Madrugada. O silêncio era interrompido pelo estalo oco dos passos despreocupados que cruzavam os corredores fracamente iluminados da ala feminina na ordem dos Armígeros. Os pássaros que cantarolavam o nascer do sol ainda não haviam começado o seu ofício, e a maioria das jovens que ocupava os aposentos atrás das sólidas portas de madeira dormia. Mesmo que a pessoa transitando por aqueles corredores fosse um ordenado, era bastante incomum que um homem caminhasse por aquela ala antes que as trombetas ruidosas anunciassem o toque de despertar e dessem por iniciadas as agitadas rotinas naquele edifício. Se ele fosse um adolescente, como os rapazes em treinamento, com certeza seria advertido, se pego, e passaria o restante do dia em alguma tarefa bastante desagradável, como limpar as latrinas ou descascar batatas na cozinha. O deambulante conhecera bem essas funções, já que tivera, em sua própria juventude, o hábito de se encontrar com algumas das moças mais afoitas fora do horário de circulação, e o mau hábito de ser pego em flagrante tentando voltar para a ala masculina quase sempre pouco depois de darem por sua falta. Hoje, porém, era um Mestre – e entre outros privilégios a que tinha acesso estava o de perambular por onde quisesse independente do horário.
Chegou diante da porta que procurava e inseriu a chave na fechadura. Com o máximo de cuidado para não fazer barulho a abriu, embora soubesse – a jovem que ocupava o quarto não acordaria ainda que um tremor de terra sacudisse a sede da ordem e abrisse o chão em dois.
O quarto era um espaço pequeno, onde uma estante e uma escrivaninha dividia espaço com a cama. Espalhados por todo lugar havia pergaminhos, livros de alquimia e frascos de vidro vazios. O baú nos fundos do aposento estava aberto, desorganizado, e as roupas saltavam para fora.
Na cama, a ocupante do aposento dormia. Era uma jovem belíssima, de cabelos ruivos, compridos e lisos. Seu sono profundo, tranquilo e imperturbável, debaixo dos cobertores assentados sobre o corpo. O homem acariciou seu rosto suavemente, admirando-se, pela enésima vez, mas não a última, com a enorme semelhança existente entre a jovem e sua mãe.
Aminadave achou melhor organizar um pouco aquela bagunça antes de acordar a filha, porque sabia que ela não o permitiria fazê-lo uma vez desperta e tampouco faria por conta própria.
Enquanto começava a catar os livros, os frascos, e com algum constrangimento, as roupas espalhadas pelo chão do quarto, ele pensava no quanto Aryah desaprovaria essa atitude. Ele quase podia ouvir a voz da esposa em seus ouvidos: “Que tipo de responsabilidade Adameire vai desenvolver se nem o próprio quarto ela organiza?” Era o que com certeza diria. Em situações normais, concordaria totalmente com aquele tipo de objeção. Mas no caso de Adameire, um pouco de desordem era justificável. Ela se esforçava demais.
Quando um adolescente ingressava em uma das ordens, ele tinha logo de início uma decisão importante a tomar. Cada ordem oferecia uma gama ampla de especializações nas quais os iniciados podiam tentar se desenvolver, mas o treinamento em cada era muito específico, as vagas eram sujeitas à disponibilidade de Mestres dispostos a lecionar as disciplinas e as lições demandavam muito tempo, estudo e dedicação, de forma que era impossível para um aprendiz gozar de todas as possibilidades existentes.
Cada jovem deveria se inscrever em, no mínimo, uma das disciplinas oferecidas pela ordem em que ingressara. O normal era que se inscrevesse em duas, que seriam estudadas ao longo dos quatro anos de formação básica – uma disciplina nos dois primeiros anos, e uma disciplina nos dois últimos. Assim, cada ordenado recém-formado deveria ser especialista em dois ramos diferentes de atuação.
Adameire não.
Ela havia se inscrito em três disciplinas, além continuar frequentando todos os treinos de exercício e combate, obrigatórios no primeiro ano de treinamento e optativos a partir do segundo. Além disso, recebia instruções extras em elementalismo e mentalismo, e quando sobrava algum tempo, ajudava novatos com problemas, substituía professores e monitorava detenções (estranhamente, desde que ela havia começado a vigiar os detidos, o número de infratores entre os novatos cresceu consideravelmente) para poder ganhar créditos extras e gastá-los em aulas fora das disciplinas nas quais estava inscrita. O estado avançado de entropia nos seus aposentos era um dos efeitos colaterais da rotina.
Apesar de preocupado, Aminadave sentia-se muito orgulhoso. Quando a viu, aos doze anos e com os olhos brilhando, se encantar com a lista de competências oferecidas pela ordem, temeu que ela não fosse dar conta de todos os afazeres. Muito pelo contrário. Adameire não era conhecida apenas por ser a atarefada filha do melhor forjador da ordem. Era conhecida por ser extremamente competente. Dedicava o máximo esforço em tudo o que fazia, e não se dava por satisfeita até atingir o resultado esperado.
A primeira das disciplinas em que Adameire havia se inscrito era, obviamente, a forja de armas. Junto à nova convocação de Aminadave veio a responsabilidade de assumir a disciplina, e muitos jovens ordenados se entusiasmaram diante da possibilidade de aprender com um forjador famoso. Ele mostrou-se um professor dedicado, paciente e muito atencioso, conquistando o respeito dos rapazes e alguns suspiros das poucas moças que se aventuravam pelo mundo sujo, quente e barulhento das oficinas de forja. Já então Adameire se destacava, e ainda que aprendesse diretamente com seu pai, o único benefício obtido desse parentesco era a possibilidade de ter orientação extra quando os horários de ambos permitiam. Aminadave já não sabia quantas noites havia inspecionado a filha, em cujas mãos as luvas de proteção pareciam manoplas e o martelo de ofício assemelhava-se a um de combate, avaliando meticulosamente cada ranhura, padrão e desalinho nas peças que fabricava.
A segunda especialização que Adameire adquiriu se deu na área de ciências alquímicas. Originalmente, seu objetivo era melhorar a forja através da alquimia, testando novos e complicados métodos de fundição. Esperta, muito bonita e muito aplicada, conquistou rapidamente a atenção dos professores, que concordavam contentes em lhe indicar e emprestar todo tipo de livros exóticos, alguns vindos do oriente distante, contendo os mais variados processos de alquimia. Adameire aprendeu a envenenar armas, fabricar antídotos, misturar materiais novos para fortalecer o aço, criar dezenas de tipos diferentes de poções e transmutar elementos através da química. Foi justamente nessa época que, pressionada pela grande quantidade de afazeres e obrigações, começou a utilizar, escondida de seu pai e dos seus professores, poções de soldado fabricadas por ela mesma, que mesmo diluídas ainda causavam diversos efeitos colaterais.
