Era a primeira vez em anos que eu dava um sorriso sincero. É estranho pensar que, por tanto tempo, eu não me permiti essa alegria. Lembro-me das brigas com minha mãe, sempre me cobrando por estar tão distante, tão fechada. Meu sorriso havia se tornado uma máscara, uma obrigação. Sinceramente, eu não me via motivada a sorrir. Um sorriso alegre, afinal, depende de um motivo alegre, não é mesmo? Mas hoje, eu tinha um motivo.
Dois anos atrás, assinei a escritura do meu apartamento e, finalmente, estava aqui, dentro dele, exatamente como sempre sonhei. No entanto, havia um buraco no meu coração, e ele parecia se abrir ainda mais quando olhava para a porta e via aquele porta-chaves que dizia: “E viveram felizes para sempre”. Eu deveria me livrar daquilo, eu sei. Mas gostava de tê-lo ali, era a última lembrança de um tempo bom, de uma época em que eu era feliz e sorria sem pensar que estava sendo obrigada a isso por educação. Lembro-me de como eu não era hostil nem antipática, apenas eu mesma.
Balancei a cabeça, tentando me livrar da frustração que me corroía a cada dia. Sabia que um dia teria que superar toda aquela dor; era fácil pensar assim, mas colocar isso em prática era outra história. Olhei para o meu aparelho de som. Poderia ativar a Alexa, mas havia dias em que nem mesmo a minha própria voz me agradava. Então, decidi ligar a playlist de rock pelo celular, e a voz do Axl Rose ecoou pelo apartamento.
Foi nesse momento que finalmente sorri de verdade. Meus olhos se fixaram na janela da sala, onde o pôr do sol se escondia atrás de uma colina próxima. As cores laranja e amarelo pintavam o céu de uma forma deslumbrante. Nunca foram minhas preferidas, já que eu ficava péssima usando roupas nessas cores, mas no céu, era simplesmente lindo! Com a música ao fundo, tudo parecia perfeito.
Respirei fundo, segurando a caneca de café com meus dedos longos, permitindo-me sentir o aroma do café. Finalmente, era só eu e a minha casa. Era uma mistura de tristeza e consolo, pois nos últimos anos, minha companhia havia sido detestável. Claro, minha família era educada o suficiente para não dizer isso na minha cara, mas eu sabia que, ao ficar em silêncio nos encontros familiares, estava fazendo um favor a todos. Eles me amavam, mas eu havia me tornado alguém difícil de lidar.
“Lar doce lar”, pensei, aumentando um pouco o volume da música. Sabia que não havia vizinhos por perto; o porteiro havia me dito que, por enquanto, eu era a única no bloco. Queria aproveitar essa pequena liberdade que finalmente conquistara.
— Miguel Galvão — repeti para o porteiro, tentando manter a paciência.
— Ah, o senhor está no bloco T, isso? — Ele parecia estar testando minha sanidade. Forcei um sorriso e assenti. Não era possível que ele não tivesse escutado isso um minuto atrás. — O senhor sabe onde vai ser seu apartamento?
— Sim, senhor, eu sei onde fica o meu apartamento — respondi, controlando a irritação. “Calma, Miguel. Você vai ver esse homem todo dia”, me repreendi mentalmente.
— Tudo bem então, é só seguir por ali e... — ele começou a me explicar o caminho. Eu já tinha ido ali umas cinco vezes, e em todas elas, ele estava lá. Jesus, era confiável deixar a portaria nas mãos de alguém tão despistado? — Veja só que desastre, avisei a senhora... como era o nome dela? Eu lembro que começava com C...
Fechei os olhos, pedindo a Deus para me livrar daquela situação. — Eu avisei semana passada que já me mudaria. Inclusive, descarreguei um caminhão de mudança ontem aqui.
— Verdade — murmurou ele, como se tentasse lembrar da informação. “Deus me leve agora!”
— Tudo bem, seu Júlio. Ela vai perceber que tem alguém do lado dela. Qualquer coisa, faço questão de me apresentar. Estou com pressa, preciso ir — disse, sem dar chance para que o velho me questionasse novamente. Acelerei a moto em direção à minha vaga, mas quando cheguei, um carro preto estava estacionado ali. Que diabos!
— Ótimo, o senil deve ter dado a vaga errada para mim! — pensei, mas não iria voltar lá apenas para perguntar qual era minha vaga certa. Esperaria a troca de turno e perguntaria para o outro porteiro, que eu esperava que não fosse tão senil quanto ele. Deus não poderia ser tão cruel assim, certo? O outro era conhecido por ser formal e educado. Eu precisava de um descanso, trabalhar e se mudar ao mesmo tempo era horrível!
