3 - Dia de sorte

Sem dúvida, aquele era seu dia de sorte.

Se havia alguma coisa pior que a dor, com certeza era a sensação de perder um membro. Justamente aquele desespero que dominava todos os pensamentos, quando se percebia o braço que deveria segurar a arma transformado em um toco sangrento. Ou quando se estava correndo, e depois de um tropeço no meio do caminho, levava a mão ao calcanhar para verificar o tamanho do estrago e sentia a ponta do osso da perna, estilhaçado, e separado do pé por uma armadilha terrestre diabolicamente plantada no meio de um arbusto inofensivo.

            Não que houvesse isso de arbustos inofensivos na linha de frente. Nem arbustos, nem árvores, nem cadáveres inofensivos. Nem nos companheiros mortos era possível confiar. Já vira acontecer do seu lado. O sujeito parava de correr, encostava-se em uma árvore perto de um cadáver qualquer, estropiado. Na primeira semana, um cadáver era sempre uma calamidade. Ficavam-se dias sem dormir direito, especialmente se ele estivesse de olhos abertos quando encontrado. Os olhos abertos de um morto podiam perseguir um homem por noites incontáveis. Alguns dos novatos vomitavam. Ao menos os combatentes podiam se permitir à frieza de evitá-los, se conseguirem lidar com o constrangimento moral comum às pessoas de mente sadia. Os Égides, em especial os tanatologistas, entretanto, precisariam recolhê-los, limpá-los, embalsamá-los e enviá-los para suas famílias, normalmente acompanhados de uma carta que ao menos em teoria pretenderia transmitir alguma comoção. Isso quando os cadáveres se davam ao luxo de serem encontrados, ou quando o número de baixas permitisse todo esse processo. Ouvira de um veterano que o procedimento funerário em tempos de conflito generalizado era atirar os corpos em uma vala comum e atear fogo neles. Nem um grama de cinzas deveria sobreviver à carbonização – o que remetia novamente ao companheiro encostado na árvore.

            Ele se apoiava no tronco e bebia feliz de seu cantil. Então o cadáver estropiado ao lado estremece e se contorce, freneticamente. E antes que se perceba, que qualquer coisa possa ser feita, ele explode, sujando tudo ao redor com entranhas imundas, viscosas e infecciosas. Mas normalmente não se percebe o efeito letal das entranhas nas primeiras horas, uma vez que o objetivo da praga é se espalhar. O companheiro com o cantil pragueja, guarda o cantil e segue lutando, afinal, quem se incomoda com uma pequena camada de vísceras apodrecidas sobre a pele? Ele combaterá, e eventualmente retornará ao acampamento, já não se sentindo muito bem. Nas próximas horas, vômito. Dores e manchas na pele. Em gente de pele escura é mais difícil perceber. Então o guiam à enfermaria, um lugar ainda mais medonho que o campo de batalha. A maioria dos homens e mulheres está ferida demais para segurar uma arma, e no caso dos ordenados quase sempre significa a perda de um braço, uma perna, ou ambos. Nada menos grave que uma amputação deterá um ordenado. Para ele, a enfermaria é quase uma ofensa.

            O sujeito do cantil será deitado em um leito, se houver, ou no chão, se o dia foi ruim e houver muitos feridos. Deixado lá para ser atendido, o será assim que Égide ou o Canal menos ocupado terminar de cauterizar a última amputação, ou remendar a próxima leva de intestinos expostos. O moribundo parará de se queixar – o derradeiro sinal de falecimento. E então, pouco depois que ele se calar, será a sua vez de se contorcer e explodir em vísceras sujas e infecciosas, cobrindo todos os doentes, feridos e enfermeiros próximos, contaminando todos e reiniciando o ciclo. Repetindo o processo um número suficiente de vezes, o crepúsculo dirá ser provável que os companheiros mortos tenham causado mais baixas que os inimigos vivos.

            Na fronteira, nem os cadáveres são inofensivos.

            Outra notoriedade era a quantidade de coisas possíveis que um homem conseguia pensar enquanto berrava de dor – desde que estivesse deitado. De pé, a dor imobilizava, desorientava e enfraquecia. Deitado não havia muito que fazer, a não ser sentir e pensar. Ou gritar, se o sujeito não se importasse que os outros o vissem protagonizar um escândalo.

            Acaiah era dos que se importavam. Ele comeria a própria cara para que ninguém o ouvisse gritar. Mas ele já não podia se dar a esse luxo, de forma que alguém gentilmente enfiara um trapo sujo em sua boca, como medida paliativa. Assim, ninguém além dos imediatamente próximos ouviria seus gemidos estrangulados. O lado ruim de ser fisicamente muito forte era que precisava de cinco ou seis pessoas para segurá-lo deitado, na tentativa de permitir ao médico condições mínimas nas quais trabalhar. Sua mãe, por outro lado, conseguiria segurá-lo sozinha, mas no momento estava na floresta, tentando localizar onde, exatamente, o filho havia deixado cair o braço.

            – Fique quieto! – Um dos Égides que o seguravam tentava forçá-lo contra a cama. – Precisamos de anestésicos aqui!

            – Ele já tomou dois! – Outro respondia. – Vai entrar em coma, se dermos um terceiro!

            Havia uma enfermeira particularmente gentil, da Ordem dos Canais, que costumava ajudá-lo a lidar com a dor em procedimentos menos incômodos, como fraturas e cortes. Mas mesmo ela estava tendo dificuldade de se concentrar. Era muito sangue, e o ferimento doía horrivelmente. Porém, aquela não era a pior parte.

            – Segurem-no com força, se não eu vou acabar errando o ângulo do corte. – Disse o maior dos Égides presentes, trazendo consigo uma serra de aspecto ameaçador. – Prendam-no! Segurem o braço infeccionado! Agora!

            Como se não bastasse ter o braço decepado pouco acima do cotovelo, o ferimento ainda infeccionara devido o contato com fluidos contaminados no campo de batalha. A solução, evidentemente, era cortar fora a parte maculada, antes que a doença se espalhasse pelo corpo e o matasse – o que aconteceria dentro de poucas horas. Mas nem tudo estava perdido – se a mãe encontrasse seu braço em bom estado, seria possível reconectá-lo ao corpo através de teurgia, em Ataya.