Aminadave, claro, não era estúpido. Quando adolescente, havia passado por algumas situações muito embaraçosas graças a acidentes com poções fabricadas no próprio quarto, as quais ele esperava ajudarem-no em algumas questões que considerava de absoluta importância, como pelos no queixo, engrossamento da voz e ganho de peso. Ele tinha experiência suficiente com químicos artesanais para deixar de identificar um usuário crônico – e por mais que a filha fosse dezenas de vezes mais competente do que ele era quando tinha a mesma idade, não podia esconder a perda contínua de peso, o aumento voraz no apetite e as olheiras decorrentes da insônia prolongada.
A solução que o pai encontrou para convencê-la a parar de beber as poções sem ter de proibi-la (ele sabia por experiência própria que adolescentes nunca obedecem a proibições) foi conseguir para ela aulas particulares de mentalismo com um de seus colegas. Graças a isso Adameire desenvolveu o que ela considerava a maior habilidade aprendida até então.
Graças ao seu mentalismo da mente, Adameire era capaz de passar até setenta e duas horas seguidas acordada, em plena atividade, sem nenhum prejuízo à sua atenção ou capacidade de raciocínio. Depois do período, dado o estresse mental que a atividade causava, ela precisava de vinte e quatro horas de sono ininterrupto antes de fazer novo uso dessa habilidade.
Conseguiu, junto aos professores, permissão para ter uma rotina especial de estudos, adequando seu novo ritmo de sono. Essa mudança causou alguns inconvenientes – ela precisava assistir às aulas em dias e horários às vezes desencontrados, participando das turmas que surgissem oportunamente. Era comum, por exemplo, vê-la nos treinos físicos horas depois do toque de recolher, junto aos ordenados já formados, que já a tratavam como uma espécie de mascote do batalhão. Os escudeiros e os novatos a chamavam de “estudante emboscada”, porque nunca era possível prever em que aula ou turma Adameire estaria presente, junto com os estudantes regulares.
No entanto, a nova condição foi fundamental para que ela resolvesse se inscrever em uma terceira disciplina. Tantas horas seguidas de atividade lhe permitiam estudar, concluir as tarefas pendentes, fazer experimentos, usar os laboratórios sozinha (naturalmente, havia conseguido permissão para usar as instalações da ordem à noite, desde que se mantivesse longe da ala masculina dos dormitórios) e conseguir aulas extras com os professores que aceitavam recebê-la madrugada adentro.
Inscreveu-se em engenharia de guerra, e na mesma época conseguiu convencer seu pai a ensiná-la o elementalismo do fogo, a última fronteira entre seus projetos ambiciosos e a forja perfeita. A maior vantagem de Aminadave em relação a um forjador comum era a capacidade de superaquecer as mãos em poucos instantes, podendo trabalhar o aço como faria um artesão moldando argila, ao invés de martelá-lo depois de aquecido em fornos como usualmente fariam seus companheiros de ofício. Os detalhes do processo eram um segredo que ele guardava com muita diligência, e apenas quando percebeu na filha a capacidade de manter a boca fechada (algo que ela não tinha aos doze anos) resolveu ensiná-la. E mesmo aprendendo, simultaneamente, alquimia, forja, engenharia bélica, mentalismo da mente e elementalismo do fogo, ela ainda conseguia manter seu desempenho sempre acima do ótimo. Nas cartas, a mãe exprimia todo o seu orgulho ao saber do desempenho da filha.
Notando um volume singular, largado ao chão, Aminadave parou de repor as coisas da filha em seus lugares.
Era um livro grosso, com capa de couro, sem nenhum título. Estava fechado por uma abotoadura. Por um instante, sentiu receio em abri-lo, como se estivesse diante de algo íntimo, ou proibido. Então lembrou-se imediatamente de que era o pai dela, e que, sendo a filha solteira, lhe cabia o direito de saber o que andava estudando ou escrevendo.
Abriu o livro. Como ele imaginava, mais da metade dele estava preenchido à tinta de pena, na caligrafia minúscula de Adameire. Antes que pudesse ler algo do conteúdo, no entanto, um pedaço de papel dobrado caiu do interior, pousando entre seus pés. Ele pegou o papel e desdobrou. Antes de ver o que era, depositou o livro em uma mesa próxima, tomando o cuidado de deixá-lo aberto na página de onde o papel caíra.
Era um desenho. Na verdade um projeto. E ele o conhecia muito bem, porque afinal, era originalmente seu. Uma espada longa, de lâmina finamente temperada em uma liga única de aço, âmbar e diamante. Aminadave só havia forjado uma espada a partir daquele projeto.
Ao redor do desenho detalhadamente copiado do original, havia inúmeras anotações, fórmulas e lembretes. Aparentemente, a filha estava tentando melhorar o projeto. Lidar com o ultraje da ideia exigiu bastante disciplina mental por parte de Aminadave. As ideias que Adameire tinha eram criativas, mas estavam ainda anos distante da perícia necessária para igualar o tipo de técnica que fabricara aquela espada.
Entretanto, o problema com aqueles aprimoramentos não era a ousadia, qualidade que Aminadave, em geral, valorizava. Era o motivo. Já havia conversado exaustivamente com a filha sobre aquele problema – mas enfim, ela era uma adolescente, e ele já devia saber àquela altura que adolescentes não ouviam. Simplesmente não ouviam.
Tornou a dobrar o papel e colocá-lo no lugar de onde caíra. Antes de fechar o livro, porém, resolveu ler o que estava escrito na página marcada:
“Como fundir materiais tão diferentes como aço, âmbar e diamante? O projeto é claro, mas parece faltar alguma parte muito importante do processo, que faz toda diferença. Isso não pode ser uma forja química, é impossível através de todos os métodos que eu conheço. Tudo seria mais fácil se eu pudesse perguntar ao papai, mas ele com certeza vai querer saber qual a origem da minha dúvida, e se ele souber que estou estudando essa espada, vai entender na hora o motivo, e aí teremos outra loooonga conversa. Que raiva! Eu não acredito que um homem preso por deserção na tentativa de salvar a mulher que ama tenha a cara de pau de me dizer que posso simplesmente esquecer um amor e escolher outro. As coisas do coração não são assim.”
Então era nisso que ela pensava. Aminadave não sabia o que mais o incomodava: se era sua filha adolescente comparando uma paixonite boba com o grande e profundo amor que ele tinha pela esposa, ou se era o fato dela se referir a ele como “um homem”.
