O primeiro livro da trilogia O Homem no Trono teve uma lista comprida de agradecimentos. Nela, expus todas as pessoas que, em minha convivência, serviram de inspiração involuntária para a criação dos principais personagens da história.
Muito tempo se passou entre a conclusão daquele e a deste. Muitos deles mudaram. Alguns para melhor, outros nem tanto, mas sem dúvida nenhum deles é mais o mesmo. Algo semelhante aconteceu aos personagens em quem foram inspirados. Estão mais maduros, mais fortes, mais cientes do tamanho da responsabilidade que é crescer e se tornar adulto.
Esta nota é um esclarecimento sobre algumas mudanças. Se o livro anterior, com suas aventuras adolescentes pontuadas por momentos de tensão, angústia e catarse podia ser considerado um livro infanto-juvenil, este cá com certeza já não pode mais se dar ao luxo de fazê-lo. Assim como os personagens, o tom da história está mais maduro, mais pesado, em especial quando mergulha nas angústias e problemas individuais dos personagens, que, assim como este livro, já não podem mais se dar ao luxo de perceber e reagir ao mundo como crianças.
Dito isto, todos os bons aspectos do volume aterior foram mantidos: uma trama atenta, complexa, mas compreensível e interessante, protagonizada pelos mesmos personagens que você, leitor (assim espero) aprendeu a amar ao longo de suas aventuras. Eles são os mesmos, apenas mais amadurecidos.
Por fim, dedico este livro a Beni, meu filho ainda não nascido. Eu realmente espero poder vê-lo crescer como tenho visto meus primogênitos de papel fazerem.
A menina se chamava Leah. Estava cabisbaixa, fitando os próprios pés enquanto desejava estar em qualquer lugar que não fosse aquele. Ao seu redor, muitas pessoas, sussurrando, vociferando, questionando e discutindo. Diante de si, estavam os homens das leis, que tinham o poder de encarcerar pessoas. Seu pretendente, Hapfah, os havia chamado para que a recapturassem, depois de ter fugido, para evitar o casamento. Seu futuro marido havia dito que a levaria para longe de sua família tão logo se casassem. Leah tinha treze anos e era habitante de um pequeno povoado instalado à beira de um poço nas proximidades de Zefanya. Hapfah era um mercador de cristais, dezesseis anos mais velho, cujo negócio exigia viagens constantes. O que assustava Leah a ponto dela fugir de seu futuro marido não era sua aparência ou modos, mas sim o fato de não querer ver-se longe de seus pais, irmãos e irmãs. Sua fuga, porém, havia causado um problema enorme. Nos povoados, era muito comum
Madrugada. O silêncio era interrompido pelo estalo oco dos passos despreocupados que cruzavam os corredores fracamente iluminados da ala feminina na ordem dos Armígeros. Os pássaros que cantarolavam o nascer do sol ainda não haviam começado o seu ofício, e a maioria das jovens que ocupava os aposentos atrás das sólidas portas de madeira dormia. Mesmo que a pessoa transitando por aqueles corredores fosse um ordenado, era bastante incomum que um homem caminhasse por aquela ala antes que as trombetas ruidosas anunciassem o toque de despertar e dessem por iniciadas as agitadas rotinas naquele edifício. Se ele fosse um adolescente, como os rapazes em treinamento, com certeza seria advertido, se pego, e passaria o restante do dia em alguma tarefa bastante desagradável, como limpar as latrinas ou descascar batatas na cozinha. O deambulante conhecera bem essas funções, já que tivera, em sua própria juventude, o hábito de se encontrar com algumas das
Sem dúvida, aquele era seu dia de sorte. Se havia alguma coisa pior que a dor, com certeza era a sensação de perder um membro. Justamente aquele desespero que dominava todos os pensamentos, quando se percebia o braço que deveria segurar a arma transformado em um toco sangrento. Ou quando se estava correndo, e depois de um tropeço no meio do caminho, levava a mão ao calcanhar para verificar o tamanho do estrago e sentia a ponta do osso da perna, estilhaçado, e separado do pé por uma armadilha terrestre diabolicamente plantada no meio de um arbusto inofensivo. Não que houvesse isso de arbustos inofensivos na linha de frente. Nem arbustos, nem árvores, nem cadáveres inofensivos. Nem nos companheiros mortos era possível confiar. Já vira acontecer do seu lado. O sujeito parava de correr, encostava-se em uma árvore perto de um cadáver qualquer, estropiado. Na primeira semana, um cadáver era sempre
O paredão se erguia dez metros, cheio de concavidades e reentrâncias, como uma muralha de rocha sólida da qual brotavam inúmeros pequenos cristais de diversas cores. Dividindo-o ao meio, a queda d’água fazia um barulho ensurdecedor, que ecoava nas paredes e tornava quase impossível qualquer conversa que não fosse composta de palavras simples, curtas e gritadas. O riacho que ela abastecia era largo e raso, de água gelada e revigorante. Em seu fundo, assim como nas paredes, havia uma enorme variedade de cristais, cintilando à luz das tochas na superfície. Toda aquela maravilha estava alojada dentro de uma caverna enorme, como um grande domo subterrâneo. Aquele era o antigo marco divisório entre o território de Migdala e Neemya, no que dizia respeito à posse das cavernas.
