O pouco do dia que era possível divisar entre as opressoras nuvens da tempestade vindoura já havia muito alaranjado. O tom de ferrugem que rapidamente migrava em direção ao negrume da noite alertava aos desesperados combatentes que a as próximas horas seriam selvagens. De um lado, um punhado de oficiais defendia suas vidas já quase exauridos de força e expectativas. Do outro, uma tropa maciça já quase reduzida à metade estava espremida entre a desmoralização de perder um número enorme de homens para um grupo menor que um destacamento, ou o fracasso total de desistir àquela altura e recuar para tentar um plano diferente. Fosse qual fosse o caso, nenhum dos grupos estava realmente disposto a seguir lutando noite adentro, mas também não tinham a permissão de seus comandantes para desistir.
 
Agir com justiça. A primeira obrigação de um Profeta. Nas palavras, nas ações, nos pensamentos. Em combate, isso significava usar apenas a força necessária. Nem mais, nem menos. Uzias conhecia o princípio, e nas poucas vezes que precisou se defender, a regra definitiva era a de nunca causar mais estrago que o suficiente para parar o inimigo. A questão importante cá agora era: quanto estrago era considerado o bastante para deter alguém como Acaiah? Não havia tempo para argumentação. O grito soluçante de Abigail foi o gongo. O sinal. A pedra que caía no chão em uma briga de rua. Ela gritou porque mal viu o movimento que tombou uma árvore próxima, vítima de um golpe letal que lhe partira o tronco. Uzias pulou para
Se havia um lugar em Ataya do qual pouco se conhecia a existência, era o calabouço na sede da Ordem dos Redentores. Normalmente destinado aos criminosos que, pegos cometendo crimes dentro dos muros, aguardavam julgamento antes de serem enviados a alguma unidade prisional na floresta, raramente era usado por serem baixíssimas as ocorrências criminais tão graves dentro da cidade. Suas paredes de pedra rachada exibiam fendas abertas por raízes que desciam desde o solo acima. Quase não havia luz – a pouca que entrava o fazia através de pequenas fendas no teto que davam para o salão principal da ordem. O frio que fazia ali, ao menos, era menor que o de estar ao ar livre no meio do inverno, mas ainda assim doía nos ossos e retesava os músculos. Sobre o chão de barro batido havia restos de comida em pratos de madeira, alguns copos vazios e sangue fresco. Apesar de amplo, o l
Nevava havia dois dias e não havia qualquer sinal de que pararia pelas próximas semanas. O branco já havia coberto as raízes das árvores, e logo começaria sua lenta subida pelos caules. Em anos difíceis, um homem alto poderia ficar até os joelhos preso na neve. Era possível acrescentar um palmo ou dois à medida que se avançasse nordeste adentro e dizia-se que, na fronteira com Volstania, um homem podia ter neve até a cintura impedindo-o de prosseguir. Simplesmente avançar nessas condições era duro, mas pior ainda era fazer uma busca. Em condições normais, ninguém se atreveria a tentar encontrar um corpo específico soterrado no gelo em meio a um campo de batalha. Uma tropa podia fazer o trabalho mais rápido que um indivíduo, mas tão desmotivados pelo frio, os homens só pensariam em terminar logo e retornar para perto das fogueiras do acampamento. Os oficiais teriam tentado persuadir o comandante a desistir, pelo bem da tropa. &n
Por mais pobre que houvesse sido, a prisioneira Número Setenta e Dois até então jamais havia aberto mão de certas vaidades. O longo cabelo penteado, ou trançado, por exemplo, era talvez a maior delas. Quando criança, ele caía sobre suas costas como uma volumosa cascata dourada. Ela gostava de ver sua mãe o trançando ou penteando, diante do enorme fragmento de espelho que tinham no quarto, enquanto ela ouvia histórias sobre seu pai ou músicas assobiadas. Mesmo quando ingressou no exército, e se submetera a treinos extenuantes sob o sol ou sob a água salgada do mar, tratava as madeixas lanosas como uma mãe a um filho querido. Por mais que sua rotina de treinamento cumprisse bem sua função de libertá-la de vaidade e individualidade, aquele aspecto de sua alma feminina permanecera intocado, lembrando-a sempre de que, antes de um soldado, ela era uma mulher. Uma mulher bonita, com lindos e longos cabelos loiros. N
