DE TODOS OS PRAZERES, na vida, a gula deveria ser considerado o maior pecado na minha. É mais um domingo à tarde sob um calor absurdo de trinta e dois graus no Rio de Janeiro, e eu estou sentada no sofá com três bolas de sorvete de morango derretendo dentro do copo, em minhas mãos. Não consigo me conter; a ideia de abrir o congelador para pegar o pote de sorvete totalmente para mim é quase irresistível.
Eu poderia estar lá fora com todos os amigos da minha mãe, com um biquíni bastante chamativo mergulhando na piscina, conversando sobre a última roupa usada pela diva da moda que, infelizmente, não deve saber da nossa existência. Mas, ao invés disso, aqui estou eu, em um estado de indulgência solitária.
O sorvete é minha fuga, meu pequeno segredo. Cada colherada é um prazer que não compartilho com ninguém, uma pequena rebelião contra a rotina e a expectativa social. A textura cremosa e o sabor doce e refrescante são o antídoto perfeito para o calor e a monotonia.
Laura, minha mãe, havia me avisado para não exagerar no sorvete e tampouco ficar em casa sozinha, mas eu ignoro a sua advertência. Afinal, em dias como este, a gula é minha companhia preferida. A sensação de estar sozinha no apartamento me dá a liberdade de ser quem eu realmente sou: alguém que se entrega aos prazeres simples e aos pequenos excessos.
Enquanto saboreio outra colherada, ouço a porta se abrir, pensei em esconder o meu paraíso gelado, até ver o Marcelo, o namorado da minha mãe que entra em seguida, abrindo um sorriso amplo ao me ver.
Não era tão próxima dele, afinal a minha vida é dentro daquela faculdade, ou no meu quarto, a realidade de uma estudante de medicina. Não sendo a antipática que a minha mãe diz que sou, apenas sorrio de volta, vendo o homem de pele clara, alto, musculoso, sem camisa, alisandos os cabelos pretos molhados vir rindo em minha direção, usando a sua bermuda de sarja azul escuro.
— Ai, está você linda! — Vem sorrindo em minha direção, e como uma vitima experiente olho para o rastro de água que ele vem deixando no piso, seguindo do tapete branco peludo, a sua voz é animada e amigável, e eu posso ouvir o eco da música que ele traz consigo, como o samba carioquinha, acompanhados de drinques a base de vodka, gelo e frutas, o típico destes empresário que vive durante a semana preso no escritório e no fim dela, deseja aproveitar ao máximo.
O pensamento de ter que interagir, vestir um biquíni e fingir que me importo com as últimas tendências de moda faz com que eu me sinta ainda mais atraída pelo sofá e pelo meu sorvete predileto, odeio ouvir e falar sobre o que não entendo, moda, eu nunca sei o que eles estão querendo dizer ou expressar com uma roupa ou acessórios.
Meio que balanço a cabeça e sorrio vago, lhe vendo e em seguida indicando com os olhos o rastro deixado de água. Até ter a minha visão coberta por seu corpo, a medida que chega tão perto de mim, lembrando instantaneamente que ainda mantenho as minhas pernas dobradas, com os pés sob o sofá, quando os desço rapidamente, tocando em suas pernas.
— O... o que está fazendo? — Pergunto sem graça, e jeito, quando o mesmo a minha frente abocanhar a colher com o pouco do sorvete derretido de uma vez, engolindo e em seguida sorri lambendo os lábios.
— Hum... delícia! — Ainda paralisada com o seu gesto, olhando para a colher em minha mão, senti-me invadida, poderia até ser a reação de uma garota mimada, Marcelo meio que rosrona, não sei ao certo.
— Não faça mais isso! — Peço devagar, lhe vendo parar de saborear e me olhar abrindo mais um sorriso extremamente branco.
— O quê? — O vejo olhar para a colher, como certa curiosidade que se transforma em desdém.
— Ah Mavi é só uma colher. — Ele diz, enquanto me afasto, levantando em seguida, o ouço ligando a TV, o silêncio da sala vai embora, sentando no sofá de linho que a dona Laura sempre exigiu que fosse mantido limpo, enquanto caminho, fingimos nos ignorar.
Vou para o meu quarto, após passar na cozinha, deixar o copo sujo de sorvete de lado, entro no quarto fechando a porta em seguida, ouvindo o som lá embaixo. Olho pela janela de vidro, vendo parte da piscina azul, até convidativa, mas não me dá vontade nenhuma de descer.