Desci da moto e não pude evitar um sorriso. Agora, finalmente, teria um canto só meu. Eu tinha 30 anos e já passava da hora de sair da casa da minha mãe. Viver com três mulheres não era nada agradável. Claro, tinha que dar crédito à minha irmã mais velha, Lisa, que se mudara aos 15 anos. Mas o tempo que passei com a Nala, minha irmã gêmea, me fez entender o que era ter uma irmã insuportável. Ela sempre foi uma criatura difícil, e apesar de amá-la, Deus, Nayara era um demônio! Bagunceira e intrometida, principalmente quando se tratava da minha vida amorosa.
Balancei a cabeça, aliviado por finalmente ter meu espaço. Mas ao chegar no hall de convivência, percebi que havia agradecido a Deus cedo demais. Minha vizinha, a tal que começava com C, estava ouvindo rock a todo volume. Que inferno! Era o mesmo estilo musical que minha irmã ouvia. Respirei fundo e segui para a porta do meu apartamento. Não hoje, não ia falar com ela. Não ia culpar a vizinha pela falta de informação do porteiro. Mas daria sinais sutis de que alguém estava morando ao lado, e se ela não perceber, faria questão de me apresentar. Suportar a irmã era uma coisa, mas ter que suportar a vizinha era outra bem diferente!
Foi em um dia ensolarado, perfeito para lavar roupa, que conheci o insuportável do 201. Não costumo ser uma pessoa incomodada; na verdade, sou conhecida por meu mau humor quando estou quieta. Claro, quando estou confortável com alguém, falo horrores, pulando de assunto em assunto. E sim, herdei um defeito horrível do meu pai: ouvir som alto. Muitas vezes, não prestava atenção no que estava passando na TV; simplesmente não gostava do silêncio por muito tempo. Estranho, eu sei, mas detesto o silêncio, até mesmo à noite, quando estou prestes a dormir. Preciso de algum barulho, seja do ventilador ou da chuva.
Nesse dia, estava ouvindo minhas músicas e limpando a casa, já que tinha acabado de me mudar e logo voltaria ao trabalho. Então, ouvi um barulho na porta. Franzi o cenho. O porteiro tinha avisado que alguém havia chegado? O interfone tinha tocado e eu não ouvi? Bom, isso era bem plausível, já que o som estava alto.
Fui abrir a porta e, bem, a visão que tive foi chocante. Na minha frente, estava um homem enorme, quase dois metros de altura, com um porte atlético que basicamente tapava a entrada da porta. Seu rosto era lindo e másculo, com um maxilar quadrado e bem definido, pele limpa e levemente pálida, com uma sombra de barba que logo iria crescer. As sobrancelhas eram grossas e pretas, arqueadas, com uma falha na direita que cortava até o supercílio — seria uma cicatriz ou uma falha de nascença? Seus olhos eram negros, a primeira vez que vi alguém com aquela cor, com cílios espessos. O cabelo era curto e preto como carvão. Eu percebi que estava diante do homem mais lindo que já vi.
— Oi — a voz dele era tão grossa que as janelas pareciam tremer.
— Oi — respondi, me odiando por soá tão trêmula.
— Você, pelo jeito, não sabe, mas sou seu vizinho de parede — ele estava com uma expressão de quem não estava a fim de fazer amizades.
— Não sabia que tinha vizinhos... — comecei, mas ele me cortou.
— Eu percebi que você não sabia que tinha vizinhos, já que ouve músicas como se estivesse tocando para todos os outros blocos — trinquei o maxilar, ótimo, um insuportável. — Sem contar a TV. Eu tenho uma em casa e não preciso saber qual série está passando na N*****x, já que, como eu disse, eu tenho uma TV! E pelo que estou vendo, a sua TV fica bem próxima ao sofá. Não há necessidade de ouvi-la tão alto; a três metros de distância, dá para ouvir muito bem.
Aos céus! Ele estava me dando um sermão, e ainda nem se apresentou.
— Bom, olá, vizinho. Meu nome é Clarisse e é um prazer te conhecer também! Como eu gostaria de ter lhe informado, não sabia que tinha um vizinho, já que o porteiro me avisou que não teria ninguém. Então, realmente sinto muito pelo incômodo — ele não respondeu, apenas me encarou por alguns segundos e finalmente assentiu.
