Veridane ofegava. Seus olhos castanhos tinham as pupilas dilatadas, tentando absorver o máximo possível da luz no escuro. Ao seu lado, no chão, uma vela grossa já quase na metade banhava o lugar enorme com uma tênue claridade alaranjada, que enfraquecia conforme se afastava da chama, até ser engolida pelo total negrume.
Um par de mãos, firmes, segurava seu rosto com delicadeza. Ela sentia um pequeno arrepio sempre que as pontas dos dedos roçavam de leve em sua nuca, ou quando os polegares massageavam as maçãs do rosto, em movimentos circulares e suaves. Apesar de não ter sono, uma dormência gostosa se apoderara de seu corpo, levando-a a pensar cada vez menos no que estava fazendo.
Porém, algo no fundo de sua mente lembrava-lhe que, se a encontrassem ali, depois do toque de recolher e sozinha com um rapaz, as coisas se complicariam muito. Não sabia dizer se o fato dele ser seu noivo melhorava ou piorava o que estavam fazendo. Os respectivos mestres dos dois não aceitariam o argumento de que estavam quase casados, e que confiavam plenamente um no outro. Era proibido do mesmo jeito.
Porém, tão logo esses pensamentos lhe ocorriam, eram substituídos por outros, que nada tinham a ver com o ambiente escuro, o rapaz que lhe tocava as faces ou a possibilidade de uma punição severa. Eram ideias aleatórias, que iam e vinham sem muita conexão. Sua irmã, Veridiana, de quem tinha uma boa quantidade de inveja não admitida. Seu pai, um homem grande, rude, e que lhe inspirava medo. Uma vaca, daquelas malhadas de preto e branco. Gostava muito de vacas, especialmente de ordenhá-las. Quando seu pai a mandava fazê-lo, demorava o máximo que podia e assim evitava voltar para a casa apinhada de gente. Às vezes conversava com elas, e fingia que elas podiam entendê-la. A casa. A casa era um lugar pequeno, barulhento. Seus irmãos menores viviam fazendo sujeira, e ela tinha que limpar as coisas antes que o pai e a mãe voltassem, à noite. A noite. Todos dormiam no mesmo aposento, um quarto pequeno e quente. Tinha noites em que os mosquitos não a deixavam dormir. Ela ficava acordada a madrugada toda, e às vezes, quando já era muito tarde e os irmãos menores estavam dormindo, os pais... eles... não queria pensar naquilo. Tinha vergonha. Tentou pensar em outra coisa, mas suas lembranças insistiam em voltar para o quarto. Tentou pensar na vaca malhada, e estranhamente, sua memória lhe mostrou algo que jamais acontecera: estavam ela e a vaca dormindo no quarto. Evidente, seu pai jamais deixaria a vaca entrar em casa. Uma vez, quando tinha dez anos, trouxe uma cabra para a cozinha, porque estava frio lá fora e ela temeu que o animal ficasse resfriado. A despeito de seus esforços em manter o bicho calado, seu pai ouviu o barulho, e quando viu o que ela estava fazendo, ficou furioso. O resultado foi uma sova, daquelas que deixam as pernas e o traseiro marcados por uma semana, e a colocou para dormir do lado de fora, ela e a cabra. Não gostava de lembrar esses momentos, porque eles remetiam a outra pessoa. Uma menina, a quem também invejava. Era chamada Flor, a filha do boticário que morava na curva onde uma vez uma carroça cheia de galinhas havia virado. Flor também era muito bonita, como sua irmã, Veridiana. E os pais dela a tratavam muito bem. Morava na cidade. Sempre usava um vestidinho lindo, vermelho, que era uma cor muito cara de se comprar. Veridane uma vez tentou esfregar tomates nas próprias roupas, na esperança de que se tornassem vermelhas, e o resultado foi outra sova e uma semana cheirando a tomate. Todas as suas roupas eram sempre cinza ou bege, meio rotas aqui e ali. Mas não agora. Agora, seus hábitos eram sempre brancos e azuis, e ela os tinha em quantidade suficiente para que pudesse sempre mantê-los impecavelmente limpos. O que ela não contava a ninguém, no entanto, era que no baú ao pé de sua cama, no meio dos seus hábitos, havia um longo vestido decotado, vermelho-vivo, que ela encomendara no ano anterior, e que fora realmente caro. Às vezes, quando estava sozinha, trancava a porta do dormitório e o vestia, desfilando em frente ao espelho e se imaginando como uma das moças bem-nascidas que às vezes via descer das carruagens quando andava pelas ruas da cidade. Adorava a cor. O tecido aveludado roçando na pele, e o formato – que colava ao corpo e a fazia se sentir mais desejável.
Conseguia se ver, de pé, sozinha no quarto que dividia com as outras monjas, de frente ao espelho enquanto o vestia pelos pés. Puxava o vestido suavemente, primeiro pelos tornozelos, depois até os joelhos, subindo em direção ao quadril...
Lênis desviou seus olhos dos de Veridane, desorientado. Suas mãos tocavam o rosto dela, e ela tinha o olhar perdido, como se experimentasse um devaneio muito prazeroso. Ela ainda estava em transe.