— Você não vai ficar chateada com isso não é? — A voz de Marcelo me acompanha, em seguida ele abre a porta do meu quarto.
Sento-me na cadeira, evitando qualquer oportunidade de assunto. — Não, eu só preciso estudar. — Na verdade, preciso mesmo, o próximo semestre começa o período de primeiro estágio, devo rever os assuntos, sempre gostei de estar alinhada com os estudos, ligo a tela do computador, ignorando-o outra vez, não estando interessada em conversa, não o conheço bem, o vi poucas vezes, sempre como algo da minha mãe, primeiro um ficante e agora, o namorado, mas, na verdade, Marcelo, aparenta ter entre vinte e vinte cinco anos, não muito.
Como uma cola insistente, Marcelo se apóia atrás da minha cadeira. — Ah, Mavi, deixa de ser nerd, porque não aproveitamos...— Mal observo a tela, as anotações feitas para retormar. Até que sinto o seu braço enconstar no meu, o olho indiretamente. Notando que o seu rosto se aproxima do meu.
— … que todos estão lá embaixo e...— Pelos seus olhos escuros a descer em direção aos meus lábios, fixando por alguns momentos denunciando certa malícia, um riso em escárnio, sequer esperei.
— O que Marcelo? Saia do meu quarto agora, ou eu...
Altero a voz, ao sentir o desrespeito em tê-lo tão perto, ainda mais em meu quarto, sozinhos.
— Não grita, já entendi. — Diz o sujeito, dando com uma mão, indo em direção à porta, saindo em seguida, os meus batimentos ainda estavam acelerados e por alguns minutos revirei a minha mente tentando compreender o que havia acontecido, eu havia exagerado? Pensado errado?
E como resposta, Marcelo ficou seguiu indiferente, que mal chegava a algum lugar próximo a minha mãe, ele forçava a ficar, estar, uma semana passou-se, os seus olhares passaram a me incomodar, os encontros repetidos e forçados, já não havendo mais privacidade para falar com a minha mãe, tudo aquilo me sufocando, o desejo de gritar, mas eu também sabia que ela já nutria sentimentos por ele.
Aguentando até a quarta-feira, ela havia acabado de chegar da academia, estando deitada no sofá com o seu cão de guarda ao lado, os olhos dele vieram para mim assim que surgi no corredor, enojava-me, os fios de cabelos loiros da minha mãe sobre o seu colo, a roupa de academia numa mistura de rosa Pink, e azul neon, a tatuagem com o meu nome em suas costas, o ambiente se tornando tenso para nós.
—Bom dia, Mãe podemos conversar? — Chego a sala me deparando com o casal, pergunto apressadamente, ele já não sai mais daqui?
—Bom dia Mavi. — O homem com parte do corpo da minha mãe sobre o seu colo, diz sorrindo, me olhando. Os nossos olhos se encontram, os meus denunciando o desconforto, os deles a ignorar o acontecido, desvio rapidamente.— Bom dia Marcelo, mãe... — A chamo, vendo-o ainda massageando sua cervical.
— Aí filha! O que houve é sério? — Minha mãe diz com a voz abafada por estar deitada em suas coxas, Marcelo ainda me observando, a me constranger, é sério que ela não está percebendo isso? Me pergunto inquieta.
— Te espero quando no meu quarto, pode ser? — Volto para o meu quarto, ficando a sua espera, outra vez submersa em leituras e exercícios, um dia se passa e ela não veio.
Pela nossa casa, já havia passado alguns namorados, tive em um total de uns oito padrastos, todos do ramo empresário, mas meu pai mesmo, nunca o vi, exceto por foto, sempre soube que mandava a pensão, a sua voz escutei até os dezesseis anos, se não havia interesse de lá, o meu foi morrendo a medida que nunca tive a sua presença.
Na sexta-feira a noite, outra social em nossa casa, eu não deveria e nem tinha autoridade para reclamar, mas o barulho incomodavam os estudos, e algumas vezes alguns vem me chamar, fazendo-me perder o foco, dizendo que estudos também deve ter uma pausa, isso seria obvio, se fosse possível estudar com tranquilidade.