— Ótimo, Clarisse. Espero não ter que reclamar novamente sobre o barulho — ele simplesmente não se apresentou e se virou, indo para o seu apartamento. Bem, já que ele não se apresentou, ele seria o insuportável do 201!
Não tinha muitos amigos, e os poucos que eu tinha, às vezes, me faziam questionar se eram mesmo amigos. Giovanni estava rindo sem parar há uns dois minutos.— Isso nem sequer teve graça — respondi, tentando esconder meu mau humor.— Como você ainda consegue ter contato com o sexo feminino? Você é o próprio repelente de mulher! — Giovanni, meu capitão da polícia militar, sempre tinha um jeito de me cutucar. Como primeiro tenente, eu andava com ele para todo lado. O cara era o mais inteligente da turma, e não era surpresa que subisse de cargo mais rápido que qualquer um.— Como se você fosse um ímã para mulheres — retruquei, tentando manter a seriedade, mas ele sorriu de um jeito que achei divertido, mesmo que nunca fosse admitir.— E mesmo sendo gay, atraio mais que você, porque eu consigo sorrir para as mulheres — ele disse, com um brilho maroto nos olhos. Era verdade; Giovanni era simpático até demais para o meu gosto. Alto, musculoso, negro, com olhos castanhos claros, e sempre com
Eu estava exausta! Depois de um mês de férias em casa, acostumada a não fazer nada, o primeiro dia de trabalho sempre parecia o mais difícil. Estacionei meu carro na portaria e fui até o porta-malas pegar minhas coisas. Foi quando ouvi o rugido de uma moto estacionando ao lado do meu carro. Ao abaixar a porta, vi quem era. Bufei, pegando minhas coisas e decidindo passar por aquele insuportável sem cumprimentá-lo. Minha educação se recusava a entrar em prática com ele.— Ah, então foi você que pegou minha vaga! — ele disse, tirando o capacete com um sorriso que, para meu desagrado, era extremamente charmoso.— O que foi agora? — não iria ser educada com ele; ele nem se esforçou para ser gentil comigo.— Essa vaga é minha — apontou para o meu carro, como se isso fosse uma verdade universal.— Acha que eu estacionei aqui porque quis, seu espertalhão? — retruquei, tentando manter a calma.— Vindo de alguém tão sem noção quanto você, não é de se esperar menos — ele fez uma careta, e a irri
Nunca na minha vida uma mulher conseguiu me tirar tão do sério quanto aquela vizinha surda. Ela estava novamente ouvindo música alta, e eu já me pegava imaginando como seria fácil pegar o pescoço dela e enforcá-la umas cinco vezes. Era minha folga, e eu não queria me estressar com ela. Peguei meu lixo e, assim que abri a porta, vi que ela também estava saindo para colocar o lixo dela.— Olha só, se não é a minha vizinha surda! — comentei, não podendo conter o sarcasmo.Ela levantou o rosto, e a expressão que tinha ao me ver era como se eu fosse a última pessoa que ela quisesse encontrar.— Ah, sério que você está em casa? — perguntou, como se fosse uma grande surpresa.— E por que não estaria? — retruquei, já franzi o cenho.— Achei que estivesse trabalhando — disse, e sorri, tentando parecer mais relaxado.— Hoje é minha folga. E você, não trabalha? — Questionar isso pareceu mais que um desafio, especialmente porque parecia que ela sempre estava em casa quando eu estava.— Estou de f
O plantão estava um tédio absoluto. Eu já estava quase no fim da minha jornada, faltando apenas duas horas, quando ouvi o interfone.— Enfermeira Clarisse, por favor comparecer ao setor de urgência/emergência. Ótimo! Justo quando eu estou prestes a ir embora, a merda acontece. — Informar o código é bom nada! A Clarisse que lute para saber o que vai encontrar lá embaixo — um dos técnicos riu.— Estava reclamando agora mesmo que o plantão estava um tédio, chefe! — respondi, semi-cerrei os olhos.— Sorte que você é muito boa, se não estaria fazendo piadinhas lá no RH! — ele riu de novo, e até eu dei uma risada nervosa. Respirando fundo, desci para o PS, e aparentemente, tudo estava tranquilo. Fui até o enfermeiro responsável.— Qual é, Daniel? Não consegue dar conta do seu setor? — perguntei, e ele me olhou como se pudesse tacar a prancheta na minha cabeça.— O Dr. Lucas quer que você o auxilie em um código laranja na sala 5. Sabe que ele só gosta de você! — dei ombros, rindo.— Claris