Por mais que a nudez de sua noiva tivesse grande destaque em sua ampla gama de interesses, o que Lênis procurava ali não era despi-la do hábito clerical. Não ali, e não naquele momento, por mais tentador que fosse, uma vez que estavam sozinhos em um lugar escuro e isolado. O que procurava era penetrar-lhe as lembranças e os pensamentos, tal qual faria um estudante curioso em uma biblioteca cheia de livros. Desnudá-la o corpo era uma questão de tempo. Desnudá-la a mente, por outro lado, era uma questão de perícia.
No entanto, nem sempre os interesses da mente compactuavam com os interesses do corpo, e era com desânimo que constatava: por mais vezes que gostava de admitir, o segundo vencia o primeiro. Enquanto tentava recobrar os sentidos plenamente, era perturbado pela ideia de que, se tivesse mantido o contato mais alguns segundos...
Prendeu o nariz dela entre o polegar e o indicador, lhe causando uma leve apneia. Nada sério, apenas o suficiente para acordá-la. Ela recobrou a consciência de um sobressalto.
– O que... o que houve? – Ela perguntou. – Conseguiu?
– Por algum tempo, sim. – Ele a respondeu, erguendo-se do chão onde estava sentado, e lhe oferecendo a mão para que também se levantasse. – Mas me distraí.
Os dois levantaram, e mal ficou de pé, Lênis percebeu que estava muito fraco. Apoiou-se no esquife de pedra mais próximo.
As catacumbas eram um lugar lúgubre, úmido e frio. Ao redor dos dois, o que antes era um complexo de cavernas naturais foi transformado no último repouso de ordenados ilustres. Todo o lugar estava envolvido em trevas, com exceção do ponto onde a vela irradiava uma pequena claridade. Mesmo falando baixo, as vozes dos dois ecoavam pelas paredes, mas não havia ninguém para ouvi-las – os guardas estavam preocupados defendendo a entrada, pelo lado de fora, e os dois haviam invadido por um túnel recém-descoberto, que começava em uma parede mal reformada na casa de banho dos monges, antigamente uma saída para fugas de emergência.
– Vamos conferir logo? – Veridane pediu. – Quero sair daqui. Esse lugar me deixa sem ar.
– Certo, certo. – Lênis concordou. – Vamos pela ordem em que eu vi. Primeiro, vi sua irmãzinha. Veridiana. Ela me parece mais bonita nas suas lembranças que quando a vi no dia em que conheci sua família. – Veridane simplesmente acenou, afirmativamente. Lênis prosseguiu. – Depois, o seu pai. Ele também é mais intimidador nas suas lembranças.
– Você nunca tomou uma surra de corda molhada, por isso diz essas coisas. – Veridane respondeu, malcriada.
– Vi uma vaca, bem gorda. Malhada de preto e branco.
– Melancia. – Veridane disse.
– Melancia?
– É, Melancia. – Veridane insistiu, parecendo aborrecida. – Fui eu quem deu o nome. Era tão gorda que chegava a ser redonda, quando estava saudável. Eu a adorava, e... ah, não caçoe de mim.
Veridane amarrou a cara. Lênis tentou manter a expressão mais séria possível, apesar de achar engraçado. Mas não estava caçoando. Pelo que sentira ao remexer em suas memórias, a vaca era, de uma forma que ele não entendia bem, muito importante para ela.
– Não estou, juro. – Lênis se desculpou. – É sério. Eu tinha um gerânio, que se chamava Ébrio, porque sempre estava curvado de lado, parecendo um bêbado. Ele ficava na minha escrivaninha.
Parte daquela história era mentira. Ele jamais nomearia uma planta, e se um dia o fizesse, com certeza não a chamaria por aquele nome. Mas Veridane pareceu ter acreditado, porque lhe convidou a continuar:
– Está bem. Continue.
– Sua casa. – Lênis prosseguiu. Vi sua casa. Ela era pequena, quente, e você tinha que limpar quando seus irmãos faziam bagunça.
– É, mas você já esteve na minha casa. Podia estar vendo ela na sua lembrança, e não na minha.
– Também vi que você não conseguia dormir, por causa dos mosquitos e do calor.
Mesmo sob a fraca luz da vela, o rosto de Veridane se tornou escarlate:
– Eu prefiro não falar sobre isso, se não se importa.
– Não, eu não me importo. – Ele prosseguiu. – Aliás, não chamou minha atenção. O que me interessou muito foi que, depois que vi isso, uma coisa estranha aconteceu. Vi você aninhada em... como era mesmo o nome?
– Melancia. – Ela respondeu, novamente emburrada.
– Sim, Melancia. Você estava aninhada em sua vaca, no meio do quarto. Isso aconteceu alguma vez?
– Não. Papai me mataria se eu trouxesse Melancia para dentro de casa.
Lênis pensou um pouco. Já acontecera outras vezes. A mente dela, numa tentativa de se defender contra penetração externa, havia inventado um acontecimento. Evidentemente, ela não era boa em fazer isso, e a situação criada era muito improvável. Logo depois, como se tentasse se ajustar, ela lembrou-se de uma situação real e semelhante, quando trouxe uma cabra para dentro de casa e teve de dormir do lado e fora.