            Quando os dentes da serra aquecida entraram em contato com a sua pele, Acaiah gritou, esperneou, e por pouco não derrubou todos que o seguravam. Mas o médico prosseguiu firme, e a cada nova ida e volta da lâmina, pele, tendões e músculos eram estraçalhados e cauterizados.

            – Segurem-no! – O Égide com a serra gritava, tentando terminar o trabalho. A lâmina enganchou quando chegou ao osso. Acaiah estava a ponto de desmaiar, e não gritava mais, chorava. Em um último assomo de força, o médico empurrou a serra contra o braço e terminou de amputar a parte contaminada. Sangue escuro esguichou em todos, e rapidamente os enfermeiros cobriram tudo com bandagens limpas.

            Acaiah agonizava, sem ter noção de onde estava nem quem era. A escuridão e o silêncio, bem vindos àquela altura, o engolfaram.

            Uma sucessão de sons indistintos, vozes sem corpos, e borrões de luz e cor invadiram o negrume confortável do torpor em que se encontrava. Resistiu um pouco mais. Sentiu um frio terrível, e umidade. Depois, calor agradável. Um pequeno ponto de luz começou a crescer e ganhar intensidade, até que ele percebesse estar diante de uma lareira. Aquilo era muito estranho. Não havia lareiras no acampamento.

            Os últimos quatro anos haviam sido duros. Duríssimos, aliás. Quando Acaiah idealizava o treinamento pelo qual passaria, sua mente de doze anos lhe referia o treino de inverno e o altar de Izake. Apanhar da irmã, revidar de vez em quando, passar fome, sede e frio. Com aquelas coisas estava acostumado, por mais que não as apreciasse. O que sua mãe lhe reservara, porém, era muito pior. Não apenas a provação física. Claro, houve espancamentos, escassez de comida, exercícios desesperadores, e tudo o mais que já fazia durante os invernos – apenas em escala mais intensa. Mas aqueles eram ócios do ofício. Por mais detestável que fosse caçar seminu no inverno gelado, apanhar até quase esquecer quem era, lutar com ursos, correr e escalar até não sentir as extremidades do corpo, entre outros expedientes igualmente desagradáveis, nada, nada se comparava à solidão do isolamento no terreno selvagem. Sem amigos e sem família. Ninguém.

            No início do primeiro ano, logo depois de decidir treinar com a mãe (um enorme privilégio – normalmente um ordenado precisava ser primeiro consagrado a Mestre para se candidatar a discípulo de um Guardião), ela o vendou, o pôs em cima de um cavalo e ambos cavalgaram por dias floresta adentro. Acaiah não saberia voltar à Ataya ainda que houvesse anotado cada detalhe do caminho e feito um mapa. Vendado, as chances eram nulas. Durante todo o período de viagem, ela não falou uma palavra, do amanhecer até o entardecer. Nem mesmo à noite, quando paravam para comer e descansar. Tampouco dava ao filho qualquer instrução. Acaiah decidia sozinho quanto e como comer, se queria lavar-se e quando se deitaria para dormir. Em uma dessas noites, não sabia precisar em qual, ela o abandonou, deixando-o apenas com o cavalo, a roupa do corpo, comida para dois dias e um pedaço de pergaminho contendo uma mensagem curta que definia os termos do treinamento. Basicamente, ele deveria encontrar o caminho para casa sozinho. Seu treinamento só terminaria quando ele voltasse à Ataya.

            Sem um mapa, orientação, ou mesmo noção da distância que o separava da cidade, Acaiah resolveu não se mover mais. Decidiu que faria daquele lugar um refúgio permanente até ter certeza de que direção tomar.

            Naturalmente, as coisas não eram tão simples.

            O lugar onde sua mãe o havia abandonado era território de predadores, como ele descobriu dois dias depois, ao sacrificar o cavalo para escapar de uma alcateia de lobos, quase morrendo no processo. Aquilo foi aterrador porque, pela primeira vez, ele percebeu que sua mãe realmente não estava nas redondezas observando seus passos, atenta aos perigos reais que pudessem lhe ocorrer. Ele estava sozinho de verdade. Pela primeira vez na vida, não podia contar com qualquer pessoa além dele próprio. A primeira semana foi de medo e fome, enquanto ele lutava para entender como funcionavam os limites de caça dos animais perigosos, ao mesmo tempo em que procurava por comida.

            Quando estava quase acreditando que ficaria meses perambulando sozinho na floresta, sem nenhum contato com qualquer pessoa, sua mãe voltou. O encontro foi breve, e inesquecível. Sem dizer uma única palavra e sem atender a nenhum dos pedidos desesperados de comida, água, roupas e por fim, desistência, ela o surrou até que perdesse os sentidos. Quando ele acordou, horas mais tarde e no exato lugar onde perdera a consciência, estava alquebrado e faminto. Largado por perto, um livro velho, que dava instruções básicas de sobrevivência em florestas.

            E assim as semanas se passaram. A cada intervalo de seis dias, precisamente, sua mãe surgia no fim da tarde, e em total silêncio o espancava até que ele desmaiasse. Acaiah tentou de tudo para evitar as surras – fugir, se esconder, plantar armadilhas, e quando tudo falhava, revidar. Invariavelmente ela evitava todos os contratempos, e antes que o sol terminasse de se pôr, ele estava no chão, quase sempre inconsciente. Ela não dizia nada e não parecia minimamente incomodada com nenhuma de suas tentativas de evitar o inevitável. E sempre que acordava, Acaiah recolhia algo que ela havia deixado antes de partir: um livro, alguns remédios ou alguma comida.

            Cada livro continha alguma informação importante – instruções de caça, luta, exercícios, fabricação de utensílios e armas, identificação de ervas, e por aí seguia. No início, Acaiah aprendia o que considerava útil e ignorava o resto. Aprendeu a viver da terra, e construiu para si um abrigo permanente. No entanto, por mais que aquilo atenuasse o desconforto, não o ajudava a lidar com a frustração e o ressentimento.

            O pior, porém, era a solidão. Nunca imaginara o quão terrível era não ter com quem conversar. Adquiriu o hábito de falar sozinho, para aliviar o vazio. Contava para si mesmo histórias da sua vida, lembranças felizes ou ficava dando conselhos a si mesmo. Às vezes chorava. Tinha saudades de tudo: do pai, da irmã, dos amigos de Nedavya, de Uzias, das gêmeas com quem tinha algumas liberdades, de Sarina. Aqueles dois beijos que haviam trocado pareciam ter acontecido em outra vida. E tinha saudades da mãe. Mas as saudades dela estavam misturadas a um rancor profundo. Ela não estava fazendo nada além de largá-lo ao relento, o punindo sem razão e o submetendo a um treinamento sem sentido que não levava a lugar algum.