— Miguel, para com isso! É uma ordem! — disse Giovanni, ainda meio grogue da anestesia.— Essa pode ser a única oportunidade que eu tenho de atormentar essa mulher sem receber um chute nas bolas — respondi, dando-lhe um sorriso malicioso.— Você está atormentando ela como se fosse um menino de 13 anos apaixonado! — ele me olhou com reprovação.Ignorei o comentário dele, e nesse momento, Clarisse apareceu na porta do quarto, com uma expressão de quem estava pronta para me matar.— Miguel, vou arrancar seus olhos! — ela realmente parecia disposta a fazer isso, mas, no fundo, meu eu demoníaco queria ver até onde ela aguentaria sem me xingar.— A TV não liga — eu disse, tentando ser casual.Ela franziu a testa para mim.— Não me acabei de estudar por quatro anos, fiz uma pós-graduação de dois anos e um mestrado de três em oncologia para vir aqui a cada cinco minutos porque você quer atormentar minha vida, Miguel! — ela estava furiosa.— Peço perdão pelo meu subordinado. Não estou em condi
Deus do céu, minha cabeça estava doendo tanto que parecia que tinha sido atropelada por um caminhão. E meu nariz? Parece que não existia mais. Finalmente, parecia que eu estava começando a recuperar os sentidos, especialmente o olfato. Fiz uma lavagem nasal só por garantia e decidi aproveitar minha folga. Estava tudo tranquilo até ouvir uma gritaria no corredor.Comecei a ignorar, pois não estava no clima de bancar a intrometida, mas então reconheci uma voz que me deixou alerta.— Senhora, abaixe a faca agora! — Merda, era o Miguel? E por que alguém estava com uma faca? Levantei do sofá e abri a porta rapidamente. No meio do hall de entrada, vi Miguel tentando acalmar uma mulher que estava com uma faca de cozinha enorme, enquanto outra mulher gritava com as duas que estavam do outro lado dele.— O que está acontecendo? — perguntei, confusa.— Clarisse, volta agora para o apartamento! — Miguel disse, sua voz firme.— O que está acontecendo? — perguntei de novo, sem entender.— Essa vag
Eu andava tão estressada ultimamente que precisava urgentemente sair e fazer algo novo. Foi então que vi um anúncio na entrada do condomínio sobre uma viagem para Paraty de dois dias. Pensei que seria uma ótima oportunidade para espairecer um pouco. Comprei a viagem e pedi folga do serviço. Já se passavam semanas desde o ocorrido com Miguel; nós tínhamos aprendido a nos suportar, mas ele ainda insistia em me chamar de "surda" de vez em quando, e eu fingia que não queria matá-lo.No dia da viagem, peguei um Uber até o local onde o ônibus estaria estacionado. Tudo parecia lindo, perfeito, até que cheguei à minha poltrona.— Só pode ser brincadeira! — disse ao ver Miguel sentado ali.— Ah, Deus do céu, o que foi que eu fiz na vida passada? Taquei pedra na cruz, no mínimo! — ele comentou, olhando para mim com uma expressão de desespero.— O que você está fazendo aí? — perguntei, irritada.— Sentado. E você? — ele respondeu, sorrindo.— Bati nele com a minha passagem, e ele riu. — Eu vou v
Consegui dar alguns cochilos durante a viagem, mas estava exausta. Chegamos em Paraty às 3:00 da manhã, e eu tinha tempo suficiente para dormir no quarto até as 7:00. Desci primeiro que Miguel, que ficou incrivelmente em silêncio o resto da viagem após nossa conversa profunda. Fui fazer o check-in no hotel enquanto ele ficou quase no final da fila.— Bom dia, moça. Clarisse Maia — disse para a atendente, que logo digitou rapidamente e assentiu.— Cadê o seu acompanhante? — perguntou ela, e eu franzi a testa.— Acompanhante? — perguntei, confusa.— Sim, aqui diz que é quarto para casal. — Olhei para ela, ainda confusa.— Moça, acho que há alguma confusão. — Ela negou com a cabeça.— Aqui está: Clarisse Maia e Miguel Galvão. — Só podia ser brincadeira.— Só pode ser brincadeira! — suspirei, sentindo a frustração subir.— Olha, se for confusão, temos um problema. Estamos em alta temporada e não temos quartos separados. — Apertei os lábios e fechei os olhos. — Posso te recomendar outros h