– Mas você trouxe uma cabra para casa. – Lênis prosseguiu.
– Sim, trouxe. – Ela confirmou. – Estava frio lá fora, e eu fiquei com medo de que ela adoecesse.
– Tem só mais uma coisa que eu quero saber. – Lênis disse por fim. – É sobre um vestido. Vermelho.
Veridane empalideceu. Era evidente que não se lembrava de ter pensado no vestido. E era também a expressão que Lênis estava procurando.
A Ordem dos Canais oferecia um acervo extenso de conhecimento. Pilhas e mais pilhas de pergaminhos e livros, os quais ele devorara com grande satisfação. Durante seu primeiro ano de treinamento, decidiu que não se tornaria escudeiro de Mestre algum até se certificar de que escolheria o mais adequado às suas ambições. O sistema de treino da ordem, que deixava os estudantes livres para decidirem como e quando estudar, lhe proporcionou essa possibilidade. Nesse tempo, ele aprendeu tudo o que pôde sobre política, história, astronomia, biologia, alquimia e muitas outras ciências, algumas oriundas de Hamode, em livros que precisavam ser traduzidos antes de lidos.
Todo esse tempo lhe permitiu analisar calmamente todos os mestres que lecionavam na ordem, e conhecer seus pontos fortes e fraquezas. Entre todos, o que mais lhe chamou a atenção foi uma mulher de trinta anos chamada Déborah. Ele demorou a percebê-la, porque ela passava grandes períodos, de dois ou três meses, ausente. Nas poucas vezes que a ouviu lecionar – ela ensinava políticas e culturas estrangeiras – a amplitude do conhecimento que ela demonstrara, e sua capacidade de responder a praticamente qualquer pergunta que ele lhe fazia, por mais complexa que fosse, lhe causou uma forte impressão, apesar de um aspecto considerado desencorajador por muitos de seus companheiros: pelo que diziam, no passado ela havia sido disciplinada pela ordem, acusada de exagerar no trato com um escudeiro, o que explicava a razão dela não tê-los, já que a maioria dos novatos preferiam mestres de boa reputação. Lênis, no entanto, não se importava com esse detalhe – na verdade acreditou que a ausência de concorrentes facilitaria sua tentativa de ser aceito.
E estava enganado.
Conseguir sua tutoria não foi fácil. Ela era uma mulher muito difícil de impressionar, quase sempre inacessível e muito atarefada, além de particularmente intolerante à lentidão. Lênis precisou se esforçar muito para conseguir acompanhar seu raciocínio afiado e responder prestamente às perguntas que fazia durante as entrevistas, para as quais se preparara exaustivamente.
No entanto, depois de muito insistir, apresentar inúmeras razões e argumentos, ela cedeu. E ceder era exatamente o termo apropriado, porque mesmo então ela parecia desconfortável em aceitá-lo, para dizer o mínimo. Durante os primeiros meses ele teve a nítida impressão de que ela estava se esforçando para fazê-lo desistir, o que foi inútil. A cada dia que passava, Lênis se interessava mais por sua mestra, que ao enchê-lo de conteúdos densos e difíceis de compreender, longe de desestimulá-lo, apenas o mostrava quanto conhecimento ela tinha a passar.
Com ela, Lênis aprendeu mais sobre história e política que em todos os livros que lera até então. Ela tinha uma coleção particular, onde se podia encontrar de tudo: contos, cópias de pergaminhos históricos, pinturas, documentos antiquíssimos, estudos científicos complicados, muitos deles estrangeiros e até então incompreensíveis, e algo que biblioteca nenhuma em Agnum tinha permissão para conter: livros de feitiços. Apesar de nem sempre explicá-lo quando questionada sobre algum assunto obscuro e presumivelmente proibido, ela permitia que ele lesse, fizesse anotações a respeito e até cópias dos documentos e pergaminhos de sua biblioteca, desde que os originais jamais saíssem de suas vistas. Não demorou muito tempo e Lênis percebeu que, enquanto não a perturbasse com perguntas desnecessárias, nem tomasse muito de seu tempo, ela lhe permitiria livre acesso a tudo o que sabia. Até suas anotações pessoais, contidas em um diário que carregava consigo o tempo todo lhe eram oferecidas, desde que ela não precisasse parar o que quer que estivesse fazendo para lhe dar alguma explicação que lhe tomasse mais que alguns minutos.
Esse regime de estudos quase autodidatas se manteve durante quase um ano inteiro. Porém, no final do segundo ano de treinamento, Lênis precisou tomar uma decisão muito importante. Sua mestra precisaria se ausentar de Migdala, em missão especial para a Ordem dos Canais. Ela viajaria à Vorona, uma nação a oeste de Agnum, e lá passaria a metade de um ano, colhendo informações a respeito de uma suposta guerra civil que havia se iniciado. Apesar de poder continuar sendo considerado escudeiro dela mesmo à distância, na prática isso interromperia completamente seus estudos – uma vez que seria inútil prosseguir as pesquisas que vinha desenvolvendo sem o acesso à coleção de sua mentora. Assim, deixando Migdala para trás, ele partiu para Zuria e, e de lá, a bordo de um navio, para as terras geladas e estrangeiras de Vorona.