            Tudo mudou nas vésperas de seu décimo quarto aniversário. Apesar de não saber exatamente o dia, tinha uma noção rudimentar do tempo baseado no número de surras que havia tomado da mãe. Como ela sempre aparecia rigorosamente a cada seis dias, ao entardecer, era possível calcular quanto tempo se passara desde que havia chegado à floresta, com uma pequena margem de erro.

            Naquela tarde, tudo havia ocorrido como sempre: ela apareceu, evitou todas as armadilhas que ele havia preparado e, sem dizer uma única palavra, lhe socou e chutou até que estivesse estirado, de bruços, no chão. No entanto, apesar de imóvel, ele ainda estava consciente, e a ouviu pousar um pequeno embrulho ao seu lado, pouco antes de se debruçar e beijá-lo carinhosamente a têmpora. Ele ainda sentiu algo quente respingar, singelamente, em seu rosto. Ela não estava sangrando, afinal ele mal conseguia acompanhar seus movimentos, quanto mais atingi-la. Mais chocante que isso, porém, foi o som da sua voz, depois de um ano de total silêncio:

            – Eu amo você.

            E partiu.

            Ele ainda ficou muito tempo deitado, pensando no que acontecera, até que conseguisse mover-se novamente. Só havia uma explicação para aquilo – se não era sangue, eram lágrimas. Sua mãe havia chorado.

            Quando finalmente conseguiu levantar-se, verificou o conteúdo do embrulho e lá encontrou um doce – o primeiro que comeu desde que deixara Nedavya. Teve certeza de que foi o melhor que já provara, ou que tornaria a provar na vida.

            Mais importante que o doce, o beijo e as palavras, entretanto, foram as lágrimas.             Durante todo aquele tempo isolado, Acaiah nunca se perguntara o que sua mãe estivera fazendo, nem o que esperava dele com aquilo tudo. Ele simplesmente decidira guardar rancor, e como um menino mimado, fazer exatamente o oposto do que a mãe lhe sugeria, quando deixava os livros. Agora que tentava pensar no assunto, via que ali estava tudo o que precisava saber para completar seu treinamento – ela apenas o deixara decidir sozinho o que e como queria aprender. E, acima de tudo, ela não o havia abandonado. Três anos de treinamento em sobrevivência, dos nove aos doze, e toda a informação que ela vinha deixando semana após semana eram a presença invisível de sua mãe lhe protegendo dos perigos da floresta. Talvez ela realmente não estivesse lá quando os lobos o atacaram, mas estava segura de que ele saberia lidar com qualquer situação que surgisse – e havia acertado. Ele era capaz. Só não havia decidido tirar proveito disso ainda.

            Daí em diante, Acaiah se debruçou sobre os livros que tinha, passando a estudá-los e praticá-los. Depois de ler com cuidado cada um deles, traçou para si mesmo um objetivo e construiu para si uma rotina. Passou a acumular caça e coleta, para poder passar mais tempo treinando. Sua mãe continuava a vir surrá-lo de seis em seis dias, mas dessa vez Acaiah suportava o castigo com dignidade – ela não o estava punindo, estava ensinando. Ela o amava.

            E as semanas se passaram. Acaiah começou a ganhar força, resistência, e massa muscular. A dieta correta – era possível encontrar tudo o que precisava na floresta, graças aos livros que recebera – somada aos exercícios físicos regrados o tornaram muito mais forte. A cada novo combate contra a mãe, ele demorava mais a cair. O primeiro grande avanço aconteceu quando, em uma das surras habituais, ele conseguiu, quase que por milagre, encaixar um soco desajeitado entre o pescoço e o queixo dela. A surpresa foi tanta que ele hesitou por um segundo, e isso foi o suficiente para que ela acabasse com ele sem dó. Quando aquele dia acabou, Acaiah estava no chão, como de costume. Mas também estava feliz. Havia progredido.

            – Hoje você se tornou minimamente digno de respeito. – Sua mãe lhe dissera, sob a luz do crepúsculo, olhando-o de cima. – Você já atingiu o limite do que é possível aprender sozinho, e mostrou que realmente deseja se tornar um homem. Eu vou voltar amanhã, para começarmos o seu treinamento. Destrua tudo o que você tiver construído ou recebido durante o tempo que passou aqui. São confortos infantis, adequados a uma mente e a um corpo de criança. A partir de agora, você comerá o que eu lhe der para comer, fará apenas o que eu disser que faça, e falará apenas quando solicitado. Esses são os termos do treinamento. Você os entendeu?

            Do chão, Acaiah confirmou.

            A partir daquele momento, a mãe vinha vê-lo todos os dias, rigorosamente. Chegava ao amanhecer e ia-se ao entardecer. Consigo trazia comida, equipamentos de treino, medicamentos e armas. Não conversavam. Ela se limitava a instruí-lo e ensiná-lo. Acaiah só tinha permissão para falar quando solicitado, ou se tivesse perguntas.

            Ao longo do ano, sua forma física mudou ainda mais – adquiriu uma musculatura formidável, e sua altura tornou a aumentar. Apesar de muito jovem, já parecia um homem. Sua mãe o ajudou a aperfeiçoar as habilidades de combate. Logo, não fazia diferença se ele lutava de mãos nuas ou brandindo sua ameaçadora espada longa – uma arma pesada, brutal e assustadora. A cada semana que se passava, os combates no sexto dia se tornavam mais demorados e imprevisíveis. Acertar golpes na mãe já lhe era um expediente comum. Então veio a lição definitiva.

            Tudo o que Aryah havia feito até então tinha um único objetivo: preparar seu corpo para suportar a força de sua mente. Por mais poderosos que fossem os dons que ela costumava conjurar, sua especialidade ainda era o mentalismo do corpo. Graças a ele, ela era capaz de tolerar castigos que matariam um ser humano normal, e causar mais destruição com os punhos que algumas máquinas de guerra projetadas pela Ordem dos Armígeros.