Com a chegada de Elise, a amiga mais próxima da minha mãe, acompanhou o meu nascimento e crescimento, que é como uma segunda mãe para mim, não havia alternativa, ela sempre foi especial para mim, uma segunda mãe, deixando o óculos de lado, e a tela em seguida, ouvindo as suas batidas na porta, lhe vendo adentrar em seguida o meu quarto, viro-me na cadeira sorrindo.
— Ora ora ora quem é vivo sempre aparece! — Digo-lhe sorrindo, levantando para dar-lhe um abraço.
— Ah Mavi, como você está linda! Como cresceu, meu amor. — Já havia algum tempo sem nos ver, a mulher ruiva, alta, hoje casada, me avalia após me dar um longo abraço, em que retribuo sorrindo.
— É nada tia, são seus olhos, e como você está ? — Afasto alguns travesseiros e almofadas na minha cama, além de livros, lhe chamando para sentar.
— Bem...— A mulher alta, ruiva diz pouco sorridente, enquanto os seus olhos me examinam, lentamente. — … mas me fale de você, como está aceitando as novidades? — Lena pergunta meio curiosa, avistando a cama para se sentar, sem sequer dar uma pausa, me fazendo interrogar-me quais? — Ah, não tem novidades, tia, a minha vida é essa aqui até me decidir em qual área quero atuar...
— Como não Mavi? A sua mãe grávida, não é uma novidade?— Os seus olhos verdes nos meus, me fazem piscar, meus batimentos disparam repetidamente.
— O quê? — Pergunto bestificada, sentindo a minha pressão arterial alternar, lhe vendo me encarar perdida, até perder o brilho de pela notícia, a surpresa.
— Ah, você não sabia? — Diz baixo, com tom de arrependida, olhando em volta.
Sorrio, quebrando o clima ruim. A ideia me parece tão absurda, que faço uma certa careta.
— Não, ela não está tia! — Digo, tentando convencê-la, me perguntando de onde ela poderia tirar esta ideia. Mas a ficha começa a cair, ao notar os sinais, Marcelo tem estado com muita frequência em nossa casa, a leva e a traz de todos os lugares.
A surpresa, era surpresa demais, chegando a sala encontrando a minha mãe sentada no colo do seu então namorado, bebendo uma taça de suco de laranja, enquanto todos a parabenizar o casal, eu me senti tudo, menos alguém desta família que apenas começa.
— Xande, precisamos conversar. — A voz de Clara cortou o silêncio da sala, mas eu ignorei, absorto na leitura do parecer médico à minha frente. Mais uma vez, ela estava prestes a despejar sobre mim alguma queixa sem importância, talvez mais ciúmes por causa de uma paciente. No fundo, o que importava eram os detalhes do exame do senhor Farias; sem isso, não conseguiria entender a origem das irregularidades nos batimentos dele.— Está me ouvindo? — A insistência na voz dela me fez finalmente olhar para cima. Clara estava a poucos passos, seus olhos claros fixos em mim, mas não era isso que eu queria naquele momento.— Desculpe, Clara, mas estou tentando entender esse relatório. — A frustração começou a se acumular dentro de mim.— Você sempre está "tentando entender" algo. E eu? — Ela cruzou os braços, o tom de voz agora mais elevado. — Eu sou apenas uma distração para você?Desviei o olhar, tentando me concentrar novamente no parecer. As palavras dançavam na minha mente, mas a tensão n
Eu não fazia ideia do que fazer. Observava minha mãe, deslumbrante em um vestido branco de renda, com os cabelos soltos, enquanto ela me lançava um sorriso. Nossos olhares se cruzaram por alguns minutos, mas as palavras, ou qualquer possibilidade delas, morreram em minha boca.Eu não conseguia identificar se era ciúmes ou um medo profundo do que estava acontecendo, mas ao perceber o homem atrás dela também me observando, um sentimento ainda mais intenso surgiu dentro de mim.Ela não podia fazer isso, pensei, isolando qualquer som externo que não fosse a tempestade de pensamentos na minha mente. Como uma criança assustada, simplesmente fugi, seguindo em direção ao meu quarto, sem me importar com mais ninguém. O peso da confusão e da traição parecia me esmagar, e a única coisa que eu queria era escapar daquela realidade.— Mavi, Mavi, espera! — A voz da minha mãe me alcançava, como se abafasse o som ao meu redor. Eu não a esperei. O peso dos meus sentimentos confusos era insuportável. —
