tão intensos, pareciam opacos. Assim que ele desmontou, seu corpo vacilou, e dois guardas correram para segurá-lo."Chamem os curandeiros! Agora!" ordenou um do