            Acaiah aprendeu tudo da melhor forma que pôde. Lentamente, ela o ensinou a conhecer o próprio corpo, a vencer os limites estabelecidos pela mente e a extrapolar as próprias capacidades. À medida que o seu mentalismo se desenvolvia, as lutas entre ele e a mãe se tornavam mais equilibradas. Ele agora quase batia tanto quanto apanhava – apesar de reconhecer que havia um tipo de limite tênue entre ele e sua mãe, um limite que parecia ser curto, mas que ainda assim era impossível de vencer. Lembrava-o dos embates contra Adameire no Altar de Izake, onde ele sempre se preocupava em vencê-la por pouco, modulando sua destreza para que a irmã nunca soubesse a distância real de perícia que havia entre os dois. Tinha certeza de que a mãe fazia o mesmo com ele.

            Quando fez quinze anos o treinamento concluído. Acaiah já não era mais um menino, voluntarioso e mimado, mas sim um homem forte, bruto, e experimentado na dor e na solidão. Na última vez em que lutaram, ele pediu à mãe que lhe mostrasse tudo o que era capaz de fazer, já que provavelmente não tornariam a se enfrentar. Contrariando as expectativas ela aceitou, mas ser levado à inconsciência por um único golpe foi muito menos que o suficiente para qualquer avaliação da diferença entre os dois. Serviu apenas como uma última e dura lição acerca do quanto ainda precisaria caminhar.

            Quando ele acordou, ela o aguardava, com dois cavalos.

            Era hora de pôr em prática tudo o que havia aprendido.

           

            Acaiah levantou-se, ainda desorientado, enquanto o cenário lentamente entrava em foco. Tentou entender. Havia uma lareira, e camas ao redor. Algumas estavam ocupadas por jovens adormecidos. Um deles estava acordado, e o olhava com curiosidade e apreensão. Tentou coçar o rosto – não fazia a barba havia duas semanas, mas a mão não chegou ao queixo, porque não estava lá. Havia apenas um toco enrolado em ataduras.

            Desde que começara a participar do conflito na fronteira Acaiah já havia sofrido ferimentos de todo tipo: cortes, escoriações, esfolamentos, contusões, fraturas, e mais raramente, amputações. Na primeira vez que um pedaço seu havia sido verdadeiramente separado de seu corpo, ele entrou em pânico e por pouco não perdeu muito mais que apenas uma orelha. Entretanto, não foi a dor que o fez sair do controle. Já sentira piores. Foi olhar para o chão e ver uma parte sua largada ali, como um organismo que estava morrendo rapidamente.

            Demorou um pouco a lembrar das instruções que recebera, junto com a tropa, acerca de amputações: deveria encontrar a parte decepada e guardar até que voltasse ao acampamento. Lá, os médicos teurgos poderiam sarar o ferimento, religando a parte perdida.

            Claro, havia agravantes. Depois do primeiro dia, as chances de recuperar a parte perdida diminuíam muito. Depois de dois dias, era quase impossível haver recuperação total. E nenhum médico se prontificava a tentar reverter um membro separado do corpo por três dias ou mais. A parte cortada já teria apodrecido.

Por mais horrível que fosse, no entanto, qualquer amputação era melhor que a Praga. Porque uma vez contaminado, apenas uma teurgia purificadora excepcionalmente forte poderia salvar a vida do infeliz que fosse suficientemente exposto. E era aí que residia o maior problema – ninguém parecia saber como, exatamente, se contraía a Praga.

Apesar dos conflitos na fronteira já se estenderem por quase oito anos, o problema com a Praga começara havia apenas dois. Até ali, os combates eram esporádicos, concentrados em postos avançados, quase no limite norte entre Agnum e Vimaihanna. Os inimigos eram quase sempre homens baixos, delgados e flagelados, portando armas de madeira que davam toda a indicação de serem improvisadas, ou produzidas em massa sem muito cuidado. Apesar da aparência esquálida e faminta, alguns com doenças de pele e ferimentos rançosos em vários níveis de putrefação, eram homens, e como tais podiam ser vencidos pelos métodos tradicionais de combate: empalações, contusões, cortes e esmagamento. Os poucos que eram capturados se matavam antes de dar qualquer informação sobre quem os liderava ou qual o propósito dos ataques.

Então alguma coisa mudou. Os ataques continuaram os mesmos: violentos, repentinos e selvagens, mas com um agravante: entre os atacantes normais estavam alguns Andarilhos Vazios.

No passado, o reino de Agnum havia passado por uma batalha feroz contra uma espécie inteira de seres malignos denominados Tenebrosos. Eles eram espirituais – não tinham corpo, e quando visíveis frequentemente assumiam a forma de uma nuvem escura, normalmente imitando uma forma humana ou animal, com dois pontos vermelhos e brilhantes no lugar dos olhos. Esses seres se nutriam de emoções negativas inerentes à mente humana, como dor, ódio, orgulho, soberba, tristeza e assim por diante. A maioria desses seres era inteligente, dotada de fala e altamente persuasiva. No entanto, por não terem corpo, sua única maneira de interagir com o mundo material era possuir um corpo humano ou animal e agir através dele. Podiam parasitar humanos por anos – até que o hospedeiro morresse e fosse substituído por outro. Nunca se soube de qualquer um deles que se nutrisse de emoções animais, e apesar de não poderem morrer de inanição, quando alimentados podiam se tornar enormes e muito fortes.

No entanto, esses seres foram largamente combatidos no passado, sendo banidos ou destruídos. Nos tempos presentes, eles só existiam em regiões ermas e remotas, vagando pelos desertos e se apossando de viajantes desavisados. As pessoas possuídas por esses Tenebrosos eram chamadas, em Agnum, de Andarilhos Vazios.

Quando as tropas inimigas começaram a ser acompanhadas por Andarilhos Vazios, cerca de dois anos atrás, as coisas começaram a piorar de verdade. Os soldados inimigos eram chamados, pelos ordenados, de Esquálidos, dada sua aparência faminta e pútrida. Apesar de serem humanos e comunicarem-se entre si, o faziam de forma tão ferina, em um idioma tão gutural, que mais pareciam animais. Se moviam em grandes números, atacando em vantagem numérica, normalmente sem uma organização visível ou plano de batalha. Quando os Andarilhos Vazios começaram a fazer parte dos ataques, tudo mudou. Eles começaram a se organizar, a atacar estrategicamente e a recuar, quando pressionados. Porém, os Andarilhos Vazios não eram menos bestiais que os Esquálidos – eram, na verdade, ainda mais animalescos, mais brutos, mais fortes, com sinistros olhos que irradiavam o conhecido brilho escarlate e, na maioria das vezes, incapazes de se comunicar mesmo no idioma horrendo dos inimigos regulares. Ainda assim era possível notar que havia alguém orquestrando os ataques. As tropas agnumianas apenas não sabiam quem, nem como.