— Juro que não entendo por que a sua mulher não gosta de mim. — Heitor caminhava de um lado para o outro no escritório, sua frustração evidente. Eu poderia listar as razões do desgosto da minha esposa em relação ao meu amigo, mas isso não importava agora.— Anda, Heitor, por que não diz o que realmente quer? — falei em um tom brando, observando-o puxar a cadeira à minha frente.— Problemas de novo? — Ele levantou uma sobrancelha, e eu assenti levemente. Não era nada que eu não pudesse contornar.— Meio que sim, mas vamos lá, o que te trouxe aqui? — Perguntei, tentando mudar de assunto.Heitor, impaciente como sempre, apenas moveu as sobrancelhas. — Ah, esqueci. Talvez não fosse tão importante. — Dei um meio sorriso para sua resposta. Apesar de parecer desleixado, ele não era.— O que você estava fazendo? — Estendeu a mão em direção ao parecer médico que estava à minha frente.— Tentando compreender a situação de um paciente. E você? — Ele observou o papel vagamente, antes de jogá-lo d
Meu mundo parecia desabar diante dos meus olhos. Não, era mais do que isso; as palavras dela, dizendo que eu deveria encontrar um lugar para mim, eram como um aviso de que eu não cabia mais em sua vida.— Mãe!— Eu gritei o nome que significava tudo para mim, um socorro, uma alegria; era a primeira palavra que saía da minha boca em momentos de dor, porque eu sabia que ela viria. Mas a mulher deitada na cama mostrou-se indiferente. Ela estava abalada, e eu me sentia ainda pior.— Mãe, eu... — tentei dizer, estendendo a mão para pegar a dela, numa carícia que deveria ser leve, mas que era um pedido desesperado para que ela despertasse.— É isso, Maria Vitória! — Minha mãe olhou para mim de uma forma que nunca havia feito antes. O desprezo em seus olhos me congelou por completo. — Te dou um mês para sair da minha casa.Minhas sobrancelhas se franziram em confusão. — Mas mãe, eu... — tentei explicar, mas era em vão; os olhos dela continuavam fixos em mim, gelados.— Lhe passarei a pensão
Dirigindo pela cidade, minha mente estava uma tempestade. Por que Clara havia feito aquilo? Eu não havia lhe dado o suficiente? Perguntas incapazes de serem ignoradas surgiam a cada segundo, como flechas disparadas na escuridão da minha confusão. Olhei pelo retrovisor e percebi que seu carro ainda me seguia. A sensação de que eu precisava evitar um confronto se intensificava, mas a raiva dentro de mim só crescia.De repente, alguém pulou no canteiro, e a realidade me atingiu como um soco no estômago. Paralisei ao perceber que poderia ter atropelado alguém. Desci do carro rapidamente, deixando os faróis acesos atrás de mim. Com o coração acelerado, segui em direção ao desconhecido caído no chão, que tentava se levantar, claramente atordoado.A tensão do momento me fez esquecer, por um instante, o turbilhão emocional que me consumia. O que era mais importante agora: a vida daquela pessoa ou a bagunça que minha vida se tornara?— Filho da puta, está cego? — O homem gritou com força, demo
Chegamos aos bangalôs após um check-in que parecia um sonho. A realidade ainda me parecia distante, um turbilhão de emoções se misturava dentro de mim. A paisagem ao nosso redor era um abraço acolhedor: montanhas majestosas, o ar puro e o verde vibrante por todos os lados. Era tudo tão novo, e mesmo assim, as frustrações dos últimos dias ainda pesavam no meu coração.— Droga! — exclamou Isis, quebrando o silêncio ao deixar sua mala cair com um estrondo. Ela levantou o celular acima da cabeça, como se estivesse em uma batalha contra as ondas invisíveis de sinal.— O que foi? Não pega sinal? — perguntei, sabendo que era a pergunta de praxe.— Não, não pega! — resmungou minha amiga, já se afastando para a saída.Olhei ao redor, admirando o lugar: fresco, impecável e com um aroma delicioso no ar. O bangalô tinha duas camas de solteiro, uma de cada lado, com cabeceiras de madeira que exalavam um charme rústico. As roupas de cama em seda, brilhando sob a luz suave, davam um toque romântico,