A menina se chamava Leah.
Estava cabisbaixa, fitando os próprios pés enquanto desejava estar em qualquer lugar que não fosse aquele. Ao seu redor, muitas pessoas, sussurrando, vociferando, questionando e discutindo. Diante de si, estavam os homens das leis, que tinham o poder de encarcerar pessoas. Seu pretendente, Hapfah, os havia chamado para que a recapturassem, depois de ter fugido, para evitar o casamento. Seu futuro marido havia dito que a levaria para longe de sua família tão logo se casassem.
Leah tinha treze anos e era habitante de um pequeno povoado instalado à beira de um poço nas proximidades de Zefanya. Hapfah era um mercador de cristais, dezesseis anos mais velho, cujo negócio exigia viagens constantes. O que assustava Leah a ponto dela fugir de seu futuro marido não era sua aparência ou modos, mas sim o fato de não querer ver-se longe de seus pais, irmãos e irmãs.
Sua fuga, porém, havia causado um problema enorme. Nos povoados, era muito comum que as famílias dos noivos dessem uma grande quantidade de presentes para as famílias das noivas, como um sinal de que as moças a serem desposadas teriam um bom futuro. Sua família havia recebido uma boa quantia em ouro e cristais pelo casamento. Porém, por culpa de sua fuga, Hapfah estava cancelando o casamento e exigindo os presentes de volta. Só que seus pais já tinham gastado parte do dinheiro, e não tinham condições de ressarci-lo naquele momento. Como o cancelamento havia sido culpa dela, se seus pais não pagassem o noivo, ela seria presa.
Havia, entretanto, uma esperança: o homem que estava ao seu lado, falando alto, para todos os outros ouvirem. Ele estava tentando resolver sua situação, como vinha fazendo com grande parte dos casos abertos contra as pessoas dos povoados. Era famoso naquela região e conhecido por ser justo – cobrava apenas o que as pessoas defendidas pudessem pagar. Leah ouvira uma vez que havia defendido uma família inteira em troca de uma tigela de ensopado.
Ergueu os olhos na direção de onde a família estava sentada. Estavam tensos. Seu pai estava irritado, e sua mãe, cabisbaixa, parecia querer se enterrar no chão de vergonha. Seu irmão mais velho tentava, através de gestos, acalmá-la. Dizer que ia ficar tudo bem. Afinal, seu caso estava sendo defendido pelo Profeta da Montanha.
Uzias estava defendendo o caso da menina havia um quarto de hora. A situação era simplíssima, mas como de costume, o tribunal vinha dificultando o andamento do processo. Tentando desestabilizá-lo. Os magistrados sabiam que ele tinha mais dez pessoas para defender até o fim do dia, e que cada minuto consumido em casos menores, como o de crianças fugindo de casamentos arranjados lhe prejudicava na defesa de situações mais complicadas, como revisões de pena, homicídios acidentais e dívidas de colheita. O noivo, um homem temperamental, era difícil de convencer, e o defensor dele tinha o apoio certo dos Magistrados, mas não da Escola.
Basicamente, em julgamentos ordinários como aquele, o tribunal era composto pelas partes envolvidas (um réu e um acusador), seus defensores (um para cada), os Magistrados (cinco Profetas escolhidos para presidir o julgamento – quando Uzias defendia, eles sempre eram os Guardiões da ordem, acompanhados de Mizalael, o substituto de Levana e segundo em hierarquia), e a Escola de Profetas (trinta ordenados, dos quais dez eram escolhidos pelos magistrados, e os outros vinte eram escolhidos pelos dois defensores, em proporções iguais). A dinâmica do julgamento era simples: cada defensor exibia sua defesa, e a Escola de Profetas votava. No caso de empates, os Magistrados decidiam o impasse.
A dinâmica aparentemente simples escondia uma trama complexa de apadrinhamentos, troca de favores, subornos e favoritismos. A defesa era apenas a parte visível do julgamento, que em alguns casos era mera formalidade. O verdadeiro definidor dos resultados era pautado no relacionamento entre os defensores e os componentes da Escola de Profetas. Conseguir votos para sua defesa era a parte mais complicada. Envolvia conversa, convencimento, e a indicação cuidadosa de cada pessoa que ocuparia um dos dez assentos a que teria direito. Uma defesa bem articulada tinha a principal função de tentar convencer os outros dez, escolhidos pelo defensor adversário. Normalmente os dez escolhidos pelos Magistrados sempre votavam contra o réu (quando Uzias o defendia), então era claro que tentar convencê-los era perda de tempo.
A defesa naquele caso era simples: envolvia sugerir libertar a menina e estipular um prazo maior para a devolução do valor doado ao noivo, que poderia ser acordado posteriormente. O problema era que o defensor adversário havia convencido o homem a não aceitar nenhuma renegociação, complicando muito um possível acordo. Para piorar, a bancada estava realmente dividida – Uzias confiava nos dez que escolhera, mas não sentia segurança nos Profetas escolhidos pelo adversário. Sem a garantia de conseguir pelo menos seis dos ordenados escolhidos pelo adversário, a votação da parcela escolhida pelos Magistrados o esmagaria.
– O meu defendido não aceitará nenhum acordo posterior. – O defensor adversário bradou, sendo ouvido por todo o tribunal. – Se ele não receber o que lhe é devido, manterá o processo. Ele presenteou a família da noiva em uma grande quantia, doada de uma única vez, e assim deve ser ressarcido. Se a defesa da noiva não tem nenhum outro ponto de argumentação, eu solicito a votação da Escola de Profetas.
Evidentemente, o adversário estava muito ansioso para que houvesse votação, já que sua vitória era quase certa. Não era segredo na Ordem dos Profetas que boa parte dos magistrados nutria antipatia por Uzias, e certamente a sua derrota seria de, no mínimo, vinte votos a dez. Porém, o objetivo ali não era necessariamente vencer uma votação. Era libertar a menina. E isso podia ser conseguido por outros meios.
– Eu gostaria de falar ao defendido de meu adversário. – Uzias solicitou.
– Concedido. – Mizalael, o chefe dos Profetas, e segundo em comando na ordem, autorizou. Era óbvio que ele estava ansioso para ver Uzias tentar comovê-lo, ou convencê-lo, e falhar diante de todos. Hapfah com certeza era um mercador avarento e muito espirituoso – evidentemente não seria convencido por nenhuma sorte de argumentos.
– Qual o valor exato, em moedas, da dívida contraída pela família? – Uzias perguntou a Hapfah.
Todo o ar pareceu fugir do salão.
Como qualquer ordenado, Uzias recebia um generoso soldo pelo seu serviço à ordem. Esse dinheiro era presumivelmente usado para a sua manutenção, alimentação e estudos. Porém, por ser discípulo de Levana, a Anciã da Ordem e administradora direta das finanças, seus recursos poderiam ser considerados tão extensos quanto os do tesouro de Zefanya, desde que se dispusesse a convencer sua mestra a financiar suas ideias. A questão era: o dinheiro que Uzias usava era diretamente descontado das finanças da ordem – basicamente todas as vezes que ele resolvia pagar ou indenizar alguém mediante um processo, era na verdade a ordem quem lidava com o prejuízo.