Um detalhe particularmente importante sobre os Andarilhos Vazios nas tropas inimigas era o fato de que, quando morriam, eles explodiam. Literalmente. Explodiam como se uma reação química muito forte empurrasse as entranhas de dentro dos seus corpos, espalhando-as por todas as partes. Naturalmente, como em qualquer possessão, era possível extrair o Tenebroso do corpo inimigo antes de matá-lo (ou dele se matar, o que acontecia na maioria das vezes). Nesses casos, a explosão de vísceras não ocorria. O problema era que tal estratégia era impraticável – exigia que, no meio de um combate de massa, se escolhesse um inimigo específico no meio de dezenas e, se houvesse presente um Canal ou outro ordenado capaz de realizar o exorcismo, este deveria tentar extrair o Tenebroso antes que ele matasse o corpo que estava possuindo. Era compreensível que os combatentes preferissem evitar esforço desnecessário e partir para a decapitação.

Por meses os combates seguiam, sempre deixando o campo de batalha coberto de cadáveres – inimigos e aliados, os primeiros em número muito maior que os segundos – e vísceras escuras, viscosas e apodrecidas. A cada nova batalha, mais entranhas, oriundas dos corpos explodidos, cobriam o terreno. Porém, com exceção do mau cheiro e da visão desagradável, nada de anormal (em relação à rotina da fronteira) acontecia.

Até o primeiro internado explodir na enfermaria. E os que entraram em contato com seus fluidos, horas depois. E os médicos.

Ao todo, três acampamentos se foram até que a Ordem dos Redentores percebesse o que estava acontecendo. E até que começassem a tomar as medidas de contenção, isolamento, e tentar estudar o problema, as baixas se avolumaram, exigindo envio de reforços.

No presente, havia uma força organizada patrulhado, combatendo e defendendo a fronteira. Ordenados de todas as seis ordens faziam parte da força-tarefa, transformando o norte da Floresta Silenciosa em uma verdadeira zona de guerra. O principal objetivo das forças ordenadas era encontrar a mente por trás dos ataques. Depois de tantos anos e inúmeras baixas, já estava claro que o inimigo não apenas tinha uma vasta gama de recursos bélicos à disposição, como também estava desenvolvendo novas maneiras de combater. Os mais alarmistas previam que não demoraria até que um exército de verdade surgisse, vindo do norte, abrindo caminho pela Floresta Silenciosa. Assim, além de ordenados, muitas das tropas do exército de Nedavya e do recém-formado exército de Ataya se posicionaram na região. Muitos entre os mais especializados Canais e Égides foram convocados para estudar a Praga, entender seus efeitos, modos de propagação e uma possível reversão, para os infectados.

Foi muita sorte, para Acaiah, que ele só houvesse começado a frequentar o campo de batalha depois que os Égides descobriram uma maneira de expurgar a Praga de um corpo contaminado. Caso contrário, àquela altura, ao invés de estar deitado em uma enfermaria lamentando a ausência de um braço, ele estaria cobrindo as paredes.

            Dos males, o menor.

            Voltou a deitar-se de costas, fingindo para si mesmo que não se importava em perder um membro, desde que conseguisse com isso uma licença para abandonar o conflito.

            Mentir para si mesmo e fingir sarcasmo era a única maneira de conseguir suportar tudo pelo qual vinha passando nos últimos dois anos. Apesar de muito jovem, Acaiah já participava da rotina dos acampamentos avançados desde os quinze – e era o único adolescente na frente de batalha.

            Quando deixaram o local onde ele aprendera por dois anos, sua mãe simplesmente não viu razão em submetê-lo ao retrocesso que seria treinar pelos últimos dois anos de formação junto aos outros jovens. Em vez de levá-lo à Ataya, o conduziu a um dos acampamentos avançados. Seus dois últimos anos de aprendizado seriam concluídos ali.

            Ele soube depois que o objetivo de sua mãe não era expô-lo a situações de combate. O acampamento em que ele estava era um dos mais protegidos e recuados – seu objetivo ali era aprender o que pudesse sobre estratégias, logística e manutenção de campos de batalha. Ela o supervisionava, mas precisava se ausentar constantemente para direcionar combates em outros acampamentos, de forma que, pelos primeiros seis meses, Acaiah perambulou pelo acampamento, conhecendo os oficiais, participando, em silêncio, das reuniões e eventualmente assumindo tarefas menores, como sentinela noturno. Apesar de o acampamento estar sempre cheio de gente – soldados do exército, ordenados, médicos e feridos, Acaiah não chegou a desenvolver nenhum tipo de relacionamento com ninguém – todos iam e vinham rápido demais, jamais se demorando ali mais que uma ou duas semanas.

            Foi em uma dessas transferências que conheceu Absalon. Na verdade, ele já sabia de quem se tratava, uma vez que ele havia salvado sua irmã da morte e era também amigo de Uzias, mas suas informações terminavam aí.

            Ele havia sido transferido para o acampamento onde Acaiah estava por ter se ferido seriamente na fronteira, e deveria descansar ali algum tempo antes de ser transportado à Ataya e receber o tratamento adequado. Essa pausa deu à Acaiah chance de conhecê-lo um pouco e descobrir que ele era um dos quatro sobreviventes do Cerco, e por isso havia sido banido de suas funções por longos anos. Ele era formado como combatente, por Aryah, e como espião, por Amnon, o Guardião dos Espiões da Fronteira que o precedera. Era também o homem mais jovem a ser consagrado Guardião de que se tinha notícia – aos dezoito anos, indicado por seu mentor, pouco antes de sua morte. Quieto e reflexivo, eventualmente se permitia longas conversas nas quais ouvia bastante e falava bem pouco. Não demorou para Acaiah perceber que gostava muito dele – apesar de não saber se isso se dava por causa do longo isolamento pelo qual passara nos dois anos anteriores, e pelo fato de ele ser o único com quem que realmente conversara desde que chegara ao acampamento.