A partir do momento em que pôs os pés no navio, o tratamento que sua mestra lhe dispensava mudou completamente.
Apesar de se comportar com a mesma cortesia fria habitual, ela passou a dedicar muitas horas do dia a instruir e ensinar Lênis, que a princípio, não entendeu o que estava acontecendo. Apenas na segunda semana em alto mar, ela finalmente o explicou a razão de sua mudança de comportamento.
“Desde o começo eu percebi exatamente que tipo de aprendiz você seria.” – Ela dissera, sentada atrás de sua escrivaninha, por trás de seus óculos redondos de aro fino. Todo o pequeno gabinete, que ambos usavam também como quarto de dormir, balançava nauseantemente. “Você é um tipo incomum. Não é necessariamente imoral, mas nutre pouco apreço por regras que os demais idolatram como mandamentos divinos. Você é perigoso, Lênis de Mashala. E eu sei por que sou também uma pessoa perigosa. Resta apenas saber se está... suficientemente determinado a aprender o que eu posso te ensinar.”
“Eu não estou entendendo, senhora.” – Lênis admitira. Havia adquirido o hábito de jamais fazer novas perguntas depois que ela lhe dizia algo, mas naquele caso estava realmente confuso.
“Eu queria ver até onde você ia por conta própria.” – Ela disse. “Queria saber se era capaz de entender que eu não seria sua mãe, sua mestra ou sua mentora. Se, diferente dos bebês chorões que os Canais costumam acolher, você era capaz de arcar com a responsabilidade pelos seus atos sozinho. Porque, se realmente quiser aprender de mim, é assim que será. Eu não vou segurar suas mãos e lhe ajudar a andar. Eu vou mostrar como se abre as portas. Quem vai passar por elas é você. E da mesma maneira, não serei responsável por nada do que você fizer com o que vai ver ou ouvir ao longo do treinamento. Eu não vou lhe induzir nem lhe impedir de fazer absolutamente nada.”
Daquele dia em diante, Déborah o ensinou tudo o que conhecia sobre a mente: o que era, como protegê-la e como manipulá-la. E à medida que seu treino em mentalismo da mente se intensificava, ele entendeu a razão pela qual os escudeiros fugiam dela: seus métodos eram horrendos, beirando à crueldade.
Déborah tinha uma filosofia simples de treinamento: o que não te mata, te deixa mais forte. Lênis descobriu, da pior forma, que ela era a interrogadora mais brutal da Ordem dos Canais – tão agressiva que seus métodos foram considerados criminosos mesmo em situações de guerra. Ela era uma mentalista extremamente habilidosa, e sua especialidade era forçar as mentes alheias a ponto de elas entregarem tudo o que continham. Como se não fosse suficiente, a mesma habilidade que lhe permitia invadir mentes alheias lhe conferia uma blindagem absoluta sobre a sua, de forma que era praticamente impossível obter qualquer informação sobre ela que não fosse totalmente voluntária.
A primeira etapa do treinamento de Lênis foi a pior. Ela alegou que ele precisava aprender a defender a própria mente, antes de entender como invadir as demais. Assim, ele foi submetido a sessões diárias de interrogatório, que às vezes podiam durar horas, e que mesclavam intimidação, agressão e humilhação verbal, somadas a doses cuidadosamente controladas de alucinógenos e invasões mentais. A mulher polida e fria que ele conhecera na Ordem dos Canais se transformara em um monstro sádico. No início, era comum Lênis ser levado ao choro desesperado, e o tormento a que era submetido só era suportável porque, no fundo de sua mente confusa, ele acreditava que Déborah sabia o que estava fazendo. Como se não bastassem os gritos, humilhações, perguntas impossíveis de responder e as insuportáveis sessões de hipnose nas quais ela literalmente invadia seus pensamentos e plantava lembranças falsas – Lênis já não sabia contar o número de vezes que morrera, caindo de penhascos, sendo atacado por animais selvagens, afogado, desmembrado, ou arrastado para a escuridão por monstros horrendos, isso quando não era forçado a presenciar a morte de pessoas que amava, como seus pais, sua irmã ou Veridane, de formas horríveis – ele ainda tinha de estudar quantidades obscenas de conteúdo denso e complexo, até tarde da noite, apenas para tentar inutilmente responder ao interrogatório do dia seguinte. Apesar de nenhum fio de cabelo do seu corpo ser tocado, sua mente era pressionada a ponto de colapsar.
Porém, por duro que fosse o treinamento, Lênis não colapsou. Pelo contrário. Começou a ficar insensível. Ao longo das semanas, cada nova ilusão lhe assustava menos. Cada novo segredo descoberto e usado para humilhá-lo lhe constrangia menos. Lentamente, enquanto seu emocional se acostumava à pressão crescente, sua percepção se ampliava, e começava a distinguir entre a realidade e os pesadelos lúcidos a que era submetido.
“O medo é só uma ilusão.” – Ela dizia, antes dos interrogatórios. “Uma forma desajeitada da mente se defender contra o que não compreende. Só existem duas formas de vencê-lo: conhecer a ameaça, ou aceitar que ela é inevitável.”