Normalmente Uzias não cedia à tentação de resolver tudo com ouro, afinal, era para usar as leis que ele estava estudando. Nas poucas vezes que resolveu pagar do próprio bolso indenizações ou fianças, Levana pareceu muito contente por perturbar os Magistrados retirando do tesouro todo o valor, sem descontar uma única moeda do soldo normal de seu pupilo. Mas ela o havia alertado que ser um profeta implicava em respeito – e ninguém o respeitaria se recorresse o tempo todo a atalhos financeiros para resolver seus problemas.
Por isso havia feito aquela pergunta. Ele não pretendia pagar o valor que a família devia ao mercador de forma alguma. Ele estava blefando, ameaçando os Magistrados onde lhes doía mais: na sacola de moedas.
– O valor do presente foi de cento e trinta e seis moedas. – Hapfah respondeu, visivelmente interessado na pergunta de Uzias, para desespero do adversário e dos Magistrados. Por mais que a ordem fosse rica, aquela era uma soma considerável de ouro.
– Mas nós ainda temos cem dessas moedas! – De repente o pai da menina levantou-se e esbravejou, interrompendo o julgamento. – Se tivéssemos mais tempo, poderíamos...
– O senhor não foi convidado a falar! – Mizalael o interrompeu. – Se voltar a interromper o julgamento, será convidado a sair!
Uma intervenção inesperada. Então a família da moça ainda tinha a maior parte do valor. Aquilo mudava muita coisa, em favor de Uzias.
– Já tenho minha proposta final. – Uzias ergueu a voz mais uma vez. – A família devolverá o valor que ainda retém dos presentes, e a Ordem dos Arautos complementará o que faltar. A família da noiva se tornará responsável por devolver à Ordem o valor excedente, dentro de um prazo estipulado que seja igualmente confortável para a Ordem e para a família.
Todo o tribunal estava em silêncio. Uzias havia fechado o círculo. A Ordem poderia escolher entre vetar a sua sugestão sob a ameaça de ter o valor inteiro da dívida subtraído de seus cofres, caso Uzias decidisse indenizar o mercador por conta própria, ou aceitar a proposta e dar-lhe a vitória. Era uma questão de escolher entre o bolso e a vaidade. E Uzias tinha certeza de qual dos dois os Magistrados sacrificariam.
– Existem contrapropostas? – Mizalael perguntou ao defensor adversário.
O defensor adversário estava tenso, pensativo. Hapfah, por outro lado, parecia muito satisfeito, já que sairia ganhando de qualquer forma. Era só um homem em busca de seu ouro, e gente assim se convencia facilmente, se fosse possível lhe dar o que desejava.
– Eu preciso... preciso pensar. – O defensor adversário balbuciou, baixo. Estava evidentemente inseguro.
Uzias percebeu que já havia vencido, mas se o outro defensor pedisse um recesso, seria mais tempo jogado fora. Ainda havia dez processos a serem resolvidos apenas naquele dia. Resolveu pressioná-lo:
– Escute, – ele disse, em voz baixa, ao outro defensor – não há mais o que pensar a respeito. Todos saem ganhando com a proposta. Eu, você, a tribuna. Não há necessidade de prolongar mais isto. Se você pedir um recesso, só me dará tempo de conversar com seus dez representantes na Escola e convencer os que ainda estão divididos. Você pode encerrar o caso agora em uma votação equilibrada, ou perder por uma votação esmagadora, depois do recesso.
Aquele era o argumento definitivo. Perder um processo por uma defesa mal articulada ou por uma votação desfavorável era ruim, mas ordinário. Porém, quando a bancada adversária e a sua bancada votam a favor do adversário, era humilhante. Os Profetas chamavam isso de facada entre os ombros – quando a maioria dos dez componentes que você escolhera para ocupar os assentos na Escola de Profetas votava a favor do adversário.
– Não há contraproposta. – O adversário finalmente se decidiu, vencido.
– A escola já pode votar. – Mizalael anunciou. – Ergam as mãos aqueles que apoiam a proposta de Uzias, discípulo de Levana, da cidade de Ataya.
Lentamente, as mãos começaram a se erguer. Pela ordem estabelecida, primeiro votavam os indicados pelo defensor da proposta. Depois, os indicados pelo defensor adversário. Por fim, votavam os indicados pelos Magistrados. Essa ordem de votação, como tudo no sistema judicial, era proposital. Uma vez que os primeiros a votar eram os escolhidos pelo defensor da proposta, se tornava simples saber de quantos votos era preciso para vencê-los ou apoiá-los. Se os indicados pelo adversário votassem todos como se esperava (ou seja, em quem os indicou), cabia aos Magistrados decidir, por maioria simples, se vetavam ou aprovavam. Assim, nem os escolhidos pelo autor da proposta, e nem os escolhidos pelo adversário precisavam ser obrigados a votar contra quem os indicou. Essa situação, em que a votação empatava com dez votos de ambos os lados sendo decidida pelos dez indicados pelos Magistrados era o que Uzias esperava daquele julgamento.
Um a um, os votos iam sendo contados. Os dez ordenados que Uzias indicara votaram em seu favor. Os dez indicados pelo adversário votaram contra, como esperado. Seis dos indicados pelos Magistrados votaram a favor, e quatro contra. A proposta foi aceita, com uma maioria de dezesseis votos a catorze. Uma votação equilibrada.
Como previsto, os Profetas sacrificaram a vaidade em favor dos bolsos.
O fim do dia trouxe um saldo positivo animador: dos doze processos que defendeu, oito foram votados a favor de sua defesa, e dos quatro que foram votados contra, dois deles eram passíveis de recurso. Entretanto, havia ainda os dois processos totalmente perdidos.
Dois anos atrás, quando Uzias ainda engatinhava no ofício de defensor, qualquer caso perdido era suficiente para deixá-lo três dias sem dormir direito. Isso não acontecia tanto pela vergonha da derrota, ou pela ansiedade diante da expectativa que havia se criado ao seu redor (era, afinal, discípulo de Levana), mas sim por seu coração mole. Uzias não pensava nos processos. Pensava nos processados.
Desde muito cedo, sua mestra havia lhe advertido que seu coração mole era sua maior dádiva e também seu maior defeito. Em grande parte do aprendizado sobre as leis, o tribunal e os ofícios de defensor, se concentrou em treiná-lo para evitar a empatia quando fosse preciso, e a aceitar que nem sempre é possível vencer.
“Lembre-se,” – Levana dizia – “que às vezes pessoas inocentes são julgadas injustamente, mas na maior parte dos casos, o acusado é culpado, e como tal, precisa enfrentar as consequências dos seus atos. Um verdadeiro Profeta deve garantir que a vítima possa ser compensada na medida do possível, e que o culpado seja punido, na proporção de seu crime. Essa é a essência de ser bom e justo.”
Uzias organizou seus livros e pergaminhos em uma sacola, a lançou sobre os ombros e deixou o pequeno cubículo ocupado por uma cama, uma escrivaninha e uma canastra, que habitava durante os cinco dias nos quais exercia seu ofício na sede da ordem. Atravessou os corredores, saindo pelos fundos e tentando passar despercebido.