Folheou várias páginas do livro, recuando do meio para mais próximo do começo, e escolheu um texto aleatório:
“Eu tive um sonho bom, hoje, mas que começou muito ruim. Eu estava no baile, o mesmo baile de sempre. E de repente Uzias se transformava naquele monstro enorme, feito de fumaça, como das outras vezes. Eu corria, mas não conseguia sair do lugar, e a mão enorme vinha cada vez mais perto de mim, só que dessa vez a mão não me agarrou, e eu não acordei sufocada. Dessa vez foi diferente. Um braço forte me puxou, me sentou em um cavalo e começou a cavalgar, para longe, me levando junto. Eu estava sentada na frente, e o dono do braço que me puxou estava me protegendo com o corpo, enquanto íamos cada vez mais longe. E de repente eu não tinha mais medo. Ele era caloroso, forte, e eu me sentia totalmente protegida em seus braços. Eu não conseguia ver o rosto dele, apesar de ter certeza que era...”
Tudo bem, ele estava com ciúmes. Admitir isso não era problema, ele era um pai zeloso e cuidadoso. Porém, mais perturbador que isso era sua filhinha, que deveria ter catorze anos quando escreveu aquilo, fantasiando sobre um homem montado em um cavalo e carregando-a para sabe-se-lá-onde. Especialmente porque ele sabia de que homem ela estava falando. Desde quando ela pensava nessas coisas? Folheou mais um pouco atrás, até perto do começo:
“Todos dizem que eu vou ficar mais parecida com a mamãe quando crescer mais. Só que agora, diante do espelho, não me pareço nem um pouco com ela. Tá, meu rosto parece um pouco, e eu tenho o mesmo nariz fino e meio pontudo. E meus cabelos são lisos como os dela, ou como os do papai, se ele os deixasse crescer. Mas meu corpo continua tão magro quanto o de um menino, eu acho. Será que ela era assim também, quando tinha a minha idade? Se bem que, se eu virar de lado e olhar contra a luz, já dá pra ver, bem pequenininhos, os...”
Aminadave fechou o livro bruscamente, constrangido até a raiz dos cabelos. Falar daquelas coisas com Acaiah era totalmente diferente de vê-las escritas na letra de Adameire. Melhor parar ali. Não queria, realmente não queria saber o que mais tinha naquelas anotações. Antes de fechar a abotoadura, no entanto, tirou de dentro o papel contendo o projeto da espada e guardou no bolso.
Adameire terminava de pôr, pela cabeça, o vestido dos dias de folga, e se olhava no espelho enquanto tentava desembaraçar alguns dos pequenos nós que se formavam em seus cabelos. Havia dormido as últimas vinte e quatro horas sem nenhuma interrupção, exatamente como era esperado. Um sono pesado, sem sonhos, e virtualmente imperturbável.
O pai a havia acordado poucos minutos atrás. Ela o pedia para despertá-la cedo quando seu dia de sono era sucedido pelo dia de descanso – ocasião em que todos os Mestres na ordem suspendiam as aulas, e os laboratórios eram fechados para manutenção. Normalmente, quem a acordava era Medena, a garota do quarto vizinho, mas nos dias de descanso todas as escudeiras acordavam mais tarde, e Adameire tinha muito que fazer para esperar.
Antes de resolver qualquer assunto, era importante comer alguma coisa. Um dia de sono era equivalente a três refeições perdidas, e isso era suficiente para deixá-la esfaimada. O mentalismo da mente requeria dez minutos de concentração intensa para ser executado, mas uma vez ativo, podia ser facilmente mantido. Porém, para compensar o sono ausente, seu corpo exigia quase o triplo de comida que consumiria habitualmente, e os seus pratos pantagruélicos eram a razão para que nunca fizesse as refeições no mesmo horário que as outras garotas.
Para compensar as refeições absurdas, Adameire praticava todas as modalidades na rotina de exercícios seguida pelos veteranos, sem descanso, nos últimos quatro anos. Três horas diárias de corrida, exercícios de força, agachamentos e escaladas lhe garantiram um desempenho físico exemplar. A adolescente que via diante do espelho era alta, robusta e saudável. Mais importante que isso – era forte. Adameire superava barbaramente as colegas e se igualava ombro-a-ombro com a maioria dos rapazes de sua idade, e mesmo alguns dos veteranos pensavam duas vezes antes de competir inocentemente contra ela e arriscar ser chacota entre os companheiros de batalhão. Na última vez que vira sua mãe, e isso fazia um ano, ouvira dela dezenas de elogios à sua rotina e aos seus resultados.
Música para os ouvidos.
Desistindo de desembaraçar alguns dos nós mais insistentes, ela amarrou os longos cabelos em um rabo-de-cavalo, calçou as botas de caminhada e seguiu para o escritório do pai. Tomaria a primeira refeição em sua companhia.
Os corredores da Ordem dos Armígeros eram amplos, bonitos e decorados com armaduras, que iam do modelo tradicional ao extremamente exótico – esse era o destino dos melhores projetos criados por escudeiros. Adameire tinha dois projetos seus adornando nada menos que a sala do Ancião. O Próprio Raziekel encomendara um exemplar de espada longa que ela havia projetado como um presente para seu irmão.
Depois de atravessar a ala feminina dos dormitórios, o pátio dos alojamentos e pegar um atalho pela sala de exposições (que exibia os projetos dos últimos formados), chegou ao corredor dos gabinetes docentes.
Apesar de morarem em Nedavya, ela e o pai raramente iam para casa. A sede da ordem lhes concedia tudo o que precisavam, e era mais cômodo resolver tudo atravessando corredores que bairros. Por causa da rotina corrida, o pai havia fechado a forja por tempo indeterminado, apesar de ter aberto exceções especiais nos últimos anos – o que triplicou o preço das peças vendidas.
Ao chegar, bateu na porta três vezes com os nós dos dedos e entrou.
A sala que o pai ocupava era pequena, como costumavam ser as salas dos Mestres, mas era arejada, limpa e muito organizada. A escrivaninha havia sido afastada para um canto, e no lugar dela uma mesa de tamanho médio estava ocupada com uma fenomenal quantidade de comida. Sentado por trás dela estava Aminadave, que já havia começado a refeição. Diante dele, do outro lado da mesa, havia uma cadeira vazia. Adameire não se fez de rogada.
Os primeiros minutos à mesa foram seguidos pela mastigação voraz da adolescente que tentava apaziguar os ânimos de um organismo que não via comida havia um dia inteiro. Quando a maior parte do conteúdo havia desaparecido dos pratos, travessas e jarras, o pai repousou os talheres, apesar da filha ainda prosseguir comendo como se não houvesse amanhã.
– O que vai fazer hoje ao entardecer, Adameire? – Aminadave perguntou, em tom gentil.
– Vou vigiar a detenção. – Ela respondeu, entre uma e outra colherada. – O senhor sabe, os novatos. Créditos extras. Preciso de mais alguns para continuar com as lições de escultura.
Apesar da ampla gama de disciplinas a serem estudadas, os escudeiros podiam escolher aprender conteúdos extras, ensinados em oficinas ou escolas que compartilhassem de uma parceria com a ordem. Para tanto, eles deveriam adquirir créditos extras, prestando serviços à escola. Uma vez que Adameire estava tentando aprender a forjar com as próprias mãos, usando elementalismo do fogo, aprender a esculpir lhe pareceu fundamental.
– Eu preciso que me faça um favor, nesse horário. – Aminadave pediu. – Eu lhe cederei os créditos, evidentemente.
– Tudo bem, pai. Qual o favor?
Por um segundo, Adameire não entendeu o tom do pai, distraída como estava em encher o estômago. Entretanto, assim que percebeu do que se tratava, seu semblante mudou.
– Não, pai. – Ela suplicou. – Por favor, de novo não.
– Você conhece Deão, filho do Guardião Silone? – O pai ignorou a súplica.
– Não, não conheço. – Adameire respondeu, sentindo o ânimo escorregar para os pés. – Ele é escudeiro de algum mestre?
– Não, querida. Deão se formou faz dois anos. Estava servindo em Zuria, e voltou para cá semana passada. Vai ficar aqui mais três semanas, antes de voltar ao serviço.
– Que legal, pai. – Adameire, disse, por falta de coisa melhor para falar. – O Guardião Silone deve estar muito contente. Aposto que as meninas devem estar doidas para conhecê-lo.
– Ficaram, um pouco. Deão é um rapaz muito atraente, e é famoso por ter um desempenho excelente, assim como você. Vocês dois poderiam se...
– Talvez eu esbarre nele, quando estiver a caminho de alguma aula. – Adameire o interrompeu. – O senhor sabe, o prédio da ordem é pequeno.
– Silone veio falar comigo ontem à noite, Adameire. – Aminadave deixou os rodeios. – Ele ficaria muito honrado se você pudesse reservar um pouco da sua tarde hoje e dar atenção ao seu filho. Duas horas seriam suficientes.
– Duas horas é mais da metade do tempo que eu levo no treino físico, pai. Eu aceito recebê-lo por meia hora.
– Minha filha, qual é o problema em recebê-lo? – Aminadave levantou de sua cadeira, com o mesmo tom de voz que usava todas as vezes que tentava convencer a filha a receber um pretendente. Adameire revirou os olhos. Lá vamos nós de novo.
Desde os treze anos até o dia presente, Adameire recebera nada menos que vinte e seis propostas formais de casamento. Normalmente, os pais dos jovens iam à Aminadave, explicavam as intenções dos filhos e ambos marcavam um horário para que os jovens pudessem conversar a sós e se conhecer um pouco.
Adameire, no entanto, estava muito à frente do pai no que dizia respeito a evitar os embaraçosos, demorados e tediosos encontros de cortejo. Ela já havia feito de tudo: manipulava os horários de sono ou estudo para estar sempre ocupada e assim obrigar o pretendente a remarcar tantas vezes que desistisse, pagava a novatos para que atrapalhassem os encontros e, quando tudo o mais falhava, fugia e se escondia, até que parassem de procurá-la. Até já havia vomitado em um pretendente uma vez.
Ainda assim, de tempos em tempos ela falhava em evitar o encontro e precisava receber um ou outro rapaz. Alguns eram muito persistentes, ou criativos, como o novato de doze anos que aproveitou a detenção para pedi-la em casamento de repente, no começo do ano. Ela os classificava em três grupos: os arrogantes, os desinteressantes, e os fracos. Em geral, os arrogantes eram fortes, bonitos e confiantes, mas passavam tanto tempo falando de si mesmos que ela mal conseguia ouvi-los por uma hora, quem dirá a vida toda. Os desinteressantes eram em geral muito inteligentes, e conseguiam entretê-la por algum tempo, mas eram... ela não sabia definir exatamente o que faltava, mas faltava alguma coisa. Eram chatos. Cansativos. Os fracos até podiam ser interessantes, e alguns muito bonitos, mas, honestamente, ela não tinha nenhuma paciência para ficar lidando com complexos de inferioridade, e a maioria deles os tinha. Ela não ia se matar de estudar nos últimos quatro anos para acabar casada com um homem que a limitasse.
– O problema é que eu não quero me casar, papai. – Adameire respondeu. – Com ninguém. Eu estou em um momento muito importante na minha vida, e preciso...
Ela parou de falar porque o pai lançou sobre a mesa um pedaço de papel dobrado. Ela o recolheu, apreensiva, e o desdobrou.
– Então eu suponho – ele disse – que todo esse seu interesse na forja de âmbar e diamante seja puramente acadêmico, não é?
Adameire congelou. Ele havia lido o diário.
Como era de se esperar, uma rotina tão exaustiva não deixava a Adameire tempo para cultivar longas e íntimas amizades. Mesmo Gidon, com quem desenvolvera uma camaradagem genuína, havia se afastado um pouco depois de ter seu pedido de casamento delicadamente negado. Ele, aliás, foi o único pretendente que ela aceitou de bom grado receber, apesar de não pretender desposá-lo.
A ausência de amigos a levou a escrever o diário, para o qual contava tudo o que desejava, pensava ou incomodava. Ainda era um substituto muito ruim para uma pessoa de carne e osso, mas desde o dia em que ingressara na ordem, decidiu que suportaria os sacrifícios necessários. O diário era seu alívio para a solidão, para a tensão e para a tristeza, quando ela vinha. Ali havia muitas coisas sobre ela que mais ninguém sabia.
– O senhor leu meu diário?! – Ela perguntou, irritada e temerosa. – O senhor não tinha o direito! É a minha intimidade, papai! Eu...
– Sente-se, Adameire. – A voz do pai estava baixa, mas era clara e firme.
Ela se deu conta de que no nervosismo, havia levantado da cadeira sem perceber. Sentou-se de volta, ainda de cara amarrada. O pai continuou:
– Eu não o li. Estava organizando seu quarto, e o vi em um canto, com esse pedaço de papel saltando para fora das páginas.
– É um dos seus projetos. Eu o copiei do seu arquivo, lá em casa. Eu só estava imaginando se ele não podia ser... melhorado.
– E é claro que você não faz ideia de quem é o dono dessa espada, não é? – Aminadave perguntou, transbordando ironia.
– O senhor forjou? – Ela perguntou, fingindo horrivelmente mal que não sabia de nada. – Já que ela existe, se eu pudesse vê-la...
O pai apoiou os cotovelos na mesa, e o rosto nas palmas das mãos. Parecia muito cansado. Adameire achou melhor não continuar falando.
– Nós estamos voltando a esse assunto já faz quatro anos, Adameire. – Aminadave retomou, com a voz carregada de frustração. – E você insiste nessa ideia. Absalon é doze anos mais velho que você. Vocês estão em etapas totalmente diferentes da vida.
– E daí, papai? – Adameire retrucou. – Que diferença faz ele ser um pouco mais velho? Pelo menos ele não é imbecil como os meninos da minha idade.
– Você está no melhor lugar que existe para conseguir um bom marido. Mas está desperdiçando todas as suas chances por causa de uma paixão de criança!
– Não é uma paixão de criança! – Adameire vociferou, muito ofendida. – Eu o amo! O amo desde que tinha doze anos! Desde que ele salvou minha vida! O senhor sabe do que eu estou falando! Com o senhor e a mamãe aconteceu da mesma forma!
– Não compare situações tão diferentes por umas poucas semelhanças. – Eu tinha anos de relacionamento com a sua mãe antes de decidir pôr em risco todo o meu futuro na tentativa de ajuda-la! O que você sabe sobre Absalon? E, aliás, o que ele sabe a seu respeito? Você fica jogando seu futuro fora por causa de um homem que não apenas não está interessado em você, como sequer faz ideia de suas intenções para com ele!
Aminadave parou de falar quando percebeu que estava quase gritando. Mas essa não foi a única razão. Olhou para a filha e ela estava com a expressão contraída de quem está prestes a desabar no choro.
– O senhor... o senhor não pode ter certeza de que ele não... não sa... – ela estava tendo muita dificuldade para falar, porque estava quase chorando. – ...não estaria interessado em mim. Que não se a... que não se a... apaixonaria por mim se me conhecesse.
– Eu não conheço nenhum homem da idade dele que recusaria se casar com uma moça jovem e bonita como você. – A voz de Aminadave golpeava, fria e implacável. Era insuportável, para Adameire, ouvi-lo falar daquela maneira. – Já vi acontecer muitas vezes, mas isso não quer dizer que estejam apaixonados. Quer dizer que são homens, e tem desejos. Só.
– Ele... ele não é assim. – Adameire disse, já cobrindo o rosto com as mãos e soluçando. Não sabia o que doía mais: o que o pai estava dizendo, ou a forma como ele falava. Parecia um misto de decepção e desprezo.
– Você não tem como saber. – Aminadave disse, por fim. – Esse é o problema.
Adameire não aguentou mais e começou a chorar. Levantou-se bruscamente da cadeira, quase derrubando a mesa no processo, e saiu da sala, sem olhar para trás e sem fechar a porta ao passar. Aminadave apenas a observou ir, impotente e também imensamente infeliz.
O resto do dia passou como uma sucessão infindável de estudos infrutíferos. Impossibilitada de usar os laboratórios ou perturbar os professores devido ao descanso obrigatório, restava ler no quarto, ocupação que não ajudava em nada a tirar a briga horrorosa da cabeça.
Era verdade que o pai já havia deixado clara a desaprovação em relação às suas reais pretensões matrimoniais. A mãe nunca se manifestara acerca do assunto, mas Adameire supunha que ela aprovasse, ou ao menos fosse neutra na questão, já que o pai nunca havia usado a opinião dela como argumento.
No momento, Adameire penteava os cabelos diante do espelho, no quarto. Uma hora atrás uma garota a havia dito que seu pai queria vê-la pouco antes de o sol se pôr, na terceira sacada do salão de bailes. Aquilo a havia deixado furiosa – depois de toda aquela briga e das coisas horríveis que ele tinha dito, ainda queria manter o encontro que marcara com Deão.
No fundo, Adameire sabia que podia estar enganada. Que Absalon sequer lembrasse dela – ou pior: que já estivesse comprometido. Anos atrás, nos dias que se seguiram ao terrível baile em que Uzias se transformara em um monstro e quase a matara, Absalon havia saído tão ferido do conflito contra a criatura enorme (que, aliás, enfrentou sozinho a metade da batalha, e todas as vezes que Adameire lembrava desse fato, seu coração saltava dentro do peito) que precisou ficar dias hospitalizado antes de ser considerado forte o bastante para se submeter ao tratamento com teurgias. Nesse tempo, Adameire o visitou constantemente, e cuidou para que seu repouso fosse o mais tranquilo possível. Apesar dos cuidados zelosos das enfermeiras no palácio, elas frequentemente não estavam presentes quando ele tinha os pesadelos, e era ela quem umedecia as toalhas e as pressionava contra sua testa, amenizando a febre e acalmando o sono. Passou a sussurrar pequenas histórias para ele, algumas inventadas, e podia jurar que algumas vezes ele sorria. Depois de dias internado e inconsciente ele abriu os olhos, e a primeira pessoa que viu foi ela.
Olhando para trás, Adameire não sabia dizer se o que sentia de tão forte por ele hoje havia nascido ali, mas o fato é que nenhum pretendente a havia tocado como ele vinha fazendo desde que ela tinha doze anos. Ela gostava de pensar nele. Às vezes tinha sonhos com ele, alguns tão constrangedores que ela sequer tinha coragem de registrar no diário. Um pequeno segredo, jamais revelado a ninguém, era que grande parte de seu esforço acadêmico tinha o objetivo de torná-la uma pretendida à altura dele, afinal, ele era um Guardião. Com certeza deviam chover meninas, moças e mulheres em seu caminho, e ela deveria ser capaz de superar todas. Queria provar para ele que ela não era mais a menina indefesa que ele havia salvado da morte. Queria que ele a visse como uma mulher. Uma mulher poderosa.
Terminou de pentear os cabelos e desembaraçar os nós, deixando-os livres e soltos às costas. Examinou mais uma vez o vestido longo, azul e muito bonito, que se ajustava ao corpo irritantemente. Depois de um pouco de óleo aromático estava pronta.
Se o pai pretendia mesmo forçá-la a receber um pretendente depois de tudo o que acontecera de manhã, pois bem, que Deão viesse. Ele teria um encontro de cortejo inesquecível, e depois desse dia, tinha certeza que nenhum outro rapaz se atreveria a procurar seu pai para pedi-la em casamento.
Por garantia, pegou uma barra de sabão que tinha no quarto e se concentrou firmemente nela. Já havia feito aquilo dezenas de vezes, e era muito mais fácil quando estava irritada. Por isso mesmo, era mais perigoso. Ela queria dar um aviso, e não desfigurar permanentemente um rapaz que nada tinha a ver com o conflito entre ela e o pai.