            Tudo teria seguido normalmente não fosse a notícia angustiante trazida por um mensageiro. Entre gemidos de dor e fadiga, o homem maltrapilho dizia que um acampamento avançado caíra, a apenas dois dias de distância, e que uma força de aproximadamente duzentos inimigos se aproximava vinda do norte.

            O mais desesperador naquela situação era o fato daquele ser um acampamento médico – cheio de provisões e feridos, mas com poucos combatentes. Por ser o oficial com maior patente, Absalon se viu obrigado a liderar a contraofensiva. Deitado, na enfermaria, organizou os oficiais e dividiu as forças e as tarefas. As ordens eram claras: qualquer presente, homem, mulher ou ferido, que tivesse condições de segurar uma arma, deveria entrar em combate.

            A primeira noite foi a mais longa e assustadora da vida de Acaiah. O combate não se daria como ouvia nas histórias, onde dois exércitos se encontravam em uma colina e se digladiavam até que o grupo com menos homens se rendesse ou fugisse. Naturalmente, se lutassem assim seriam derrotados, pois as tropas inimigas superavam o efetivo do acampamento numa proporção de três para um. Absalon posicionou as tropas nos arredores do acampamento, montando armadilhas e bloqueando o caminho, com o objetivo de separá-los e atrasá-los. Um mensageiro foi enviado ao acampamento mais próximo, pedindo reforços, mas a ajuda poderia levar um dia ou mais para chegar.

 Assim, os combatentes se dividiram em grupos e patrulharam os arredores, munidos de trombetas, as quais deveriam soprar no caso de avistarem o inimigo, e esperando pelo pior. A tensão se avolumava a cada hora que passava. Acaiah, suando frio, pela primeira vez na vida realmente temeu a morte. Sabia que ninguém apareceria para tirá-lo do perigo, adverti-lo e mandá-lo tentar de novo no dia seguinte. Se falhasse ali, seria a última vez.

As trombetas de aviso soaram na madrugada do segundo dia de espera. Começaram pelos grupos a leste de onde estava. Depois, foram tocadas pelos grupos mais próximos. Os Esquálidos haviam chegado. Era questão de minutos até eles alcançarem o seu agrupamento. 

Então tudo aconteceu – e foi tão rápido, tão brutal e tão apavorante, que seus pensamentos foram varridos pelo desespero, sendo reduzidos aos dois instintos mais básicos possíveis de se racionalizar naquela situação: o de evitar as armas adversárias e o de acertá-los com a sua. A esses dois, um terceiro se somou, muito depois do início do combate: o de reconhecer entre inimigos e aliados, para atacar os primeiros e proteger os segundos. Os dezesseis homens que o acompanhavam lutaram ferozmente. Para Acaiah, foi o exame de Ataya, no qual havia sido aprovado quatro anos antes, revivido – um grupo de inimigos numericamente superior e combativamente inferior. Tudo era idêntico, com exceção de um fato crucial: aqueles homens, assim como seus aliados, não seriam transportados à enfermaria da Ordem para serem revividos ao fim de três dias.

Até aquele momento, Acaiah achou que seria difícil. Que hesitaria em dar o primeiro golpe. Que sua consciência lhe recusaria brandir a espada longa, e que talvez isso lhe custasse a vida. Ledo engano.

Estava errado. Não havia espaço ou tempo para sentimentos nobres e peso na consciência. Havia apenas o medo – o medo de ser atingido, dilacerado, estraçalhado. Não havia homens no exército adversário – havia apenas... inimigos. Sem nome, sem rosto, apenas mãos e pés armados e prontos a lhe tirarem a vida, exatamente como Zarede dissera antes do terceiro exame, uma eternidade de anos atrás. Se houvesse algum momento em que ele teria de escolher entre a sobrevivência e a consciência, com certeza não era aquele.

E nem o foi nos dois dias seguintes. O combate seguiu implacável. A cada nova onda de ataques inimigos, a cada emboscada, a cada armadilha ou cadáver explodindo, algum dos seus companheiros morria, e a tropa precisava se reagrupar, substituir os caídos e retornar aos postos. E ele continuava vivo. Forte. Duro como uma rocha. Ali, Acaiah entendeu os dois anos de solidão pelos quais sua mãe o havia obrigado a passar. Seu coração estava insensível. Não havia tempo para lagrimas, pesar ou respeito pelos mortos. Os inimigos e os aliados caídos eram deixados para trás. Havia muito a fazer e as sepulturas teriam de esperar.

No final do terceiro dia de combates, o som das trombetas anunciou a chegada dos reforços. Estavam salvos.

Quando retornou ao acampamento, pouco mais de vinte homens, dos cerca de sessenta que havia no acampamento ainda estavam vivos, e alguns tinham variáveis níveis de ferimentos e agravos. Eles foram substituídos por trezentos homens do exército de Ataya, liderados por cinquenta ordenados, que rapidamente liquidaram os poucos Esquálidos e Andarilhos Vazios ainda vivos que rondavam a região.

Apesar das baixas, um grupo de sessenta combatentes havia segurado mais de duzentos inimigos por cerca de três dias, em grande parte devido à estratégia defensiva de um comandante que deu suas ordens deitado, entre surtos de febre e delírios. Aquilo foi suficiente para que Acaiah escolhesse Absalon como seu mestre pelos dois anos que lhe restavam de treinamento. Sua mãe, através da influência que tinha sobre o Ancião da ordem, conseguiu para o filho mais esse privilégio.

Depois de se recuperar, Absalon não viu problemas em aceitá-lo como discípulo, (apesar de aquilo representar um evidente quebra de hierarquia) exceto pelo fato dele estar frequentemente na zona de guerra da fronteira – o que significava, para Acaiah, que ele deveria acompanhá-lo se quisesse ter alguma chance de ser treinado.

Nos últimos dois anos Acaiah aprendeu a aperfeiçoar seu estilo de combate, já formidável graças aos ensinamentos de sua mãe. Absalon era um homem ocupadíssimo, já que dirigia a maioria das operações da inteligência, responsável por avançar além da linha de defesa, entrar no território inimigo e coletar dados, amostras, e muito raramente inimigos, para abastecer as pesquisas dos Égides e dos Canais. No entanto, tinha outros dois discípulos, uma mulher assustadoramente ágil e de voz doce chamada Valeshka, e o homem com o raciocínio mais rápido que Acaiah já vira, chamado Durval. Desenvolveu com Valeskha uma relação meramente formal, (na verdade, ela o assustava um pouco) e granjeou grande simpatia por parte de Durval, de forma que os dois se tronaram amigos. Na maior parte do tempo, era ele quem tinha a tarefa de passar as lições, examinar o desempenho, responder às dúvidas e reportar os avanços ao mestre. Absalon só passou a se envolver pessoalmente no treinamento de Acaiah quando ele começou a aperfeiçoar seu mentalismo.