– Ele vai lá! – Ouviu a voz esganiçada gritar, na outra ponta do corredor, às suas costas. – Uzias! Espera!
O matraquear dos passos apressados ressoou pelo corredor vazio, ocupado por esculturas e colunas cobertas por véus vermelhos e dourados. Uzias virou-se, esperando que os três não lhe tomassem muito tempo. Estava cansado, e esperava dormir sob sua manta de cordeiro ainda naquela noite.
Os três pararam diante dele, afogueados e extasiados. Dois meninos e uma menina, ambos com treze anos.
A menina, chamada Loni, tinha os cabelos cheios, rebeldes e avermelhados. Era pequenina, e tinha o rosto muito sardento. O menino mais alto se chamava Béres, e tinha o olhar esperto, além da pele branca como cera de vela e cabelos pretos. O outro menino, Junio, era quase da altura de Loni, quieto e pensativo, loiro até o último pêlo do corpo.
– Suas defesas foram incríveis! – Loni o elogiou, com a voz esganiçada de menina nervosa. – Especialmente a do camponês que...
– Acho melhor irmos direto ao assunto. – Júnio a interrompeu. – Ele está cansado, não vê? – Depois se voltou para Uzias. – Ah, o senhor... o senhor poderia nos ajudar em uma tarefa?
– Tarefa? – Uzias perguntou, intimamente desesperado para que a tal ajuda fosse algo rápido. – Do que se trata?
– O nosso professor de teoria nos pediu que entrevistássemos um veterano. – Béres se adiantou. – Para que ele nos respondesse a algumas perguntas... e escolhemos o senhor.
Ser chamado de senhor fora uma das experiências mais estranhas com as quais Uzias precisara se acostumar desde que granjeara algum prestígio entre as pessoas que defendia e alguns dos novatos na ordem. Aqueles três em particular eram os que mais o importunavam, seguindo-o de cima a baixo, presenciando todas as suas defesas e o atrasando no retorno à tenda que aprendera a chamar de casa, na montanha. Por mais que os quatro últimos anos lhe tivessem rendido um extenso vocabulário, o qual usava principalmente diante dos Magistrados, ainda preferia manter seu semblante sério e o hábito de falar apenas quando solicitado. Levana, entretanto, o exortava continuamente a manter o maior número possível de bons relacionamentos, porque isso o ajudaria a conseguir indicados mais confiáveis para ocupar os assentos na Escola de Profetas. A razão pela qual aturava com bastante paciência a perseguição constante de Loni, Júnio e Béres se devia ao fato de ambos os três serem filhos de Profetas com quem tinha uma relação cordial, e que normalmente votavam a favor de suas propostas.
Além dos pais deles, havia um pequeno número de ordenados que concordavam com muitas das posições de Uzias, mas por razões diversas não compartilhavam de sua determinação em se expor e enfrentar a oposição. Se por um lado Uzias não podia culpá-los, afinal, era ele quem esbravejava sob a proteção e influência de Levana, por outro sentia que mudanças muito mais significativas podiam ser alcançadas se mais Profetas se unissem à causa. Ainda assim, dentre todos os ordenados com quem tinha contato, havia um grupelho de seis ou sete que realmente haviam compreendido a necessidade de mudança que o sistema da ordem precisava – e hoje, dois anos depois de começar a fazer suas primeiras defesas, Uzias já podia contar com sua ajuda para assumir as causas dos povoados, eventualmente votar processos e até mesmo beber um pouco de cerveja nas barracas em dias de feira, depois do expediente.
Quando os três finalmente se satisfizeram com as respostas, Uzias ficou feliz em caminhar sozinho pela estrada marcada com estacas que seguia cidade afora até o pé da montanha.
Olhou o céu, e ele estava deslumbrante. Uma noite sem lua, na qual as estrelas se agrupavam de tal forma que pareciam um rio, fluindo em direção ao horizonte. Quando era criança, Uzias aprendeu a apreciar as copas das coníferas se erguendo ao seu redor como uma muralha altíssima, que exibia um pequeno recorte do céu quando ele deitava no chão da floresta e olhava para cima. Era outro tempo, e por que não dizer, outro Uzias. Uma criança ressentida que parodiava nas árvores os muros de uma fortaleza, na qual podia se refugiar e deixar todos fora. Muito caminho havia sido percorrido entre o menino tímido que se escondia no mato e o homem que ele havia se tornado.
Quando subiu a Montanha da Profecia pela primeira vez, quatro anos atrás, a ideia que tinha de um Profeta era fortemente influenciada pelo que vira durante o teste de Lênis – homens eruditos, de muitas palavras e pouca força. Essa havia sido a primeira ilusão que sua mestra destruíra.
Levana não havia treinado Uzias para ser um mero estudioso. Ela queria um guerreiro completo, de corpo, mente e coração.
O corpo de Uzias foi o primeiro a ser moldado à luz do que sua mentora considerava ideal. Ele perdeu as contas de quantas vezes fizera o percurso entre Zefanya e a montanha, carregando sobre os ombros pesados fardos de mantimentos, utensílios e outros volumes que eram transportados para cima e para baixo. Quando não estava carregando mantimentos, cavava poços apenas para enterrá-los de novo, rolava pedras, escalava rochas, corria, saltava e, depois de um ano inteiro, descia a montanha e desafiava homens aleatórios nos povoados, recompensando com ouro aqueles que o vencessem em toda a sorte de disputas, que iam de quedas-de-braço a lutas com os punhos. Apenas quando ele passou a voltar para a montanha trazendo consigo todas as moedas que tinha ao sair, Levana o ensinou a lutar de verdade. E Uzias tinha de reconhecer, a mulher sabia o que estava fazendo. Ela o ensinou a manejar um bastão com habilidade, propósito e eficiência. O cajado era a arma padrão dos Profetas porque, sem extremidades pontudas ou afiadas para cortar ou perfurar, todo o poder de destruição dependia unicamente da habilidade do usuário em medir a própria força. Assim como deveria pensar e falar com justiça, um Profeta deveria agir com justiça – e em combate, isso significava usar apenas a violência necessária. Nem mais, nem menos. E à medida que lutava, treinava e crescia, a altura natural de Uzias se somava a um corpo que ganhava força, vigor e volume.
A sua mente passou por um tratamento semelhante. Levana mostrou-lhe limites que ele mesmo jamais julgaria alcançar. Ela o havia ensinado a ler. A conhecer as leis, a praticá-las, a utilizá-las. O ensinou como falar, com elegância e coerência. Apesar de ainda manter o semblante sério e o sorriso estreito, agora o fazia por opção, e não por timidez. Ele também havia aprendido sobre diplomacia, estratégias de guerra e etiqueta. Toda essa mudança física e intelectual, entretanto, tinha como objetivo prepará-lo para o domínio de forças ainda mais estranhas, e que ele antes julgava inalcançáveis.