Veridane ofegava. Seus olhos castanhos tinham as pupilas dilatadas, tentando absorver o máximo possível da luz no escuro. Ao seu lado, no chão, uma vela grossa já quase na metade banhava o lugar enorme com uma tênue claridade alaranjada, que enfraquecia conforme se afastava da chama, até ser engolida pelo total negrume. Um par de mãos, firmes, segurava seu rosto com delicadeza. Ela sentia um pequeno arrepio sempre que as pontas dos dedos roçavam de leve em sua nuca, ou quando os polegares massageavam as maçãs do rosto, em movimentos circulares e suaves. Apesar de não ter sono, uma dormência gostosa se apoderara de seu corpo, levando-a a pensar cada vez menos no que estava fazendo. Porém, algo no fundo de sua mente lembrava-lhe que, se a encontrassem ali, depois do toque de recolher e sozinha co
Sob o sol escaldante do oriente agnumiano, o céu absolutamente azul, limpo de nuvens, contrasta com o que quer que se erga acima do oceano dourado de areia soprada pelo vento. As torres da antiquíssima cidade de Manancial, agora Yahudah. As caravanas em direção ao horizonte. As tamareiras do oásis. E a flecha de ponta côncava, lançada em linha reta. O saco atingido pelo projétil explodiu a menos de um metro da cabeça de Iadah, espalhando areia e serragem. Abaixada e alarmada, ela seguiu, sorrateira, protegida pela barricada. Empunhava um arco curto, feito de osso e couro endurecido, que lhe conferiam extrema flexibilidade e o dobro do alcance de uma arma idêntica feita de madeira – uma engenhosíssima peça fabricada muito além da Savana Vermelha, pelos bárbaros nômades que habitavam nas fronteiras de Hamode. Custara uma pequena fortuna trazê-la de além do deserto – mas para enfrentar alguém tão obstinado a ven
Uzias e Deena seguiam pela estrada, cada qual montado em um robusto cavalo de viagem, tentando lembrar o caminho até o Templo do Imanente – a maior construção do tipo em toda a Agnum. Haviam chegado às imediações de Migdala três dias antes, mas passaram todo o tempo em Tsione, levando mensagens de Levana aos sacerdotes e eruditos locais, só descendo agora em função da liturgia que precedia o Rito do Renascimento. De acordo com Levana, o rito era uma mais uma formalidade que uma necessidade. Segundo contava-se, apenas ordenados que uma vez na vida houvessem submergido no lago interior da Caverna da Origem seriam capazes de operar o Dom – uma tolice, já que a história de Agnum, e mais remotamente, de Vellum, estava cheia de casos em que pessoas operavam teurgias antes mesmo de instituírem a caverna. Fossem quais fossem as razões do rito, Uzias estava muito
Intimidades– O que está fazendo aqui, Adameire? – Absalon tornou a perguntar, novamente sem resposta.Ela não respondia. Estava sentada, meio largada na poltrona do quarto, com a cabeça levemente inclinada sobre o ombro esquerdo. Absalon precisou se aproximar um pouco mais para perceber a razão do silêncio: ela estava inconsciente.Seu coração disparou. Antes de tocar no corpo, olhou ao redor e procurou por sinais de combate. Se a haviam assassinado ali, com certeza a intenção era incriminá-lo. Pensou imediatamente em Aminadave, Aryah e Acaiah. Aquilo seria uma tragédia.O quarto estava exatamente como ele o havia deixado, com exceção de um detalhe muito importante: estava limpo e organizado. Os lençóis haviam sido trocados, os utensílios pessoais e livros estavam todos ordenados nas prateleiras e, na mesinha de madeira