Basicamente, Aryah o havia ensinado a ser forte – um estilo de combate que combinava muito com o dela, no qual a prioridade era destruir o oponente o mais rápido possível sem dar chance de revide. Absalon, no entanto, defendia que nem sempre era possível vencer um oponente rapidamente, e tudo em seus ensinamentos tinha o objetivo de garantir eficiência em uma luta duradoura – ou como ele costumava dizer, vencer pela fadiga.

Essa perspectiva se refletia em tudo o que ele ensinava – estratégia, combate, mentalismo. Ele ensinou Acaiah a controlar suas capacidades físicas impressionantes: ao invés de explodir em fúria destruidora durante horas, ele aprendeu a modular sua força e assim lutar por dias. E, quando sentiu que o discípulo estava pronto, o levou ao campo de batalha, a fim de que pudesse colocar tudo o que aprendeu em prática, sob sua cuidadosa supervisão.

E Acaiah combateu. Participou de diversas operações, nas mais variadas funções. Lutou ao lado de sua mãe e da tropa de Combatentes da Fronteira, defendendo acampamentos em ataques inimigos, presenciando a fúria e a força de ordenados mais velhos e experientes que ele. Avançou para além das linhas inimigas, ao lado de Absalon e Valeshka, espionando, coletando e aprendendo a matar sentinelas avançados com precisão e silêncio. Defendeu acampamentos médicos ao lado de Durval e da Divisão de Escudos – a tropa de Égides especializada em proteger fortificações, aprendendo como espalhar armadilhas e cavar fossos para abrigar pequenos grupos humanos contra grandes volumes de inimigos. E ao final do segundo ano, as cicatrizes adquiridas nos treinos duros com a mãe se somaram às adquiridas em cada novo acidente em batalha – um corte, uma contusão, uma perfuração.

Entretanto, nenhum acidente se comparava a um braço inteiro perdido.

A porta da enfermaria se abriu bruscamente, e por ela entraram Aryah, Valeshka, e mais um homem que ele não conhecia.

Sua mãe usava um vestido – e agora ele percebia que a achava tão estranha com aquelas roupas cá gora quanto quando a viu, ainda menino, usando a armadura e as manoplas de batalha pela primeira vez. Valeshka vestia o de sempre: botas, luvas de escalada e uma roupa justa que colava no corpo, adequada a quem planejasse se mover fazendo um mínimo de ruído. O homem provavelmente era um médico, dado o rosto muito bem barbeado – hábito incomum em Ataya.

            A mãe se aproximou primeiro, o abraçou e beijou. Ela dificilmente fazia isso – razão pela qual Acaiah ficou tenso. As coisas podiam ser realmente sérias. Talvez ela não houvesse conseguido recuperar seu braço.

            – Eu encontrei o seu braço. – Ela disse, depois de largá-lo. – Foi por muito pouco, mas Geneus me garantiu que será possível religá-lo ao seu corpo. Ele fará isso ainda hoje.

            – Lá se vai a minha licença. – Acaiah brincou. – E a minha infecção?

            – Totalmente sob controle. – O homem que vinha com a mãe e com Valeshka respondeu, estendendo a mão. – Prazer, me chamo Severus. – Acaiah sacudiu o toco enrolado em bandagens, por brincadeira. – A contaminação foi controlada a tempo. O médico do acampamento agiu bem depressa.

            – Eu quero que me matem, da próxima vez. – Acaiah disse, sarcástico. – Nunca mais quero passar por aquilo de novo.

            – Então tome mais cuidado. – Sua mãe o censurou. – Foi um descuido muito grande, Acaiah. Se eu não achasse seu braço, você estaria agora fora dos combates. Para sempre.

            – Era isso ou a cabeça de Beor, mãe. – Acaiah se explicou. – Ele estava ao meu lado, e não viu o ataque que vinha pelas costas. Eu o empurrei, mas não tive tempo de recolher o braço...

            – Se você estivesse rígido, a espada que o atingiu teria se partido em duas antes que conseguisse te fazer sangrar. – Aryah retrucou. – Você precisa escolher, Acaiah. Ou luta como eu o ensinei, ou veste uma armadura.

            Aryah dizia isso porque, entre outras particularidades, Acaiah preferia lutar sem qualquer peça de metal cobrindo seu corpo. Frequentemente, seguia para a linha de frente vestindo calças, as luvas e botas de combate (adaptadas com garras metálicas para combate corpo-a-corpo e melhor fixação no chão arenoso) e carregando sobre os ombros nus a enorme espada de duas mãos, quase da sua altura. Ele alegava que as armaduras atrapalhavam seus movimentos. No estilo de combate que a mãe o ensinara, escolher lutar seminu não era exatamente um problema – o mentalismo enrijecia os músculos de tal forma que só golpes muito violentos eram capazes de feri-lo. Porém, o método de Absalon diluía a capacidade defensiva com o objetivo de poupar energia. A solução que Acaiah encontrou para conciliar os dois extremos foi aprender a ativar o mentalismo de forma extremamente veloz – assim, lutava economizando energia, e só quando precisava, fortalecia o corpo para causar mais estrago ou suportar golpes. Obviamente, essa estratégia era arriscada: um descuido e ele poderia não perceber um golpe, ou enrijecer a musculatura na hora errada. Um atraso banal, e perderia um braço. Exatamente como acontecera.

            – Absalon não usa armadura. – Acaiah respondeu, baixinho, em tom malcriado.

            – A armadura dele é a espada. – Valeshka interferiu na conversa. – E ele concorda com sua mãe. Quando te ensinou a diluir a potência do mentalismo não imaginou que você faria algo estúpido como aparecer para lutar usando apenas as calças e uma espada. Ele não usa armadura porque é capaz de se defender sem uma. Já você luta como um lenhador cortando uma árvore.

            – Também estou feliz em te ver, Val. – Acaiah se dirigiu a ela, encenando um beijinho através do ar. – Sua presença em meu leito agrava minha vontade de morrer. Não sabia que se importava.