Levana o havia dito, ao fim do primeiro ano de treino, que cada pessoa possuía um talento específico para o domínio das forças da natureza e que, em geral, era um reflexo da personalidade individual. Esse talento era formalmente chamado de elementalismo. Ela, por exemplo, era uma elementalista do fogo, e isso era visível em sua personalidade forte e agressiva. Apesar de ser possível aos praticantes desenvolverem mais de um elementalismo, o mais forte sempre seria aquele influenciado por sua personalidade. Ela o ensinou a conhecer, identificar, e fortalecer seu talento até que, com um momento de concentração intensa, ele pudesse ser capaz de erguer ao seu redor paredes de rocha e pedra, cavar fossos debaixo de seus inimigos, e dentro das condições adequadas, fazer brotar plantas que podiam variar de pequenos arbustos até árvores enormes. Três anos depois de iniciado o treinamento, Uzias era um proeminente elementalista da terra.
E, quando ele acreditou que nada mais poderia ser extraído daquele treinamento extraordinário, a mudança definitiva se operou dentro de sua alma. Indo além da mente e do corpo, sua mestra lhe havia iniciado no caminho em direção ao Eterno. Como um verdadeiro Profeta, Uzias deveria ser capaz de lidar com o Criador. De comungar com o infinito, percebê-lo em cada aspecto de sua criação e assim encontrar respostas para suas perguntas n’Aquele que tudo sabe, porque tudo fez.
Essa foi a parte mais complicada. Levana o havia advertido que a maioria dos mestres ensinava teurgia a partir de ritos complicados e alusões obscuras, mas na verdade o caminho era absurdamente simples. Com tempo e paciência, Uzias foi começando a compreender. No começo, era apenas uma voz tímida em sua mente – que ele temia, apavorado, ser algum vestígio da potestade que habitara seu corpo anos atrás. Depois, passou a reconhecê-la, e distingui-la de sua própria voz, quando pensava. Suas preces unilaterais se tornaram longas conversas com a voz que ressoava em seu íntimo, e um dia, de repente, durante um de seus longos exercícios de contemplação, ele se viu retornando ao Trono em Chamas.
O assento seguia da mesma forma que o deixara desde o combate contra a potestade – sendo consumido pelas chamas. Lá, a voz que se comunicava com ele era mais forte, mais intensa, e mais calorosa. Mas o lugar não era mais uma floresta escura e chuvosa. Era um bosque iluminado, cheio de vida. Muitas foram as vezes que Uzias sentou-se, diante do Trono, e conversou longamente com aquela voz reconfortante, que estranhamente não tinha som, e não era masculina ou feminina. E à medida que suas perguntas iam sendo respondidas, seu corpo, mente e alma cresciam.
Tão logo Levana sentiu que estava pronto, lhe falou sobre o poder dos Profetas. Um poder que ia além do elementalismo. Não era uma força oriunda de dentro do homem, nem da natureza ao seu redor, mas uma dádiva divina – e como tal, exigia grande responsabilidade em seu uso. Uzias ouviu histórias assombrosas, de reis e exércitos que sucumbiram inteiros, por culpa das ações de um único indivíduo. Ela lhe explicou que a Teurgia era o tesouro máximo das ordens, e como profeta, ele deveria aprender quando e porque conjurá-la, antes mesmo de saber como. Por mais ansioso que Uzias estivesse para poder dominar a dádiva, no entanto, até então nenhum progresso significativo havia sido logrado nessa área. Levana, no entanto, não parecia minimamente preocupada, e aquilo o confortava. Ela costumava repetir, sobre esse assunto, que era melhor uma teurgia bem desenvolvida, mas tardia, que uma precoce e raquítica.
Quando se deu conta, estava já divisando, na escuridão da trilha pela montanha, uma claridade tênue, proporcionada pela fogueira acesa em frente à tenda. Como não havia mais qualquer som, com exceção do vento que soprava gelado, já era capaz de ouvir, ainda que com dificuldade, as conversas.
Antes de se aproximar, no entanto, Uzias ergueu os olhos ao céu mais uma vez. As estrelas continuavam lá, incontáveis e brilhantes. Ele aspirou o ar da noite, sentindo seus pulmões inflarem satisfeitos. Não era mais uma raiz, plantada no solo, buscando nada mais que a segurança e um pouco de água e nutrientes. Era uma conífera jovem, de galhos que iam se esticando em direção à amplitude do céu. Em Ataya, dizia-se que as árvores nunca param de crescer. Era assim que Uzias se sentia. Crescendo, em direção de um horizonte inalcançável, e por isso mesmo, infinitamente amplo.
Aproximou-se do acampamento. Normalmente, a tenda que dividida com sua mestra ficava na metade da montanha, o que significava uma subida de dois dias até encontrá-la. Desde que ele havia começado a exercer a função de defensor, no entanto, Levana achou por bem se instalar mais perto do pé da montanha, reduzindo as jornadas de retorno para três ou quatro horas.
Tão logo se aproximou, ouviu uma cantoria animada e divisou duas figuras dançando ao redor de uma fogueira, sobre a qual um caldeirão fumegava.
A primeira era, obviamente, Levana. Nos últimos quatro anos sua aparência não mudara absolutamente nada em relação ao que era desde que, segundo ela, completara setenta. Uma idosa curvada, de pele negra, cabelos lanosos e brancos, vestindo, independente do tempo, um manto vermelho-vivo com as pontas esfarrapadas, pousado sobre vestes variadas.
A outra pessoa era a mulher com quem dividia morada na montanha havia quatro anos. Alta, esbelta, com longos cabelos castanhos e pele queimada do sol, Deena havia mudado à beira do irreconhecível desde que pusera os pés ali pela primeira vez. O começo do treinamento foi duas vezes mais duro para ela que para Uzias, o que lhe causava uma grande dose de constrangimento. No primeiro ano, Levana era uma mulher arredia, irritadiça, autoritária e muito grosseira. Não tolerava nenhum tipo de questionamento, não abria exceções nas regras duras e contraditórias que estabelecia, e principalmente com Deena, tinha o hábito de ser depreciativa e cruel. Uzias chegou a detestá-la, mas com certeza seu desagrado não era nada comparado ao que Deena deveria sentir. No entanto, contra todas as expectativas, a menina não desistiu. Suportou todos os treinos extenuantes, as humilhações constantes e a clara antipatia de sua mentora. Anos depois, Levana diria que se comportara daquela forma para expurgar, nos dois, mas principalmente em Deena, que era a mais afetada, os maus hábitos oriundos do berço. Indiscutivelmente havia funcionado. De uma garota mimada, vaidosa e fraca, ela havia se tornado uma competente legisladora, eficiente elementalista do ar, e dançarina perturbadoramente graciosa.
Além de ensiná-los os ofícios jurídicos, Levana também cuidara em prepará-los para a vida prática: Uzias aprendeu a cultivar a terra, pastorear ovelhas e negociar todo tipo de mercadoria. Deena aprendeu a cozinhar, a administrar as finanças de um lar, e outros ofícios domésticos. Quando ele completou dezessete anos (altura em que Deena tinha dezesseis), ela os reuniu, e diante de dois jovens muito constrangidos, explicou sobre o cortejo, as núpcias e os deveres matrimonias de cada um para com seus futuros cônjuges.
A vida na montanha acabara se tornando o mais próximo que Uzias jamais tivera de uma família. Com o passar do tempo, a atitude de Levana passou de insuportável à tolerável, depois a cuidadosa, e por fim carinhosa. Ela tinha o hábito de tentar se meter nos aspectos mais básicos da vida deles, como a forma de se vestir, o comprimento dos cabelos (ou da barba), e nas coisas que estavam lendo ou comendo, além de sempre fazer perguntas indiscretas e nutrir pouco respeito pela privacidade dos dois. Quando ela resolvia descer da montanha e visitar a ordem, não poupava elogios lisonjeiros aos seus dois pupilos, e com frequência incitava inimizade entre eles e os pupilos de outros mestres.
Porém, por mais intrometida, voluntariosa e às vezes irritante que fosse sua mestra, Uzias aprendera a amá-la, talvez como amaria uma mãe. Aquele tipo de calor humano era algo que ele jamais experimentara em Ataya, e por mais que gostasse e fosse grato a Absalon, Zarede, Talbo, Mégaro ou Jerusha, o afeto respeitoso que lhe ofereciam era totalmente diferente do tipo de intimidade que se tem com alguém que interrompe um banho no meio, ignora-lhe os protestos e verifica bem de perto se está tudo limpo atrás das orelhas, em geral mandando lavá-las de novo.
– Erga o quadril mais alto, minha filha. – Levana dizia, ao se levantar da almofada onde sentava. – Assim, veja.
Por mais engraçado que fosse ver uma senhora idosa erguer os braços e balançar os quadris freneticamente, Uzias tinha de reconhecer que a sua mestra tinha um rubor de saúde invejável. Enquanto ela mostrava, Deena tentava acompanhar.
– Ah, mas que maravilha! – Levana exclamou, quando Uzias se aproximou. – Agora temos um juiz adequado para avaliar sua perícia. Venha, meu filho. Sente-se aqui e veja Deena dançar.
Uzias conhecia aquele artifício, já que sua mestra vinha lançando mão dele sistematicamente desde que Deena completara dezesseis. Por mais que Levana agisse como se os dois discípulos fossem seus filhos, não os tratava como irmãos. Era comum que se queixasse a Uzias, dizendo que em sua juventude os rapazes eram mais ousados, ou perguntá-lo, no meio de uma refeição, quando ia pedir Deena em casamento, envergonhando os dois. Naturalmente, Uzias jamais havia feito o tal pedido, e a própria Deena não se manifestava a respeito.
O que não queria dizer que a ideia jamais lhe tenha passado pela cabeça.
Deena já era muito bonita quando chegou à montanha, mas os anos de treino haviam transformado seu corpo púbere em um espetáculo para os olhos, à custa de esforço físico contínuo e muitas aulas de dança. E ela não era apenas bonita. Era muito inteligente também, e extremamente esforçada. Uzias a admirava, e já a havia desejado muito, especialmente quando os estudos e treinos os mantinham sempre unidos. Houve uma época em que realmente cogitara pedir-lhe a mão, no final do segundo ano de treinamento, quando treinavam fisicamente pela manhã e intelectualmente à tarde e à noite. Foi a época em que estiveram mais próximos. Confidenciavam um ao outro. Já haviam, inclusive, trocado alguns beijos, abraços e carinhos, nos raros momentos em que conseguiam escapar dos olhos vigilantes de sua mestra, e em ao menos duas ocasiões Uzias quase falhou em controlar seus impulsos e ceder ao calor do momento. Percebendo que estava à beira de ultrapassar seus limites e os dela, chegara a decidir pedir-lhe a mão e fazer as coisas como deveriam ser feitas.
Então veio o treinamento espiritual. As noites que passavam juntos se tornaram longos períodos de meditação e contemplação, que exerciam separados. A distância diminuiu o ardor do desejo, e uma vez que tinha o corpo frio e calmo, Uzias percebeu que a admirava, por sua personalidade decidida e inteligência, e a desejava, por sua beleza e seu corpo, mas não o bastante para tê-la como esposa. A ideia do pedido morreu, primeiro em sua mente e depois em seu coração, e desde então os dois jamais tornaram a se encontrar com a intenção de trocar carícias. Deena tampouco tornou a demonstrar qualquer inclinação do tipo para com ele, e os dois seguiram como grandes amigos e companheiros de treinamento.
Enquanto Deena dançava, animada, Uzias se serviu de uma grande tigela de guisado e passou a ouvir o tagarelar de Levana sobre as qualidades da companheira. Depois do jantar, ele a brindou com cada detalhe dos casos que havia vencido, percebendo o prazer nos olhos dela ao saber que os mestres da ordem estavam incomodados com sua presença nos julgamentos. Deena pediu opiniões sobre as alterações nas leis que pretendia sugerir na semana seguinte, e por algumas horas os três discutiram as consequências, os adendos, e quais Profetas eram mais fáceis de influenciar a favor das alterações. Por fim Deena adormeceu, de bruços sobre uma pilha de pergaminhos, e Uzias a seguiu depressa, antes a cobrindo com uma grossa manta de lã e depois se retirando para seus aposentos.
Quando acordou ainda estava escuro, mas a temperatura o fez entender que logo seria manhã.
A tenda onde ele, Deena e Levana viviam, era enorme. Uma grande estrutura feita com estacas de madeira fincadas fundo no solo, sustentando dezenas de grossos mantos de lã e pele, decorados por dentro com belos tapetes e tecidos finos bordados em ouro e prata. A tenda era grossa o suficiente para proteger do sol durante o dia, e quente o bastante para abrigar do frio à noite, além de ser dividida em compartimentos.
Uzias abandonou seu ninho de cobertores e travesseiros, sabendo que não adiantava forçar o sono. Passou pelo aposento central da tenda, e descobriu Deena exatamente onde a havia deixado, aninhada debaixo de um manto. As lamparinas estavam todas apagadas, e como era esperado, Levana não estava na tenda.
Desde que chegara à montanha, Uzias percebera um fato no mínimo estranho: Nem ele, ou mesmo Deena, jamais haviam visto a mestra dormir. Em quatro anos, nenhum dos dois se lembrava de qualquer momento em que a houvessem flagrado cochilando, ou deitada, repousando. Nas refeições, ela só se alimentava de tâmaras, figos e frutos similares, sempre em pequenas quantidades. E ainda que fosse incrivelmente velha, sua saúde era inquestionável.
Uzias deixou a tenda e caminhou um pouco. Divisou, ao longe, uma silhueta pequena, como um montinho de pedras, de costas para a tenda. Caminhou até ela.
Levana estava sentada, vestindo seu manto e segurando o cajado, com as pernas balançando preguiçosamente à beira do penhasco. Diante dela, o céu brilhante seguia silencioso, e o vento assobiava uma melodia suave.
– Eu desisto. – Ela disse, quando Uzias se aproximou o suficiente. Ele sentou-se ao lado. – Não consigo entender qual o problema de vocês dois.
– Senhora?
– A moça, Uzias, a moça. – Ela prosseguiu, parecendo impaciente. – Deena. Passei os últimos quatro anos tornando você um Profeta de respeito, um guerreiro de valor e um homem desejável. Fiz o mesmo com ela. E agora, – e ela suspirou – veja só, a moça está lá, dormindo sozinha enterrada em um monte de pergaminhos. Na minha juventude os homens eram mais... ousados.
– Me desculpe, senhora. Mas as coisas não são tão simples.
– Você é um homenzarrão, Uzias. Alto, bonitão, e com um futuro promissor. Deena é a criatura mais bonita, inteligente e desejável que eu já vi desde a última vez em que me olhei no espelho, muitos anos atrás. – Uzias riu. Fazer comentários lisonjeiros sobre si mesma era um dos hábitos de sua mestra. – Não, não ria. – Ela o censurou. – Então eu junto esses dois indivíduos, um homem e uma mulher, com a juventude pulsando, os isolo em uma montanha, e quando os deixo sozinhos, o homem, justo ele, abandona a moça dormindo e vem conversar com a velha. Eu não sei mais o que fazer. Talvez eu deva puxá-los pelas orelhas e explicar de novo o que um homem e uma mulher fazem quando...
– Talvez a senhora só devesse deixar as coisas acontecerem sozinhas. – Uzias interrompeu, ruborizando, diante da cara amarrada de Levana. Ela tornou a suspirar.
– É o que vou fazer. Minhas chances acabaram. Semana que vem você irá partir, para poder se apaixonar cretinamente por uma camponesa qualquer, encher uma casa de filhos e desistir de ser Profeta porque sua mulher vai te querer cuidando do campo. E Deena provavelmente vai se casar com um imbecil, que vai tratá-la como propriedade dele, e aí quando nos virmos novamente eu vou rir, rir muito, da cara de vocês.
– Semana que vem eu vou partir? – Uzias perguntou, ignorando o mau humor da mestra por um momento.
– Sim, vai. O Rito do Renascimento. Você irá à Migdala, participar da imersão na Caverna da Origem, junto à Deena, como todos os outros que ingressaram no mesmo ano que você.
– Mas a senhora não virá junto?
– Não, Uzias. Migdala é longe, e eu estou evitando viagens desnecessárias.
Por um momento, os dois ficaram em silêncio. O horizonte estava começando a exibir um leve tom anil.
Durante todos esses anos, viver ao lado de Levana se tornara tão comum que a ideia de deixá-la era muito estranha. Àquela altura, sabia que o Rito do Renascimento era muito mais uma formalidade que uma necessidade. Não imaginou que sua mestra o permitiria se afastar de Zefanya tão cedo. E, honestamente, não queria.
– É muito parecida comigo, a Deena. – Levana disse, de repente. Seu tom era quase melancólico, e aquilo perturbava Uzias. – Não fisicamente, claro. Quando jovem, eu era mais baixa que ela, e minha pele é mais escura, mas eu também tinha um corpo que era uma gracinha. Falo da insistência dela. Ela me venceu, meu filho. No começo, eu realmente pretendia que ela ficasse tão humilhada, indignada e enojada de mim que descesse da montanha e nunca mais voltasse. Mas ela não desistiu. Eu também era muito teimosa. Tão teimosa que consegui me tornar Profetiza em uma época na qual apenas homens exerciam essa função. Mesmo hoje, perceba, a esmagadora maioria dos componentes da ordem são homens. Durante esses quatro anos ensinei vocês dois a serem meus sucessores. Acho que consegui construir uma base sólida o bastante para que vocês possam fazer seu próprio caminho da forma correta.
– Senhora, está me assustando. – Uzias disse, e era verdade. Não era comum ver Levana falar daquele jeito.
– Não se preocupe, eu não vou morrer. – Levana disse, sorrindo. – Pretendo estar aqui para ver você colocar meu nome na sua primeira filha. Mas creio que a partir de agora, eu irei interferir cada vez menos no seu caminho. Anos atrás eu o chamei, e você veio. E em todas as vezes que eu fui dura, intrusiva e irritante, o fui porque queria torná-lo o melhor homem possível, apesar das circunstâncias cruéis nas quais você nasceu e se criou. Por mais que você um dia possa ter duvidado, eu passei a amá-lo como a um filho, Uzias. E é com o coração de mãe partido que verei você começar a andar com suas próprias pernas e seguir, sem mim.
– Mas eu estarei aqui em Zefanya, senhora. – Uzias a consolou. – Eu vou continuar aqui por muitos...
– Não, você não vai. – Levana o interrompeu, categórica. – Você irá para longe, muito longe de mim. Irá aprender as coisas que não posso ensiná-lo aqui. O Eterno me concedeu o privilégio de prepará-lo para a estrada, mas você a seguirá sem meus conselhos. Ele me advertiu que este dia chegaria tão logo meu coração começou a se acostumar com sua presença. E se estou dizendo essas coisas agora, é porque já o julgo pronto para ir, e desde então sei que a qualquer momento poderá ser nosso último contato, enquanto professora e aluno.
– Não diga isso. – Uzias estava realmente alarmado. – Eu ainda precisarei de anos, muito mais do que os que vivi até hoje, para poder ser considerado minimamente capaz de lhe substituir.
– Não me aposente antes da hora, meu filho. – Levana gargalhou, seu tom de voz retornando ao habitual. – Só porque eu disse que você já pode se caminhar sozinho não significa que esteja pronto para ocupar meu lugar. Eu apenas disse que você precisará deixar o ninho, como é natural que aconteça. Mas eu estarei aqui para te dar conselhos, se um dia sua... futura esposa permitir que você viaje para tão longe.
– De novo a história da esposa? – Uzias riu.
– Eu me recuso a aceitar que eu tenha tido todo esse trabalho – e apontou Uzias de cima a baixo, com a mão – para que a mulher errada lhe roube o coração e lhe imponha limites que você não precisaria ter. Acredite, meu filho. Grandes homens precisam fazer grandes sacrifícios, e você precisa de uma mulher que possa aceitar vive-los com você. Menos que isso, e grande parte de seu potencial será perdido. Não será justo para você, e nem para ela. Eu acredito que Deena cumpra todos esses requisitos... e como homem, você tem de admitir que que a aparência dela não dificulta em nada o seu lado. A menina é uma joia. Mas – e tornou a fechar a cara – vocês dois insistem em não ver as coisas dessa forma.
– Como eu disse, as coisas não são tão simples.
– Eu sei que não. – Levana finalmente concordou. – E eu sou uma velha teimosa que tem como maior defeito querer que tudo aconteça de acordo com minha vontade. O próprio Eterno já atirou isso na minha cara, dezenas de vezes. É por isso que eu estou com o coração apertado. Porque até que chegue o dia no qual você vai me apresentar à sua esposa, e eu possa ver que sua decisão foi correta, eu vou detestá-la, antes mesmo de conhecê-la, e sempre temerei que por causa dela você deixe seu caminho para se tornar um homem... comum. E eu estou totalmente consciente do quão arrogante é desprezar o homem comum, e como é egoísta é da minha parte tentar decidir as coisas no seu lugar, já que cabe a você, e apenas a você, decidir se será mais feliz como meu sucessor, ou como um criador de ovelhas. Eu apenas... apenas amo muito você.
Mesmo no escuro, Uzias notou os olhos de Levana marejarem timidamente.
– Eu era mais velha que você quando meu mestre me deu este cajado. – Ela tornou a dizer, erguendo o objeto à altura dos olhos. – Mas os tempos são outros, e você foi capaz de aprender em quatro anos coisas que eu levei doze para entender. Por isso, não me sinto nem um pouco receosa de dá-lo a você hoje.
– Mestra, eu não posso...
– Por favor, Uzias, sem modéstia estúpida. – Levana o interrompeu, rispidamente. – Você vai aceitá-lo, porque do contrário estará deliberadamente dizendo que lhe julguei mal, o que vou considerar uma afronta direta à minha inteligência. É isso que está dizendo? Que não sou capaz de compreender meu próprio pupilo?
– Não, senhora, de forma alguma. – Uzias se desculpou.
– Excelente. Você irá aceitá-lo porque já é hora de você assumir seu devido lugar. Um Profeta não pode se dar ao luxo de errar. De escolher mal. De falar ou agir precipitadamente. Apesar de ser apenas um homem, você representa muito mais do que a si mesmo. Você é embaixador de alguém que está além do alcance de todos os homens, e seu papel é traduzir o incompreensível aos corações e mentes dos aflitos. Este cajado tem duas funções. Ele deve significar, para todos que o virem, o sinal de que estão falando com um representante de Deus. E deve significar, para você, a lembrança da enorme responsabilidade que ponho agora sobre seus ombros. Agora pegue.
Levana então estendeu o cajado a Uzias, que o agarrou. Quando puxou em sua direção, no entanto, ela ainda o segurava.
– Que aonde você for, – ela começou a dizer, com os olhos voltados para o céu –seja nas terras onde cresceu, seja nos incontáveis campos estrangeiros onde pisar, todos que o alcançarem possam saber que têm diante de si um profeta. Quando sua boca se abrir para falar, eles saberão que a voz que ouvem já não é a de um homem, mas sim a do que está acima de todos os homens. Onde seus pés repousarem, haverá a paz, a cura, a alegria e a abundância. E que a bênção e proteção do Inalcançável o acompanhe e a todos que o beneficiarem, porque quando o fizerem, estarão fazendo ao Senhor de todas as dádivas. Eu, Levana, Profetisa do Eterno, o abençoo.
Quando Levana largou o cajado, as fendas na madeira emitiram uma suave luz avermelhada, como se brasas intensas ardessem em seu interior. No entanto, quando Uzias o trouxe para perto de si, ele estava frio.
– Frio por fora, quente por dentro. – Levana disse, em tom enigmático, fitando o horizonte já totalmente azul. – Esse é você, Uzias. Eu abençoei o seu cajado. Através de você, ele fará grandes coisas, estou absolutamente certa.
– E Deena, senhora? – Uzias perguntou.
– Não é assunto seu, menino abelhudo. – Levana respondeu, em tom divertido. – Agora, me deixe contemplar o que restou do amanhecer sem você me perturbando.
Quando Uzias levantou-se, carregando o cajado recém-batizado desleixadamente, Levana quase o tomou de volta à força. Mas reprimiu o impulso, o mesmo que a impelia a querer casá-lo com Deena ou a mantê-lo ali, debaixo de sua proteção, por mais tempo que o necessário. Olhou para as primeiras nuvens preguiçosas que se moviam sobre o cume da cordilheira, pensando no sonho que tivera, seis dias atrás.
Nele, ela subia a montanha, e lá se deparava com um homem prestes a imolar um rapaz, deitado sobre um altar de madeira. Como conhecedora da tradição histórica agnumiana e vellúnica, entendeu o que via. Aquela era a representação de um dos mitos fundadores de seu povo.
Na história, o Patriarca – supostamente o ancestral de todo o povo de Vellum, e por consequência, também de Agnum – cruzava a montanha trazendo seu filho para sacrificá-lo. Angustiado, o homem subiu a montanha, preparou o altar e pôs seu filho sobre ele. Porém, quando ergueu o cutelo, pronto a matar o jovem, o Eterno o mandou parar.
Levana observava a cena angustiante, porém sem entendê-la. O Patriarca, que em seu sonho era um idoso de longas barbas, estava parado, com o cutelo erguido, sem descê-lo sobre o pescoço do rapaz, como se esperasse o sinal que o mandaria parar.
Aquele sonho era muito estranho. Evidentemente, aquele homem representava a hesitação em oferecer algo muito importante. Mas Levana não possuía nada que pudesse ser oferecido. Tudo o que tinha, tudo o que era, já estava a serviço de seu senhor. A maior parte da sua vida se dedicara a cumprir Sua vontade. Não tinha qualquer bem relevante a que se apegasse. Era uma mulher idosa e só, despida de tudo em bens e vaidades.
Enquanto ela olhava a cena, tentava entender o que aquilo poderia querer dizer. Naturalmente, o homem a representava. Mas e o menino?
Em um passado não muito distante, Levana poderia crer que o menino representava a Ordem dos Profetas. Porém não mais. Havia muito seu coração deixara de se importar com o antro de cobras que a outrora gloriosa ordem havia se tornado.
Repentinamente pensou em Uzias e Deena. Era evidente que os amava, e os valorizava, mas a ponto de serem considerados filhos primogênitos?
Então entendeu. Não eram Uzias e Deena, mas apenas Uzias. Não pelo valor humano que ambos tinham, evidente, já que nesse aspecto ela os queria igualmente bem. Era Uzias enquanto pupilo. Enquanto o futuro Profeta que, segundo seus sonhos de juventude, elevaria a ordem a novos patamares.
Levana entendeu a razão daquele sonho. A hora estava chegando, e logo não seria ela a mostrar o caminho ao seu discípulo. Ele teria de aprender com outros mestres, o caminho até seu destino. Claro que compreender não era o mesmo que aceitar. Sob todos os aspectos em que o observava, ele parecia promissor, mas ainda inexperiente, infantil e cheio de lacunas a serem preenchidas. Não estava pronto.
Nesse momento, as lembranças de diversos outros pupilos – homens e mulheres bons, justos, merecedores, mas ainda assim considerados aquém de suas expectativas, lhe vieram à mente. E quando se deu conta do número de pessoas a quem discipulara ao longo da vida, percebeu onde estava a falha: era ela.
O mais difícil no sonho foi reconhecer que Uzias estava, sim, pronto. E que ela o estragaria, se o mantivesse mais tempo sob seus cuidados que o necessário. No final, a obsessão por cumprir sua própria profecia seria a razão pela qual ela não a alcançaria, se não entendesse e aceitasse.
Quando ela finalmente compreendeu o propósito do sonho, a cena que via se completou: o Patriarca desceu o cutelo, mas foi interrompido no meio do caminho pela voz de seu senhor. Ela precisaria aprender a deixar as coisas nas mãos de alguém que podia mais que ela.
Voltando ao presente, se viu iluminada pelos primeiros e gloriosos raios de sol. Se o mundo inteiro funcionava tão harmoniosamente, sob os cuidados d’Aquele que nunca dorme, não seria Uzias a representar verdadeiro desafio.
– Segure esse negócio direito, menino, se não quiser que eu o tome de volta! – Levana gritou, para que Uzias a ouvisse. – Isso não é um brinquedo!
Por hora, no entanto, havia ainda alguns dias ates da partida, e ela os aproveitaria da melhor maneira que pudesse.
Madrugada. O silêncio era interrompido pelo estalo oco dos passos despreocupados que cruzavam os corredores fracamente iluminados da ala feminina na ordem dos Armígeros. Os pássaros que cantarolavam o nascer do sol ainda não haviam começado o seu ofício, e a maioria das jovens que ocupava os aposentos atrás das sólidas portas de madeira dormia. Mesmo que a pessoa transitando por aqueles corredores fosse um ordenado, era bastante incomum que um homem caminhasse por aquela ala antes que as trombetas ruidosas anunciassem o toque de despertar e dessem por iniciadas as agitadas rotinas naquele edifício. Se ele fosse um adolescente, como os rapazes em treinamento, com certeza seria advertido, se pego, e passaria o restante do dia em alguma tarefa bastante desagradável, como limpar as latrinas ou descascar batatas na cozinha. O deambulante conhecera bem essas funções, já que tivera, em sua própria juventude, o hábito de se encontrar com algumas das
Sem dúvida, aquele era seu dia de sorte. Se havia alguma coisa pior que a dor, com certeza era a sensação de perder um membro. Justamente aquele desespero que dominava todos os pensamentos, quando se percebia o braço que deveria segurar a arma transformado em um toco sangrento. Ou quando se estava correndo, e depois de um tropeço no meio do caminho, levava a mão ao calcanhar para verificar o tamanho do estrago e sentia a ponta do osso da perna, estilhaçado, e separado do pé por uma armadilha terrestre diabolicamente plantada no meio de um arbusto inofensivo. Não que houvesse isso de arbustos inofensivos na linha de frente. Nem arbustos, nem árvores, nem cadáveres inofensivos. Nem nos companheiros mortos era possível confiar. Já vira acontecer do seu lado. O sujeito parava de correr, encostava-se em uma árvore perto de um cadáver qualquer, estropiado. Na primeira semana, um cadáver era sempre
O paredão se erguia dez metros, cheio de concavidades e reentrâncias, como uma muralha de rocha sólida da qual brotavam inúmeros pequenos cristais de diversas cores. Dividindo-o ao meio, a queda d’água fazia um barulho ensurdecedor, que ecoava nas paredes e tornava quase impossível qualquer conversa que não fosse composta de palavras simples, curtas e gritadas. O riacho que ela abastecia era largo e raso, de água gelada e revigorante. Em seu fundo, assim como nas paredes, havia uma enorme variedade de cristais, cintilando à luz das tochas na superfície. Toda aquela maravilha estava alojada dentro de uma caverna enorme, como um grande domo subterrâneo. Aquele era o antigo marco divisório entre o território de Migdala e Neemya, no que dizia respeito à posse das cavernas.
Veridane ofegava. Seus olhos castanhos tinham as pupilas dilatadas, tentando absorver o máximo possível da luz no escuro. Ao seu lado, no chão, uma vela grossa já quase na metade banhava o lugar enorme com uma tênue claridade alaranjada, que enfraquecia conforme se afastava da chama, até ser engolida pelo total negrume. Um par de mãos, firmes, segurava seu rosto com delicadeza. Ela sentia um pequeno arrepio sempre que as pontas dos dedos roçavam de leve em sua nuca, ou quando os polegares massageavam as maçãs do rosto, em movimentos circulares e suaves. Apesar de não ter sono, uma dormência gostosa se apoderara de seu corpo, levando-a a pensar cada vez menos no que estava fazendo. Porém, algo no fundo de sua mente lembrava-lhe que, se a encontrassem ali, depois do toque de recolher e sozinha co
Sob o sol escaldante do oriente agnumiano, o céu absolutamente azul, limpo de nuvens, contrasta com o que quer que se erga acima do oceano dourado de areia soprada pelo vento. As torres da antiquíssima cidade de Manancial, agora Yahudah. As caravanas em direção ao horizonte. As tamareiras do oásis. E a flecha de ponta côncava, lançada em linha reta. O saco atingido pelo projétil explodiu a menos de um metro da cabeça de Iadah, espalhando areia e serragem. Abaixada e alarmada, ela seguiu, sorrateira, protegida pela barricada. Empunhava um arco curto, feito de osso e couro endurecido, que lhe conferiam extrema flexibilidade e o dobro do alcance de uma arma idêntica feita de madeira – uma engenhosíssima peça fabricada muito além da Savana Vermelha, pelos bárbaros nômades que habitavam nas fronteiras de Hamode. Custara uma pequena fortuna trazê-la de além do deserto – mas para enfrentar alguém tão obstinado a ven
Uzias e Deena seguiam pela estrada, cada qual montado em um robusto cavalo de viagem, tentando lembrar o caminho até o Templo do Imanente – a maior construção do tipo em toda a Agnum. Haviam chegado às imediações de Migdala três dias antes, mas passaram todo o tempo em Tsione, levando mensagens de Levana aos sacerdotes e eruditos locais, só descendo agora em função da liturgia que precedia o Rito do Renascimento. De acordo com Levana, o rito era uma mais uma formalidade que uma necessidade. Segundo contava-se, apenas ordenados que uma vez na vida houvessem submergido no lago interior da Caverna da Origem seriam capazes de operar o Dom – uma tolice, já que a história de Agnum, e mais remotamente, de Vellum, estava cheia de casos em que pessoas operavam teurgias antes mesmo de instituírem a caverna. Fossem quais fossem as razões do rito, Uzias estava muito
Intimidades– O que está fazendo aqui, Adameire? – Absalon tornou a perguntar, novamente sem resposta.Ela não respondia. Estava sentada, meio largada na poltrona do quarto, com a cabeça levemente inclinada sobre o ombro esquerdo. Absalon precisou se aproximar um pouco mais para perceber a razão do silêncio: ela estava inconsciente.Seu coração disparou. Antes de tocar no corpo, olhou ao redor e procurou por sinais de combate. Se a haviam assassinado ali, com certeza a intenção era incriminá-lo. Pensou imediatamente em Aminadave, Aryah e Acaiah. Aquilo seria uma tragédia.O quarto estava exatamente como ele o havia deixado, com exceção de um detalhe muito importante: estava limpo e organizado. Os lençóis haviam sido trocados, os utensílios pessoais e livros estavam todos ordenados nas prateleiras e, na mesinha de madeira
Uzias sentia a carruagem balançar enquanto seguia em direção a um lugar do qual só havia ouvido falar. Ao seu lado muitos sussurros se cruzavam, e sua audição privilegiada conseguia identificar a maioria deles. Seus olhos, no entanto, não podiam ver absolutamente nada. Estavam vendados, assim como os dos quase setenta jovens que eram conduzidos pelos túneis largos que levariam, segundo dissera seu guia, à Caverna da Origem.Saber a localização exata da caverna era proibido para todos os ordenados cuja graduação fosse inferior à de mestre. Isso acontecia porque a manifestação do Dom estava associada à água que corria pela caverna. Segundo ouvira, a maior parte dessa fonte em particular cruzava as cavernas pelo subterrâneo, sem que se soubesse onde era sua nascente, ou onde enfim ela desaguava. Sendo um segredo militar de Agnum, apenas ordenados co