O primeiro livro da trilogia O Homem no Trono teve uma lista comprida de agradecimentos. Nela, expus todas as pessoas que, em minha convivência, serviram de inspiração involuntária para a criação dos principais personagens da história. Muito tempo se passou entre a conclusão daquele e a deste. Muitos deles mudaram. Alguns para melhor, outros nem tanto, mas sem dúvida nenhum deles é mais o mesmo. Algo semelhante aconteceu aos personagens em quem foram inspirados. Estão mais maduros, mais fortes, mais cientes do tamanho da responsabilidade que é crescer e se tornar adulto. Esta nota é um esclarecimento sobre algumas mudanças. Se o livro anterior, com suas aventuras adolescentes pontuadas por momentos de tensão, angústia e catarse podia ser considerado um livro infanto-juvenil, este cá com certeza já não pode mais se dar ao luxo de fazê-lo. Assim como os personagens, o tom da história está mais maduro, mais pesado, em especial quando mergulha nas angústias e
A menina se chamava Leah. Estava cabisbaixa, fitando os próprios pés enquanto desejava estar em qualquer lugar que não fosse aquele. Ao seu redor, muitas pessoas, sussurrando, vociferando, questionando e discutindo. Diante de si, estavam os homens das leis, que tinham o poder de encarcerar pessoas. Seu pretendente, Hapfah, os havia chamado para que a recapturassem, depois de ter fugido, para evitar o casamento. Seu futuro marido havia dito que a levaria para longe de sua família tão logo se casassem. Leah tinha treze anos e era habitante de um pequeno povoado instalado à beira de um poço nas proximidades de Zefanya. Hapfah era um mercador de cristais, dezesseis anos mais velho, cujo negócio exigia viagens constantes. O que assustava Leah a ponto dela fugir de seu futuro marido não era sua aparência ou modos, mas sim o fato de não querer ver-se longe de seus pais, irmãos e irmãs. Sua fuga, porém, havia causado um problema enorme. Nos povoados, era muito comum
Madrugada. O silêncio era interrompido pelo estalo oco dos passos despreocupados que cruzavam os corredores fracamente iluminados da ala feminina na ordem dos Armígeros. Os pássaros que cantarolavam o nascer do sol ainda não haviam começado o seu ofício, e a maioria das jovens que ocupava os aposentos atrás das sólidas portas de madeira dormia. Mesmo que a pessoa transitando por aqueles corredores fosse um ordenado, era bastante incomum que um homem caminhasse por aquela ala antes que as trombetas ruidosas anunciassem o toque de despertar e dessem por iniciadas as agitadas rotinas naquele edifício. Se ele fosse um adolescente, como os rapazes em treinamento, com certeza seria advertido, se pego, e passaria o restante do dia em alguma tarefa bastante desagradável, como limpar as latrinas ou descascar batatas na cozinha. O deambulante conhecera bem essas funções, já que tivera, em sua própria juventude, o hábito de se encontrar com algumas das
Sem dúvida, aquele era seu dia de sorte. Se havia alguma coisa pior que a dor, com certeza era a sensação de perder um membro. Justamente aquele desespero que dominava todos os pensamentos, quando se percebia o braço que deveria segurar a arma transformado em um toco sangrento. Ou quando se estava correndo, e depois de um tropeço no meio do caminho, levava a mão ao calcanhar para verificar o tamanho do estrago e sentia a ponta do osso da perna, estilhaçado, e separado do pé por uma armadilha terrestre diabolicamente plantada no meio de um arbusto inofensivo. Não que houvesse isso de arbustos inofensivos na linha de frente. Nem arbustos, nem árvores, nem cadáveres inofensivos. Nem nos companheiros mortos era possível confiar. Já vira acontecer do seu lado. O sujeito parava de correr, encostava-se em uma árvore perto de um cadáver qualquer, estropiado. Na primeira semana, um cadáver era sempre