Pensou na discussão. Nas palavras ofensivas que o pai havia dito. Forçou a lembrança do rosto dele enquanto chamava seus sentimentos de paixonites. Imediatamente sentiu o cheiro da gordura queimada, escorrendo entre os dedos. Contou mentalmente até três e tentou pensar na última visita que sua mãe lhe fizera, ano passado, quando lhe garantiu que Absalon continuava solteiro. Imediatamente suas mãos pararam de irradiar calor. Apesar do interior intacto, a superfície da barra de sabão estava deformada e malcheirosa, como se uma pústula feia houvesse rompido ali. O elementalismo do fogo, somado às aulas de escultura e treinos de disciplina mental a haviam tornado muito eficiente em queimar as coisas com muita precisão. Era muito eficiente para forjar aço, aquecer o banho e castigar mãos bobas.
Adameire deixou a barra deformada em cima da mesa e saiu ao encontro de seu próximo – e quem sabe último – pretendente indesejado.
O caminho pela base ao entardecer foi rápido e solitário. Nedavya era uma cidade grande, populosa e cheia de atrativos. Os jovens geralmente preferiam sair quando tinham períodos de descanso, de forma que o som dos seus passos ecoando pelos corredores era sua única companhia.
Quando chegou ao salão de bailes, o pôr-do-sol alaranjado banhava o lugar magnificamente, através das enormes janelas abertas. Quando não estava recebendo as festas, o salão era mantido vazio, adornado por estátuas e armaduras. Nos verões, os rapazes organizavam duelos de espada, que normalmente terminavam sem nenhum ferimento sério. Adameire participou uma vez, aos catorze, e achou tudo muito chato. Se comparados aos invernos e ao Altar de Izake, aquilo era um passeio no parque. Não tornou mais a se inscrever porque seu estilo de combate era considerado excessivamente violento, e alguns frequentadores estavam se sentindo desconfortáveis com sua participação.
Quando chegou à sacada, não havia ninguém esperando. Isso era novidade, já que os pretendentes normalmente chegavam muito antes das moças. Ela suspirou impaciente, e tentou se concentrar na série de exercícios que faria mais tarde, quando o campo de treino esvaziasse e ela pudesse correr sem ter novatos abelhudos espiando por trás dos halteres.
O som de passos silenciosos se aproximou pelas costas, e antes que ela se virasse, preparando sua melhor cara de antipatia, um par de braços musculosos a envolveu.
Então, aparentemente, ele era um dos afoitos.
Normalmente, os pretendentes costumavam ser gentis, beirando o tedioso. Ainda que os códigos de corte previssem que nenhum contato físico deveria ser trocado pelos participantes, a regra geral era que andar de mãos dadas, abraçar, e até algum beijo ocasional não era necessariamente sinônimo de desonra, e em geral se via com naturalidade.
Mas havia os afoitos. Adameire havia topado com dois desses sujeitos ao longo dos últimos anos, aos treze e aos quinze. Os dois eram filhos de gente importante, com parentes nobres e tudo o mais. Por isso o primeiro achava que ela realmente ficaria quieta diante de uma mão boba, como se um punhado de ouro na família fosse algum tipo de permissão implícita para apalpar seu traseiro. Foi a primeira vez que ela e o pai foram processados por um nobre, já que ela lhe quebrara a mão e deslocara-lhe o ombro. Adameire nunca viu o pai pagar um tratamento médico tão satisfeito. O segundo imbecil que se aventurou em apalpadelas inconvenientes foi mais esperto: conseguiu fugir depois que sentiu o sangue escorrendo pelo nariz, e assim evitou perder todos os dentes da frente.
Aparentemente Deão queria mesmo encerrar o encontro mais cedo. Quando os braços a envolveram, ela segurou-lhe as mãos, tentando torcer-lhe os dedos, mas rapidamente ele a evitou, e segurou-a com força pelos antebraços. Antes que ela conseguisse cabecear seu nariz, ele a virou, vigorosamente, de frente para ele.
Não era Deão. Era o seu pai.
– Eu sei que você está com raiva, mas não se esqueça, foi em mim que sua mãe testou cada movimento que ela inventou para seu estilo de luta personalizado.
– Não vi que era o senhor. – Adameire respondeu, fechando a cara. – Achei que fosse Deão.
– E não consigo imaginar uma maneira melhor de recebê-lo que fraturando seu nariz.
– Se ele chega por trás de mim com intimidades que não ofereci, o nariz quebrado é serventia da casa.
– Nisso eu tenho de concordar.
Adameire virou-se, depois que o pai a soltou, e apoiou os cotovelos na beirada da sacada, dando-lhe as costas.
– Acho que Deão não me considera boa o bastante para me dedicar parte da tarde dele. – Adameire disse, com a voz azeda. – Ele não veio.
– Acho que o correto é dizer que ele não viria. – Aminadave a corrigiu. – Eu cancelei o compromisso. Silone ficou um tanto decepcionado, mas não menos que o filho. Havia ouvido falar muito a seu respeito, e estava ansioso para poder conhecê-la.
Adameire manteve a postura fechada. O pai se aproximou e também se apoiou no parapeito.
– Escute, minha filha. – Ele recomeçou. – Eu não quero ter que brigar com você todas as vezes que falarmos sobre seu futuro. Acredite, já é difícil ver você crescer e ter que ir embora com um rapaz que terá sobre você mais direitos que eu. Por mais que seja o curso natural da vida, eu realmente esqueço, às vezes, que você não é mais aquela menininha que eu colocava sobre os ombros e que jurava jamais se casar. O melhor que eu consigo fazer é ao menos tentar te ajudar a escolher o melhor pretendente possível.
– Absalon é um Guardião, papai. – Adameire argumentou. – E foi discípulo da mamãe. Será que existe alguém melhor e mais confiável que ele?
– Sim, minha filha, ele é. Mas também é um homem muito mais velho, e que passou por experiências diferentes das suas. Absalon é um espião de elite, e já viu e fez coisas que você talvez nem possa imaginar. Coisas que o atormentam. Coisas que interferirão em seu casamento, se vier a casar-se com ele. Ele é um homem honesto, amigo confiável e excelente soldado. Mas essas qualidades, por si sós, não o fazem um bom marido.
– Ele é um guerreiro, papai. – Adameire respondeu. – Como o senhor. Como a mamãe. É assim que eu quero que seja meu futuro marido.
– Mas e você, minha filha? – Aminadave insistia, tentando manter a calma. – Você acha que pode lidar com isso? Ele tem muitos problemas, e muitas responsabilidades. Você acha que pode se acostumar com o ritmo de vida que leva um homem como ele? Já pensou nisso?
– O senhor pensou nessas coisas quando se casou com a mamãe? – Adameire tentou não parecer provocadora com aquela pergunta. – Como ele, ela é uma guerreira. E como eu, o senhor é um forjador. O senhor sabia que ela teria de ir para o combate, na linha de frente, e o senhor precisaria ficar na retaguarda, porque esse era seu trabalho? Que vocês talvez precisassem ficar longe um do outro? Ou que o senhor teria de deixar o conforto daqui para morar em uma cidade minúscula no meio da floresta, levando dois filhos pequenos?
Aminadave pareceu desarmado por aquela pergunta. Por um momento, ficou sem saber o que dizer. Adameire aproveitou o momento de silêncio para desferir o golpe de misericórdia:
– Eu pensei, papai. Pensei em todas essas coisas. Eu sei no que estou me metendo. Eu sei que ele tem pesadelos horrorosos, e sei também o motivo, porque o senhor e a mamãe têm pesadelos pela mesma razão. E por mais que eu fingisse não entender nada do que acontecia com vocês, eu via que o único momento em que a mamãe parecia realmente feliz e em paz era quando o senhor estava por perto. Eu quero ser essa pessoa, para ele. A mulher que vai fazê-lo se sentir em paz quando nada nem ninguém mais conseguir. E se para isso eu tiver de aprender a forjar, a lutar, a viver em um floresta, a viajar sempre e a criar meus filhos para serem tão fortes quanto eu, é isso que eu vou fazer. Foi assim que a mamãe me ensinou. Foi assim que o senhor me ensinou.
Aminadave ficou em silêncio. Não parecia irritado. Estava pensativo, contemplativo.
– E você acha que consegue ser feliz vivendo em função de outra pessoa? – O pai perguntou, por fim.
– Me responda o senhor. – Adameire retrucou, dessa vez deliberadamente petulante. – Tudo o que o senhor faz, faz pela mamãe. Desde sempre. Eu ainda era pequena quando percebi isso.
– Eu a amo, minha filha, é por isso. – Aminadave respondeu, pousando as mãos nos ombros dela, e a fitando nos olhos. – Mas não quer dizer que é fácil. Se escolher esse caminho, não será fácil para você também. Absalon é um homem excelente. Mas como pai, o que eu vejo nele é um soldado cansado, atormentado por pesadelos e extremamente infeliz. Não é um homem que eu queira casado com minha única filha.
Parou de falar e a fitou nos olhos. Adameire esperou que o pai continuasse, o que ele fez depois de um longo suspiro:
– Tenha isso em mente, se quiser mesmo tentar conquistá-lo. Será uma vida difícil.
– Se eu quiser? – Adameire perguntou, sem ar.
Aminadave parou um pouco, como se analisasse a situação. Depois que a filha estava quase explodindo de ansiedade, ele prosseguiu:
– Dentro de algumas semanas nós viajaremos para Migdala, ocasião em que você passará pelo Rito do Renascimento. Naturalmente, seu irmão também irá, e tenho razões para crer que tanto sua mãe como Absalon o acompanharão, a fim de resolver assuntos militares importantes com o Ancião Enoch. Você terá a chance de vê-lo e fazê-lo saber de suas intenções, o que garanto, o assustará mais que uma emboscada na travessia entre as montanhas.
– O senhor irá me permitir, papai? – Adameire perguntou, com um sorriso imenso surgindo entre as bochechas.
– Calma, muita calma. – Aminadave pediu, tentando acalmá-la. – Eu estou propondo uma trégua entre nós. Você deverá fazê-lo saber de seus sentimentos. Se, depois de ouvi-la, ele decidir cortejá-la, eu... – e parou, tendo óbvia dificuldade em dizer as palavras seguintes. – ...eu abençoarei seu casamento com ele.
Adameire saltou nos braços do pai, apertando-o, e o beijando com força, como faria a uma criança. O pai a deixou extravasar um pouco a emoção, antes de prosseguir:
– Espere, querida, espere. Eu não terminei. Há uma condição: se ele decidir não cortejá-la, você voltará comigo à Nedavya, e passará a receber os pretendentes que eu indicar, sem cara feia e sem birras.
– A menos que eles mereçam. – Ela acrescentou.
– A menos que eles mereçam. – Ele confirmou.
Adameire estendeu a mão, gracejando, e o pai a apertou. Tinham um acordo.
Enquanto a filha partia de volta ao quarto, saltitando, Aminadave suspirava, encostado à sacada e ainda sentindo o perfume adocicado do óleo que ela passara no corpo, para receber um rapaz. Pelos céus, receber um rapaz! Ele realmente não conseguia dizer exatamente em que momento a lama de brincar nas poças d’água em dia de chuva deixou de ser a única coisa que cobria sua menininha quando ela chegava em casa, imunda e com um sorriso de orelha a orelha. Nem quando ele começou a perceber que já não podia mais esfregar suas costas dentro da tina sem causar constrangimento em ambos. Ou quando ela começou a prestar atenção em como ele e a mãe sustentavam um ao outro, e assim passar a aprender com isso.
Adameire não era mais uma criança, e ele precisava se acostumar com isso. Por mais que doesse vê-la crescer, chamar a atenção de sujeitos que, assim como ele quando adolescente, não mereciam um pingo de confiança e assumir as rédeas da própria vida, precisava deixá-la escolher. No fundo, seu coração lutava contra dois princípios muito fundamentais: o de ver a filha feliz, se casando com o homem que queria, e infeliz quando as dificuldades batessem à sua porta, ou o de vê-la infeliz, por jamais saber, através de seus próprios meios, se conseguiria encontrar a felicidade ao lado do homem que amava. A única coisa que parecia fazer algum sentido, por absurda que fosse, era o fato de que ela realmente o amava. Era um amor jovem, quase todo paixão, inexperiente e iludido, exatamente o mesmo que ele tinha pela esposa quando desertou de seu posto e, arriscando tudo, fez o que pôde para vê-la viva. Desde então, muitos anos se passaram, e os dois conheceram a dureza da vida juntos. Criaram dois filhos robustos e inteligentes, e apesar das dificuldades e das farturas, viveram o suficiente para vê-los crescer e lutar para se libertar. A lição que a vida lhe ensinara era a de que mesmo um amor pequeno, fantasioso e ingênuo poderia ser cultivado até se tornar algo realmente sólido, como uma rocha. A filha estava fazendo o mesmo caminho que ele, anos atrás, e assim como ele, ela não pararia até testar cada um dos seus limites. Era importante deixá-la tentar.
O que não significava que a metade dele que ainda via a filha coberta de lama e sorrindo sem o dente da frente não desejasse ardentemente que Absalon lhe dissesse não. E essa parte, Aminadave sentia, se manteria viva independente de quantos anos a filha tivesse, provavelmente o acompanhando até o túmulo.
Sem dúvida, aquele era seu dia de sorte. Se havia alguma coisa pior que a dor, com certeza era a sensação de perder um membro. Justamente aquele desespero que dominava todos os pensamentos, quando se percebia o braço que deveria segurar a arma transformado em um toco sangrento. Ou quando se estava correndo, e depois de um tropeço no meio do caminho, levava a mão ao calcanhar para verificar o tamanho do estrago e sentia a ponta do osso da perna, estilhaçado, e separado do pé por uma armadilha terrestre diabolicamente plantada no meio de um arbusto inofensivo. Não que houvesse isso de arbustos inofensivos na linha de frente. Nem arbustos, nem árvores, nem cadáveres inofensivos. Nem nos companheiros mortos era possível confiar. Já vira acontecer do seu lado. O sujeito parava de correr, encostava-se em uma árvore perto de um cadáver qualquer, estropiado. Na primeira semana, um cadáver era sempre
O paredão se erguia dez metros, cheio de concavidades e reentrâncias, como uma muralha de rocha sólida da qual brotavam inúmeros pequenos cristais de diversas cores. Dividindo-o ao meio, a queda d’água fazia um barulho ensurdecedor, que ecoava nas paredes e tornava quase impossível qualquer conversa que não fosse composta de palavras simples, curtas e gritadas. O riacho que ela abastecia era largo e raso, de água gelada e revigorante. Em seu fundo, assim como nas paredes, havia uma enorme variedade de cristais, cintilando à luz das tochas na superfície. Toda aquela maravilha estava alojada dentro de uma caverna enorme, como um grande domo subterrâneo. Aquele era o antigo marco divisório entre o território de Migdala e Neemya, no que dizia respeito à posse das cavernas.
Veridane ofegava. Seus olhos castanhos tinham as pupilas dilatadas, tentando absorver o máximo possível da luz no escuro. Ao seu lado, no chão, uma vela grossa já quase na metade banhava o lugar enorme com uma tênue claridade alaranjada, que enfraquecia conforme se afastava da chama, até ser engolida pelo total negrume. Um par de mãos, firmes, segurava seu rosto com delicadeza. Ela sentia um pequeno arrepio sempre que as pontas dos dedos roçavam de leve em sua nuca, ou quando os polegares massageavam as maçãs do rosto, em movimentos circulares e suaves. Apesar de não ter sono, uma dormência gostosa se apoderara de seu corpo, levando-a a pensar cada vez menos no que estava fazendo. Porém, algo no fundo de sua mente lembrava-lhe que, se a encontrassem ali, depois do toque de recolher e sozinha co
Sob o sol escaldante do oriente agnumiano, o céu absolutamente azul, limpo de nuvens, contrasta com o que quer que se erga acima do oceano dourado de areia soprada pelo vento. As torres da antiquíssima cidade de Manancial, agora Yahudah. As caravanas em direção ao horizonte. As tamareiras do oásis. E a flecha de ponta côncava, lançada em linha reta. O saco atingido pelo projétil explodiu a menos de um metro da cabeça de Iadah, espalhando areia e serragem. Abaixada e alarmada, ela seguiu, sorrateira, protegida pela barricada. Empunhava um arco curto, feito de osso e couro endurecido, que lhe conferiam extrema flexibilidade e o dobro do alcance de uma arma idêntica feita de madeira – uma engenhosíssima peça fabricada muito além da Savana Vermelha, pelos bárbaros nômades que habitavam nas fronteiras de Hamode. Custara uma pequena fortuna trazê-la de além do deserto – mas para enfrentar alguém tão obstinado a ven
Uzias e Deena seguiam pela estrada, cada qual montado em um robusto cavalo de viagem, tentando lembrar o caminho até o Templo do Imanente – a maior construção do tipo em toda a Agnum. Haviam chegado às imediações de Migdala três dias antes, mas passaram todo o tempo em Tsione, levando mensagens de Levana aos sacerdotes e eruditos locais, só descendo agora em função da liturgia que precedia o Rito do Renascimento. De acordo com Levana, o rito era uma mais uma formalidade que uma necessidade. Segundo contava-se, apenas ordenados que uma vez na vida houvessem submergido no lago interior da Caverna da Origem seriam capazes de operar o Dom – uma tolice, já que a história de Agnum, e mais remotamente, de Vellum, estava cheia de casos em que pessoas operavam teurgias antes mesmo de instituírem a caverna. Fossem quais fossem as razões do rito, Uzias estava muito
Intimidades– O que está fazendo aqui, Adameire? – Absalon tornou a perguntar, novamente sem resposta.Ela não respondia. Estava sentada, meio largada na poltrona do quarto, com a cabeça levemente inclinada sobre o ombro esquerdo. Absalon precisou se aproximar um pouco mais para perceber a razão do silêncio: ela estava inconsciente.Seu coração disparou. Antes de tocar no corpo, olhou ao redor e procurou por sinais de combate. Se a haviam assassinado ali, com certeza a intenção era incriminá-lo. Pensou imediatamente em Aminadave, Aryah e Acaiah. Aquilo seria uma tragédia.O quarto estava exatamente como ele o havia deixado, com exceção de um detalhe muito importante: estava limpo e organizado. Os lençóis haviam sido trocados, os utensílios pessoais e livros estavam todos ordenados nas prateleiras e, na mesinha de madeira
Uzias sentia a carruagem balançar enquanto seguia em direção a um lugar do qual só havia ouvido falar. Ao seu lado muitos sussurros se cruzavam, e sua audição privilegiada conseguia identificar a maioria deles. Seus olhos, no entanto, não podiam ver absolutamente nada. Estavam vendados, assim como os dos quase setenta jovens que eram conduzidos pelos túneis largos que levariam, segundo dissera seu guia, à Caverna da Origem.Saber a localização exata da caverna era proibido para todos os ordenados cuja graduação fosse inferior à de mestre. Isso acontecia porque a manifestação do Dom estava associada à água que corria pela caverna. Segundo ouvira, a maior parte dessa fonte em particular cruzava as cavernas pelo subterrâneo, sem que se soubesse onde era sua nascente, ou onde enfim ela desaguava. Sendo um segredo militar de Agnum, apenas ordenados co
Prezado Ancião Zarede; Recebi hoje pela manhã a notícia de que meus serviços à Ordem dos Profetas não são mais necessários. O regente achou adequado me remover da posição que eu ocupava já com alguma relutância, provavelmente me permitindo um descanso há muito desejado. No entanto, dadas as minhas posses modestas, como você mesmo sabe, preciso pedir-lhe um pequeno favor, que para mim será um grande auxílio. Gostaria que você acolhesse meus dois pupilos em sua casa – não como combatentes, mas como convidados. Não posso arcar com as despesas do discipulado no momento, e posso garantir-lhe que eles são modestos e lhe obedecerão como fariam a mim. Eu os enviei para o Rito do Renascimento, e os orientei a seguir para Ataya tão logo as festividades acabassem. Eu pretendo acompanhá-los tão logo resolva algumas pendências administrativas e possa me considerar verdadeiramente livre do fardo que carreguei por anos a fio. Quando estivermos reunidos