Capitulo 8

Eu andava tão estressada ultimamente que precisava urgentemente sair e fazer algo novo. Foi então que vi um anúncio na entrada do condomínio sobre uma viagem para Paraty de dois dias. Pensei que seria uma ótima oportunidade para espairecer um pouco. Comprei a viagem e pedi folga do serviço. Já se passavam semanas desde o ocorrido com Miguel; nós tínhamos aprendido a nos suportar, mas ele ainda insistia em me chamar de "surda" de vez em quando, e eu fingia que não queria matá-lo.

No dia da viagem, peguei um Uber até o local onde o ônibus estaria estacionado. Tudo parecia lindo, perfeito, até que cheguei à minha poltrona.

— Só pode ser brincadeira! — disse ao ver Miguel sentado ali.

— Ah, Deus do céu, o que foi que eu fiz na vida passada? Taquei pedra na cruz, no mínimo! — ele comentou, olhando para mim com uma expressão de desespero.

— O que você está fazendo aí? — perguntei, irritada.

— Sentado. E você? — ele respondeu, sorrindo.

— Bati nele com a minha passagem, e ele riu. — Eu vou viajar, criatura de Vênus! Posso? Ou preciso da sua autorização? — O olhei com raiva.

— Eu sei, isso não me importa. Quero saber por que está sentado na minha poltrona! — ele me olhou, confuso.

— Essa é a minha! — disse, e eu bufei.

— A minha é 20, onde você está sentada! — Ele revirou os olhos.

— A minha é a 21, da janela! — Minha carranca piorou.

— Nos colocaram juntos? Sério? Eu vou matar alguém! — ele revirou os olhos novamente.

— Vai em frente, faz seu barraco. Mas eu vou ficar bem onde estou! — Eu o olhei bem no fundo dos olhos. Não ia aguentar isso por quatro horas e pouco com esse homem do meu lado. Voltei, batendo os pés até onde a moça marcava nossos nomes.

— Moça, me dá licença? — ela se virou para mim.

— Fui colocada para sentar com um moço. — Ela assentiu. — Você sabe quem colocou ele comigo? — Ela deu ombros.

— Como é seu nome? — perguntou.

— Clarisse! — disse, e ela assentiu.

— Ah... aqui tá como casal! — Eu arregalei os olhos.

— Oxe, quem diabos colocou isso? — perguntei, e ela deu ombros.

— Sei lá! — Eu a olhei com raiva.

— E essa vai ser sua resposta? — perguntei, e ela deu ombros novamente.

— Olha, tia, você pode ir com ele ou sei lá. O ônibus está lotado, e todos são casal; ninguém vai querer trocar. — “Tia”? Era só o que me faltava. Eu não ia discutir com essa besta quadrada. Dei o meu melhor sorriso e voltei.

— E aí, gritou com alguém? — perguntou Miguel, sorrindo.

Com toda a raiva do mundo, guardei minha mala.

— Vai ficar no corredor mesmo? — perguntei, e ele deu ombros.

— Sabe que tenho que ficar no corredor. — Revirei os olhos.

— Pode me dar licença? — perguntei, e ele sorriu, se levantando e me deixando sentar na janela. Contra minha vontade, me acomodei no banco. Era tudo o que eu precisava: quatro horas com o insuportável do Miguel.

**Narração do Miguel**

Deus, eu ia matá-la! Duas horas de viagem e ela já estava me irritando.

— Clarisse, pelo amor de Deus, por que você não para de mexer? — Ela se virou para mim, incomodada. Estava murmurando sobre alguma coisa, se virando no banco, tirando e colocando fones.

— Não consigo dormir! — reclamou, e eu a olhei com espanto.

— Olha, você deve ter problemas graves mentais, viu? Quem é que precisa de barulho para dormir? — Ela mordeu o lábio, e eu segui o gesto dela com o olhar.

— Eu preciso, ué! Cada um tem sua mania, me deixa com a minha! — Revirei os olhos.

— Bem, a minha mania é dormir em silêncio, então você está atrapalhando a minha! Agora coloca esse seu rock no último volume e vai dormir! — Ela me olhou emburrada.

— Não sabia que dava para ouvir! — eu a olhei sério.

— Que você é surda, isso não é novidade. Agora, sonsa, é! — Ela me bateu, e eu ri baixo. Ela acabou deixando escapar um sorriso.

— Você é um idiota, sabia? — Ela se jogou na poltrona e cobriu o rosto com o cobertor.

— Bem, sou um idiota com sono regulado, então cale a boca e vá dormir! — Ela resmungou algo, e então finalmente ficou quieta. Logo consegui pegar no sono.

Acordei de sobressalto. Merda, eu dormi pesado, e isso me deixava em alerta. Por mais que eu não estivesse fardado, não poderia dormir assim.

— Fica tranquilo, eu estava acordada — disse Clarisse ao meu lado. Eu a olhei, e ela estava sentada, olhando pela janela.

— Não tive um pesadelo — me expliquei.

— Eu sei, você acordou assustado porque dormiu pesado. Quando eu e meus irmãos viajávamos juntos, nós nos revezávamos para ficar acordados. Foi aí que adquiri a aversão a dormir em silêncio. — Ela estava comendo algo e ainda olhava atentamente para a estrada.

— Bem... seu irmão e seu pai, então, devem ser do mesmo jeito. — Ela deu ombros.

— Meu pai era — ela usou o termo "era". Então, quer dizer que ou ele se aposentou e a sua mania se aposentou junto ou ele morreu.

— Ele morreu. — Eu a olhei surpreso.

— Você é uma pessoa que deixa a pergunta bem visível no rosto. — Ela finalmente se virou para mim.

— E você é uma pessoa completamente enigmática. — Ela deu ombros.

— Só não gosto de falar sobre a minha vida. — Disse e a olhei.

— Por que? — perguntei, e ela suspirou.

— Gosta de falar sobre a sua vida? — Ela perguntou, e eu dei ombros.

— Sou o caçula, tenho duas irmãs mais velhas. A do meio é minha gêmea e é cinco minutos mais velha do que eu. Meu pai morreu quando eu tinha cinco anos, e bem, sou policial. Não há nada demais na minha vida que eu precise esconder. — Ela sorriu de modo cansado.

— Morou com três mulheres? Isso explica muita coisa! — Eu a olhei curioso.

— Explica o quê? — perguntei.

— A aversão a barulho. Mulheres, mesmo que silenciosas, são barulhentas. — Me lembrei da Nala, minha gêmea. Ela era terrível, barulhenta e escandalosa. E Lisa, por mais que eu tenha morado pouco com ela, lembro que era muito calma, mas ouvia rock nas alturas. Minha mãe? Bem, ela é tranquila e serena, mas quando se juntava com minhas irmãs ou com as amigas, sua risada ultrapassava as dimensões do tempo e espaço, de tão alta e aguda que era.

— Só prefiro o silêncio — me defendi, e ela sorriu.

— Você revelou o básico da sua vida. Isso eu não tenho problemas em revelar. Sou a mais velha de quatro irmãos. Na verdade, os outros dois são primos, mas foram criados como se fossem meus irmãos. Meu pai morreu há dois anos de infarto, e meu irmão é tenente da marinha. Meu outro irmão é engenheiro elétrico, e minha irmã é chefe de cozinha. Sou formada e enfermeira há quatro anos, e tenho pós-graduação e mestrado com honras. Viu, te dei o básico da minha vida! — Realmente, ela falou como se não fosse um enigma.

— Então por que, quando é questionada sobre isso, você é tão reclusa? — Ela sorriu de modo desdenhoso.

— Porque a minha base pode te dar curiosidade. — Neguei.

— Não acha isso? — Ela sorriu.

— Não mesmo! — Perguntou, e eu assenti, confiante.

— Posso te fazer uma pergunta básica? — Assenti novamente.

— Quantos anos você tem? — Perguntou.

— 29, faço 30 daqui a alguns meses. — Respondi, sem dificuldade, e me orgulhei disso.

— E por que um homem de quase 30 anos não é casado ou namora? — Perguntou, e eu fiquei sem reação. Um sorriso ardiloso surgiu nos lábios dela.

— Você em seguida responderia que é uma opção sua, ou que se sente melhor sozinho, ou até mesmo que tem planos, como carreira e estudo, e que um relacionamento não é de seu interesse no momento. Pode até ter um pouco de verdade, mas eu sei que é mentira. Toda pessoa na nossa idade que não tem um relacionamento ou que o evita é porque teve um passado trágico com questões amorosas, ou no mínimo desastrosas. Isso gera um bloqueio, mesmo que seja algo que você não controla. — A olhei abismado. Ela era mais inteligente do que eu pensava. Na verdade, não tinha essa visão tão lógica que ela tinha. Ela era perspicaz, com raciocínio óbvio e rápido.

— Como você tem certeza que eu não namoro ou que tenho encontros casuais? — Ela sorriu, sem se abalar.

— Moro há meses ao seu lado e nunca ouvi uma voz feminina no seu apartamento. E você está todos os dias em casa, nem se quer sai, principalmente nas quartas, que é o dia em que você chega quase correndo quando é seu plantão! — Comecei a ficar nervoso. Ela era mais observadora do que eu, e pelo jeito prestava bem atenção na minha rotina.

— Nas quartas tem futebol! — Ela sorriu de modo venenoso.

— Você não gosta de futebol, Miguel! Nas quartas é quando postam vídeo novo no canal do MasterChef, e você não perde um episódio! — Agora eu estava nervoso. Essa louca estava me espionando?

— Como sabe que eu não gosto de futebol? — Ela se sentou mais animada na cadeira.

— Era um palpite, e pelo visto acertei. Você não anda com shorts esportivos ou camisetas de time; suas roupas são básicas e não demonstram afeição por esportes! — A olhei completamente perplexo, e ela sorriu.

— Você esquece que eu sou filha de militar? Assim como você é desconfiado, eu sou o dobro! Você disse que gosta de saber como é a pessoa que mora do seu lado, e bem, eu também sou assim. — Ela era barulhenta, mas era silenciosa; era perspicaz e observadora. Ela era perigosa, e ninguém desconfiaria disso. Era genial.

— Devo admitir que estou surpreso. Você é inteligente! — Ela sorriu de lado, não de modo convencido, mas gostou do elogio.

— Essa é a intenção! — Ela se arrumou, voltando a olhar para a janela.

— Isso comprova o que eu disse: não revelo minha base porque gera perguntas sobre a duplicação da base. Por isso sou tão reservado quanto à minha vida! — Nunca tinha ficado tão preso a uma conversa como estava naquela.

— Duplicação da base! — murmurei, refletindo.

— Sim, por exemplo: por que seus primos foram criados pelo seu pai? Quando seu pai morreu? Qual sua idade? Por que não está casado? Não tem medo de ficar sozinha? — Realmente, ela tinha razão. As informações básicas geravam curiosidade, e o raciocínio tinha lógica.

— Tem medo de ficar sozinha? — perguntei de forma inconsciente, e ela se virou para mim, me olhando.

— Você tem medo? — Perguntou, de volta.

— Tenho! — Fui sincero, e ela sorriu de modo triste, suspirando enquanto olhava para a janela.

— Eu também! — Admitiu, e então ficamos em silêncio pelo resto da viagem.

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