            – Não me importo. – Ela respondeu. – Mas preciso voltar à linha de frente com alguma notícia a seu respeito, para Absalon saber se já pode desocupar sua vaga e substituí-lo por alguém equivalente. Eu conheço um toco de carvalho que é perfeito para a função. Sempre que saio da minha tenda de manhã, tropeço nele. Mais ou menos como você faz quando saímos em alguma missão que exija um pouquinho de sutileza.

            Trocar farpas com Valeshka era uma excelente forma de descontrair quando a tensão se avolumava. Entretanto, Acaiah nunca soubera se ela realmente estava brincando ou se o detestava. Levando em consideração que ainda passariam alguns anos lutando lado-a-lado, era melhor nem saber.

– Pois diga ao toco que ele vai ter de esperar. Acho que volto em no máximo uma semana.

– Não, não vai. – A mãe voltou a se manifestar. – Pelo menos, não nos próximos dois meses. Você precisará ir à Migdala e participar do Rito do Renascimento. Esse acidente só adiantou a sua licença.

Por um momento, Acaiah não assimilou direito a informação. Havia passado tanto tempo treinando, lutando, ferindo-se, recuperando-se e tornando a lutar, que não percebia o tempo passar. O mundo exterior, longe do sangue, da lama e da sujeira lhe fora negado havia tanto tempo que quase o esquecera. Era verdade. Tinha dezessete anos, e já treinava havia quatro.

De repente, uma onda de sentimentos confusos lhe atingiu. Como se sua mente estivesse adormecida, e agora voltasse a trabalhar, desenterrando coisas há muito esquecidas. Lembrou-se da irmã, que com certeza deveria estar tão robusta quanto a mãe. Será que teria se casado? Lembrou-se do pai, das gêmeas, de Uzias. Ele deveria estar enorme. Algo na sua cabeça não conseguia associá-lo ao ofício de Profeta – era engraçado imaginá-lo usando um manto, falando macio e fluente. Havia os outros – Lênis, Veridane, Iadah, Mordecai e... e Sarina. Ela deveria estar maravilhosamente linda àquela altura. E por mais que soubesse – era estupidez alimentar qualquer esperança – algo lhe dizia que ela não estaria casada quando a reencontrasse. Um embrulho, no meio do peito, lhe lembrou de uma sensação que havia muito não sentia: a saudade.

Não conseguiu conter o sorriso. Na última vez que estivera acordado, havia perdido um braço, se contaminado com uma enfermidade mortal e achou que não sobreviveria para ver o sol nascer. Agora, recebera a notícia de que estava curado, teria seu braço de volta e ainda por cima reveria seus amigos de longa data.

Era realmente um dia de sorte.

Olhou para a mãe, e ela o observava com olhar preocupado. Talvez estivesse fazendo cara de bobo. Ele próprio se sentia bobo. Constrangido, tudo o que conseguiu pensar em dizer foi:

– Então eu deixei arrancarem meu braço fora para nada?

O pequeno grupo de viajantes cavalgava pelas estradas que cruzavam a Cordilheira dos Profetas tendo o pôr do sol alaranjado à direita, a cidade de Ataya às costas e todo o caminho até Nedavya pela frente.

Apesar de o médico ter considerado seu braço totalmente curado, Acaiah sentia o impulso obsessivo de coçar a parte onde os pontos haviam sido aplicados. No local, uma cicatriz lívida, da espessura de um bracelete. A recuperação foi demorada porque a operação não envolveu apenas religar a parte amputada de volta ao corpo – a ausência da parte que havia sido contaminada e posteriormente removida com uma serra preaquecida faria com que seus braços ficassem desiguais. Um complicado processo de regeneração e distensão muscular, e mais um monte de procedimentos dolorosos dos quais Acaiah não fazia questão de conhecer detalhes o devolveram à saúde como novo, ou quase.

Cavalgando ao seu lado estavam a mãe, Absalon, e mais três ordenados que deveriam acompanhá-los e cuidar de sua segurança, o que era muito estranho – afinal, havia dois Guardiões fazendo parte do grupo.

A razão pela qual Aryah estava viajando era simples: estava de licença. Depois de um ano inteiro lutando na fronteira, havia conseguido permissão para se ausentar algumas semanas. Estava com saudades da filha e do marido.

Absalon, por outro lado, tinha assuntos importantes a tratar com Enoch, o Ancião da Ordem dos Canais. Ia levar uma mensagem de Zarede e trazer atualizações das pesquisas sobre a Praga, que estavam sendo conduzidas em Zuria e Migdala.

A verdade, porém, era que o Ancião Zarede o estava forçando a tirar uma licença – algo que não fazia nos últimos quatro anos. Os outros três acompanhantes também eram ordenados em licença – mas estavam em missão. Tinham dois objetivos. O primeiro era conseguir convencer Absalon a se consultar com um Canal, especialista em problemas mentais, na cidade de Migdala. O segundo era garantir que ele se divertisse.

Podia parecer algo banal, mas o estado emocional dos ordenados, principalmente dos comandantes, era assunto muito importante nos acampamentos. Absalon seguia cumprindo suas tarefas com a total eficiência, mas os médicos alertaram contra uma possível ameaça à sua saúde, causada pelo excesso de tempo ininterrupto na frente de batalha. Tanta dedicação era na verdade uma forma de bloquear sérios problemas internos pelos quais passava, e que deveriam ser tratados.

Ele, claro nada sabia a respeito dessa conspiração para obrigá-lo a consultar um médico e divertir-se um pouco. Acaiah só soubera por que sua mãe lhe explicou tudo, reiterando o total sigilo das informações que lhe dera.

Não que precisasse do aviso. Acaiah concordava que seu mentor precisava de um descanso, assim como ele próprio. Os últimos anos haviam sido selvagens, e as semanas que viriam com certeza seriam um descanso merecido. Seu coração estava agitado, ansioso para rever os velhos amigos, ainda que uma parte de sua mente insistisse em lembrá-lo: havia um lugar para o qual retornaria, onde a vida era simples e cruel, e a cabeça que recostava no travesseiro poderia não estar sobre os ombros no dia seguinte.

Por hora, no entanto, esse dia não havia chegado. E se havia uma coisa que Acaiah aprendera no campo de batalha, era a viver cada dia de uma vez.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo