DE TODOS OS PRAZERES, na vida, a gula deveria ser considerado o maior pecado na minha. É mais um domingo à tarde sob um calor absurdo de trinta e dois graus no Rio de Janeiro, e eu estou sentada no sofá com três bolas de sorvete de morango derretendo dentro do copo, em minhas mãos. Não consigo me conter; a ideia de abrir o congelador para pegar o pote de sorvete totalmente para mim é quase irresistível.Eu poderia estar lá fora com todos os amigos da minha mãe, com um biquíni bastante chamativo mergulhando na piscina, conversando sobre a última roupa usada pela diva da moda que, infelizmente, não deve saber da nossa existência. Mas, ao invés disso, aqui estou eu, em um estado de indulgência solitária.O sorvete é minha fuga, meu pequeno segredo. Cada colherada é um prazer que não compartilho com ninguém, uma pequena rebelião contra a rotina e a expectativa social. A textura cremosa e o sabor doce e refrescante são o antídoto perfeito para o calor e a monotonia.Laura, minha mãe, havia
— Xande, precisamos conversar. — A voz de Clara cortou o silêncio da sala, mas eu ignorei, absorto na leitura do parecer médico à minha frente. Mais uma vez, ela estava prestes a despejar sobre mim alguma queixa sem importância, talvez mais ciúmes por causa de uma paciente. No fundo, o que importava eram os detalhes do exame do senhor Farias; sem isso, não conseguiria entender a origem das irregularidades nos batimentos dele.— Está me ouvindo? — A insistência na voz dela me fez finalmente olhar para cima. Clara estava a poucos passos, seus olhos claros fixos em mim, mas não era isso que eu queria naquele momento.— Desculpe, Clara, mas estou tentando entender esse relatório. — A frustração começou a se acumular dentro de mim.— Você sempre está "tentando entender" algo. E eu? — Ela cruzou os braços, o tom de voz agora mais elevado. — Eu sou apenas uma distração para você?Desviei o olhar, tentando me concentrar novamente no parecer. As palavras dançavam na minha mente, mas a tensão n
Eu não fazia ideia do que fazer. Observava minha mãe, deslumbrante em um vestido branco de renda, com os cabelos soltos, enquanto ela me lançava um sorriso. Nossos olhares se cruzaram por alguns minutos, mas as palavras, ou qualquer possibilidade delas, morreram em minha boca.Eu não conseguia identificar se era ciúmes ou um medo profundo do que estava acontecendo, mas ao perceber o homem atrás dela também me observando, um sentimento ainda mais intenso surgiu dentro de mim.Ela não podia fazer isso, pensei, isolando qualquer som externo que não fosse a tempestade de pensamentos na minha mente. Como uma criança assustada, simplesmente fugi, seguindo em direção ao meu quarto, sem me importar com mais ninguém. O peso da confusão e da traição parecia me esmagar, e a única coisa que eu queria era escapar daquela realidade.— Mavi, Mavi, espera! — A voz da minha mãe me alcançava, como se abafasse o som ao meu redor. Eu não a esperei. O peso dos meus sentimentos confusos era insuportável. —
— Juro que não entendo por que a sua mulher não gosta de mim. — Heitor caminhava de um lado para o outro no escritório, sua frustração evidente. Eu poderia listar as razões do desgosto da minha esposa em relação ao meu amigo, mas isso não importava agora.— Anda, Heitor, por que não diz o que realmente quer? — falei em um tom brando, observando-o puxar a cadeira à minha frente.— Problemas de novo? — Ele levantou uma sobrancelha, e eu assenti levemente. Não era nada que eu não pudesse contornar.— Meio que sim, mas vamos lá, o que te trouxe aqui? — Perguntei, tentando mudar de assunto.Heitor, impaciente como sempre, apenas moveu as sobrancelhas. — Ah, esqueci. Talvez não fosse tão importante. — Dei um meio sorriso para sua resposta. Apesar de parecer desleixado, ele não era.— O que você estava fazendo? — Estendeu a mão em direção ao parecer médico que estava à minha frente.— Tentando compreender a situação de um paciente. E você? — Ele observou o papel vagamente, antes de jogá-lo d
Meu mundo parecia desabar diante dos meus olhos. Não, era mais do que isso; as palavras dela, dizendo que eu deveria encontrar um lugar para mim, eram como um aviso de que eu não cabia mais em sua vida.— Mãe!— Eu gritei o nome que significava tudo para mim, um socorro, uma alegria; era a primeira palavra que saía da minha boca em momentos de dor, porque eu sabia que ela viria. Mas a mulher deitada na cama mostrou-se indiferente. Ela estava abalada, e eu me sentia ainda pior.— Mãe, eu... — tentei dizer, estendendo a mão para pegar a dela, numa carícia que deveria ser leve, mas que era um pedido desesperado para que ela despertasse.— É isso, Maria Vitória! — Minha mãe olhou para mim de uma forma que nunca havia feito antes. O desprezo em seus olhos me congelou por completo. — Te dou um mês para sair da minha casa.Minhas sobrancelhas se franziram em confusão. — Mas mãe, eu... — tentei explicar, mas era em vão; os olhos dela continuavam fixos em mim, gelados.— Lhe passarei a pensão
Dirigindo pela cidade, minha mente estava uma tempestade. Por que Clara havia feito aquilo? Eu não havia lhe dado o suficiente? Perguntas incapazes de serem ignoradas surgiam a cada segundo, como flechas disparadas na escuridão da minha confusão. Olhei pelo retrovisor e percebi que seu carro ainda me seguia. A sensação de que eu precisava evitar um confronto se intensificava, mas a raiva dentro de mim só crescia.De repente, alguém pulou no canteiro, e a realidade me atingiu como um soco no estômago. Paralisei ao perceber que poderia ter atropelado alguém. Desci do carro rapidamente, deixando os faróis acesos atrás de mim. Com o coração acelerado, segui em direção ao desconhecido caído no chão, que tentava se levantar, claramente atordoado.A tensão do momento me fez esquecer, por um instante, o turbilhão emocional que me consumia. O que era mais importante agora: a vida daquela pessoa ou a bagunça que minha vida se tornara?— Filho da puta, está cego? — O homem gritou com força, demo