A primeira etapa do treinamento foi rápida e intensa. Como não saía do quarto onde estudava, dormia e era diariamente torturado, perdeu a noção do tempo. Lênis não percebeu bem exatamente quando, mas a certa altura já era capaz de distinguir exatamente o que era real e o que era plantado por sua mentora. Passou a temer a dor e a morte cada vez menos, e à medida que seus segredos, temores e vergonhas iam todos sendo jogados contra ele próprio, passou também a não se deixar ferir por eles.
“O constrangimento é o filho do segredo.” – Ela costumava dizer, depois de ridicularizá-lo por cada pequena humilhação que passara na vida, e ele próprio se impressionava com a quantidade delas. “Ele nasce da mania infantil que as pessoas têm de se preocupar demasiadamente com o que os outros pensam. Apenas quando você entender que a única coisa que importa é como o Eterno lhe vê, e a perspectiva que ele tem de você é pautada pela sua própria mente, independente do que os outros pensem, você poderá se libertar dessas pequenas vaidades tolas. Enquanto isso, eu o ensinarei a proteger seus segredos até que você perceba a carga inútil que eles são.”
Apenas quando a ouvia mencionar o Eterno é que Lênis lembrava estar diante de uma monja. As concepções religiosas de Déborah eram as mais estranhas que ele já vira: em sua concepção, a moralidade e os ritos religiosos eram apenas máscaras que as pessoas usavam para se sentir confortáveis. Os ritos estabeleciam uma relação de troca com a divindade – que por definição não precisava de nada, já que havia criado tudo. Apenas quando as pessoas deixassem de enganar a si mesmas, e aceitassem todos os seus monstros internos, podiam olhar para o Eterno exatamente como eram, e a partir daí estabelecer com ele um diálogo honesto.
Lênis tentou apreender aquele conceito enquanto fortalecia sua mente, e ao fim dos primeiros três meses de prática intensa já era capaz de rechaçar a maioria dos ataques emocionais a que era submetido. Quando sua mestra o julgou capaz de se defender, permitiu que ele saísse do quarto que jamais abandonara desde que o navio atracara em Vorona, e o acompanhasse em sua tarefa. Só então Lênis entendeu o significado de todo o processo pelo qual havia passado. Blindar a mente e insensibilizar suas emoções eram requisitos necessários para a tarefa mais ignóbil entre todas as que poderiam ser executadas em uma guerra: o interrogatório de prisioneiros.
Já sabia se defender. Era a hora de aprender a golpear.
– Eu... eu não lembro de ter pensado em nenhum vestido. – Veridane respondeu, tentando se recuperar do choque. – Você me disse que as coisas que você visse, eu veria.
– Você não precisa se preocupar. – Lênis respondeu. – Não tenho intenção de censurá-la. Apenas quero saber se ele existe.
– Sim, ele existe. – Veridane realmente parecia muito constrangida. Falava olhando os próprios pés, desconcertada. – Eu o comprei no ano passado.
– Não é nenhum crime ter um vestido caro, Veridane. – Lênis a consolou. – Você trabalhou por ele. Pagou por ele.
– É, mas o corte dele é um pouquinho... escandaloso. – Ela confessou. – A mestra vive dizendo para nos portarmos com decência, e se um traje não é adequado para vestir no templo, não é adequado para ser usado em nenhum outro lugar. Além do mais, eu... eu sei que ele realmente significa algo a mais para mim. Ele não é um traje comum. Eu me sinto apegada a ele. Ele me faz ficar... – e disse a palavra sussurrando, como se sua mera pronúncia fosse algo imoral – vaidosa.
– Não acho que tenha a ver com vaidade. – Lênis disse, enquanto retirava uma vela do bolso de seu hábito, e a acendia com a chama quase extinta da que se acabava. – Você teve uma infância difícil, é normal querer possuir coisas às quais você não tinha acesso por falta de recursos. Eu também gosto de comprar coisas caras, quando a oportunidade surge. Só temos gostos distintos.
– Você não está entendendo. Quando eu o visto, me sinto... diferente. Me sinto mais... mais... ele me leva a pensar em coisas que não deveria. – Mesmo sob a fraca luz da vela, seu rosto parecia um tomate de tão vermelho. – Você entende?
Lênis riu. Era evidente que entendia do que ela estava falando, assim como era evidente que a culpa não era do vestido.
– Se é tão prejudicial a você, então livre-se dele. – Lênis sugeriu.
– Mas... ele foi tão caro... – Ela disse. Depois, como se percebesse ter falado uma blasfêmia, escondeu o rosto entre as mãos. – Vendo? Avareza, lascívia e vaidade, tudo em uma única peça de roupa! Estou perdida!
Vendo que ela parecia realmente atormentada, Lênis resolveu intervir. Afastou-lhe as mãos do rosto delicadamente, e disse, com calma e firmeza:
– Veridane, eu não vejo razão para tanto desespero, é só um traje. – Ela ainda evitava fitá-lo nos olhos. – Ele viola algum de seus votos?
Ela demorou um pouco, antes de balançar a cabeça negativamente. Lênis continuou a perguntar:
– Seu dom enfraqueceu depois que você o comprou?
– Não. Eu acho que não. – Ela respondeu.
– Então não há porque se preocupar, minha querida. – Ele concluiu, beijando-lhe delicadamente a testa. – Um vestido é apenas um vestido. E você tem bom gosto. Ele fica muito bem em você.
– Você me viu vestida? – Ela perguntou, enfiando o rosto entre as mãos novamente, e dizendo baixinho: – Ai, meu Deus! O que você deve estar pensando de mim agora...
Lênis tentou evitar imaginar o que ela pensaria se soubesse que quase a vira sem o vestido. Mais uma vez, afastou as mãos dela do rosto, e tornou a falar, olhando-a nos olhos:
– Eu não estou pensando nada de você. É só um vestido...
– ...indecente! – Ela interrompeu. Não era para ninguém saber. Principalmente você.
– Eu o achei muito bonito. – Ele insistiu. – E somos noivos, Veridane, de casamento marcado. Em breve, o vestido não fará nenhuma diferença...
– Essa conversa está se tornando muito inapropriada! – Ela tornou a interromper, com as faces em brasa e a voz esganiçada. – É melhor irmos embora daqui, está ficando muito tarde!
Vendo que não adiantava discutir, ele a ofereceu o braço, ao que ela o segurou, e os dois se puseram a fazer o caminho de volta. Enquanto atravessavam as catacumbas, Lênis pensava no quanto a noiva era tímida, meiga e sincera.
Os dois se conheciam havia cinco anos, desde os exames nos quais conseguiram aprovação para ingressar na Ordem dos Canais. Desde então, ambos dividiam o tempo entre estudar, procurar um mentor e conhecerem-se melhor. Ela havia crescido pouco – apesar de o corpo ter amadurecido, ainda era pequena e delicada, o que Lênis achava totalmente adequado, já que ele próprio não era alto. Ela havia aprendido a pintar, a cantar, e estudava de tudo um pouco – assim como ele, era sedenta por conhecimento, apesar de nem sempre acompanhar seu ritmo. Originalmente, se tornou escudeira de um Mestre na Trilha da Piedade, mas seu desempenho foi tão promissor que menos de três meses depois de iniciado seu treinamento foi transferida para a Trilha do Poder, onde desenvolveu um dom.
Veridane era capaz de ampliar poderosamente os dons conjurados por outros teurgos – um tipo raro de manifestação chamado de O Derradeiro Clamor Nazireu. Através de uma prece, à qual acrescentava um pequeno sacrifício de sangue, qualquer dom conjurado nas redondezas tinha sua eficácia, alcance e duração multiplicados. Seus votos, entretanto, a impediam de fazê-lo arbitrariamente – ela só podia manifestá-lo mediante aprovação de sua mestra, que por sua vez precisava da permissão do Guardião.
Apesar de já ter estudado sobre o assunto, a manifestação do Dom era algo estranho à Lenis. Não apenas tinha dificuldade em entender o processo, como suspeitava que provavelmente jamais fosse capaz de operá-lo. E a razão era simples: operar um dom exigia longas rotinas de meditação, votos, exercícios intuitivos e, o que sua mestra, que não por acaso também não o manifestava, chamava de “pureza de alma”. Naturalmente, Veridane era a conjuradora ideal: dedicada, piedosa, e moralmente sensível. Se a moralidade pudesse ser medida em escalas de cor, entre branco e preto, ela seria branco, talvez com pequenos desníveis em direção ao cinza, muito suaves. Sob a mesma escala, Lênis se via como um tom de cinza. Cinza bem escuro.
– É aqui que eu fico. – Veridane sussurrou, ao chegar em frente ao quarto que dividia com mais nove monjas.
– Boa noite, querida. – Lênis lhe disse, pressionando suavemente seus lábios contra os dela.
– Você... – Ela perguntou, timidamente, voltando a olhar os próprios pés. – Você ainda quer se casar comigo?
Lênis olhou em volta por um instante. Os corredores estavam vazios. Os archotes nas paredes já estavam em vias de se apagar.
– Eu amo você. – Ele respondeu, erguendo o queixo dela suavemente com o dedo indicador. – Não é um gosto particular seu que vai mudar isso.
Ele tornou a beijá-la, dessa vez se permitindo um pouco mais de intensidade. Quando os dois se afastaram, ela estava sorrindo, e foi com esse humor que entrou no quarto.
Lênis tratou de seguir ao seu próprio dormitório. No caminho, se permitiu pensar um pouco mais na imagem de Veridane usando o vestido vermelho. Ela tinha razão em uma coisa: o traje não era apropriado. E Lênis gostava dele justamente por isso.
De repente, a data do casamento lhe pareceu demasiadamente distante.
A primeira refeição do dia foi acompanhada de música e canto, como de costume. A Ordem dos Canais oferecia, além das disciplinas regulares, uma grande quantidade de oficinas, nas quais era possível aprender a cantar, a dançar, a esculpir, a pintar, e diversas outras atividades muito mais artísticas que pragmáticas. Lênis achava todas uma perda de tempo, já que era muito atarefado, mas lhe agradava ouvir o coro enquanto comia.
Ao seu lado, Magno também fazia sua refeição em silêncio, sua estatura se destacando entre os demais. Lênis o conhecia havia tanto tempo quanto Veridane, e entre todas as pessoas com quem tinha contato, era a única a quem chamava de amigo.
Ele era um rapaz alto e largo, bastante desengonçado e com um coração muito gentil. Havia se inscrito na Trilha do Sacrifício, onde se saía muito bem – era disciplinado, habituado ao trabalho pesado, e muito obediente. Lênis costumava provocá-lo, brincando, ao dizer que ele era incapaz de vestir as ceroulas sem uma ordem direta de seus superiores, por escrito e assinada, todas as manhãs. Tinha dezenove anos e era casado com uma moça que resgatara de um poço durante o serviço em Migdala, razão pela qual não dormia na sede da ordem junto aos outros rapazes solteiros. Seus companheiros de treino diziam que esse era o motivo de ele ser o único que chegava ao campo de treinamento sorrindo, antes do sol nascer, e o único que continuava assim depois de quatro horas seguidas de exercícios.
Quando a refeição terminou, Lênis seguiu para o gabinete de sua mestra, seu lugar habitual desde que voltara de Vorona, um ano atrás. Quando estava em Migdalah, Déborah retornava ao temperamento frio e impaciente que Lênis conhecia, deixando-o estudar o que quisesse como bem entendesse, desde que não a incomodasse.
No entanto, aquele era um dos raros momentos em que Lênis não estava pensando em fórmulas alquímicas, estratagemas políticos ou estudos escritos em língua estrangeira.
Dentro de alguns dias, a cidade receberia todos os jovens que passaram no exame para as ordens quatro anos atrás. Eles se submeteriam ao Rito do Renascimento, e estariam oficialmente formados. A partir daí, livres de sua condição de escudeiros, responderiam ao comando da ordem como ordenados plenos.
Lênis estava esperando esse momento para poder casar-se com Veridane. O regulamento do exército proibia separar dois ordenados unidos pelo matrimônio, exceto em caso de concordância mútua. No período de treinamento, isso seria problemático, já que pertenciam a trilhas diferentes. Porém, seria mais que adequado quando se casassem, pois seus superiores seriam obrigados a alocá-los na mesma unidade, pelos anos de serviço militar obrigatório.
Lênis abriu a porta do gabinete de Déborah, e quando entrou ficou confuso.
O lugar, cujas paredes e estantes normalmente estavam apinhados com os livros da coleção particular dela, estava vazio. Nada nas estantes, nada nos armários, cujas portas estavam abertas. Nenhum sinal do que havia acontecido, exceto por um recado pousado sobre a escrivaninha.
Lênis desenrolou o pergaminho e leu. Não era um recado para Déborah. Era um recado para ele:
Lênis, escudeiro de Déborah, da cidade de Mashala. Compareça o quanto antes ao gabinete de Boaz, Mestre Canal na Trilha dos Sacrifícios.
Lênis guardou o pergaminho sem entender. Boaz era um mestre na Trilha do Sacrifício, à qual Magno pertencia. Não fazia ideia do que um Mestre de outra trilha poderia querer com ele. Além disso, ainda tinha o detalhe da sala vazia. Na tarde anterior, tudo estava no lugar – e como se tivesse partido às pressas, sua mestra havia recolhido seus pertences e simplesmente desaparecido. Lênis não sabia dizer se estava preocupado com sua mestra, ou ressentido por ela não ter se despedido – apesar de conhecê-la bem o suficiente para entender que esse comportamento lhe era típico. De qualquer forma, o recado era claro. Havia alguém esperando para vê-lo.
Depois de atravessar seis corredores e alguns lances de escadas, Lênis chegou diante da porta de Boaz e bateu, sendo prontamente convidado a entrar pela voz grave vinda de dentro. Empurrou a pesada porta de madeira e o fez.
O gabinete era uma sala espaçosa, apesar de não exatamente ampla. Nas paredes figuravam algumas pinturas, uma estante cheia de pergaminhos e documentos, e no centro, ao fundo, Boaz lia alguma coisa escrita em um pedaço de papel. Além dele, havia outra pessoa. Um homem alto, de aspecto cansado, apesar de bem vestido. Lênis não o conhecia. Ele estava de pé olhando para fora da janela, absorto.
– Entre e sente-se, meu rapaz. – Boaz o convidou. Lênis ouvira Magno dizer que ele era um homem rígido, e que prezava obediência presta e rápida, portanto, apressou-se em sentar. Ele prosseguiu: – eu tenho algumas perguntas a lhe fazer.
Ele remexeu alguns papéis sobre a escrivaninha, parecendo um tanto confuso. Olhando de relance, Lênis percebeu se tratarem de diversas cartas de alistamento. Sentiu o sangue gelar.
– Você é escudeiro de Déborah, não é? – Boaz perguntou. Lênis afirmou, com a cabeça. – Ela me enviou ontem um relatório completo sobre seu treinamento. Esteve em uma zona de conflito, estou certo?
– Sim, senhor. – Lênis respondeu. Já então não estava gostando daquela linha de questionamento.
– O relatório que Déborah nos enviou – Boaz prosseguiu – diz que você recebeu treinamento avançado em mentalismo da mente, desenvolveu grande habilidade em interrogatórios transcendentes e teve inclusive a oportunidade de praticá-los em prisioneiros na guerra civil de Vorona.
As últimas palavras que Boaz dissera pareceram ter saído abafadas, como se Lênis as escutasse através de um longo túnel, que se distanciava cada vez mais até que não conseguisse ouvir mais nada. Sua mente estava trabalhando na tentativa de compreender a razão daquelas perguntas.
A segunda metade do seu treinamento conseguiu ser ainda pior que a primeira. Depois de aprender a se defender contra a pressão, o medo e a humilhação, Lênis recebeu permissão de sua mestra para acompanhá-la em sua tarefa. A missão que Déborah cumpria em Vorona era complicada, perigosa e demorada: ela precisava coletar informações sobre a guerra civil que assolava a nação. Essas informações eram importantes para Agnum porque havia a suspeita de que forças rebeldes de Vorona pudessem estar envolvidas nos ataques à Floresta Silenciosa.
A missão demandava atravessar o território gelado coletando notícias, se fazer passar por pessoas desconhecidas, capturar e interrogar prisioneiros. O temperamento frio de sua mentora revelou sua utilidade: ela era especialista em copiar mentes alheias. A força e penetração de seu mentalismo eram tão intensas que ela era capaz de conhecer até os segredos mais íntimos de seus alvos, de forma que assumia seus lugares, colhia toda a informação que conseguia e abandonava o alvo quando se tornava demasiadamente perigoso seguir com a farsa. Tanta intimidade, porém, cobrava seu preço – ela tinha muita dificuldade em separar a própria personalidade das que copiava, e o processo de restauração mental costumava exauri-la de sentimentos, empatia e emoções. Todas as vezes que assumia o lugar de alguém precisava de dias, depois que a missão terminava, para restaurar sua própria personalidade.
Apesar de assustado com os resultados, a mente jovem e curiosa de Lênis não resistiu à tentação de aprender como se fazia. Ela o ensinou diversas maneiras de penetrar nas mentes alheias. Quanto mais jovens eram os alvos, mais fácil de compartilhar as emoções e lembranças.
Ele começou com crianças pequenas, que tinham pensamentos muito agitados, memória curta e quase nenhuma resistência à interferência alheia. As mentes adolescentes eram cheias de inseguranças e segredos. As mentes adultas eram mais preocupadas, duras e resistentes. As mentes idosas variavam muito – as mais senis eram quase como as de crianças, com a diferença de que carregavam grandes quantidades de lembranças embaralhadas. Algumas, no entanto, eram poderosamente resistentes.
Mas as mentes mais perturbadas, distorcidas e terríveis eram as dos prisioneiros de guerra. Lênis teve de, por semanas, invadir a mente de combatentes capturados quando ele e Déborah pararam em uma cidade de nome impronunciável, ocasião em que ela ocupava o lugar de um alto oficial das tropas de resistência – uma mulher que havia morrido doente pouco depois de ter sua mente copiada. Ele, por ainda não saber falar a língua da região fluentemente, foi disfarçado como um rebelde recém-capturado. Durante dias, ele ficou largado na prisão imunda, cercado pelos prisioneiros, aproveitando as noites para invadir suas mentes durante o sono e coletar todos os tipos de informação possível.
Ele viu de tudo. Entre os prisioneiros havia camponeses, arrancados de suas famílias para lutar na guerra civil sob a ameaça de ter seus campos queimados e suas famílias assassinadas, criminosos, condenados por crimes que iam desde furtos até torturas e assassinatos, que jurando lealdade à rebelião, conseguiram ter suas penas perdoadas, soldados da resistência que haviam mudado de lado durante o conflito e rebeldes fanáticos, que acreditavam com todo coração e alma no bem futuro que aquela revolta sangrenta proporcionaria.
Além dos horrores que testemunhou nas mentes alheias, a própria situação desumana no campo de prisioneiros, por si só, era capaz de levar um homem à loucura. Em Vorona, assim como em Agnum, o serviço militar era estritamente o mesmo para homens e mulheres, mas a diferença se dava no trato dos prisioneiros. Ali, homens, mulheres e velhos eram todos presos juntos, sem distinção ou divisas. A violência era constante. Grupos de prisioneiros mais fortes se uniam para se aproveitar dos mais fracos – principalmente as mulheres e os velhos. Outros se erguiam para defendê-los, e o resultado disso era seis, sete, oito mortes violentas todos os dias, além das que ocorriam por culpa da inanição, das doenças ou dos suicídios. E no meio daquilo tudo, Lênis tentava ao máximo utilizar tudo o que aprendera com sua mestra para manter a cabeça no lugar e não interferir – em nada. Por mais terríveis que fossem as lembranças dos prisioneiros, e por mais perturbado que se sentisse ao vê-las, o pior de tudo era olhar para toda aquela barbárie e não poder levantar um dedo sequer para ajudar qualquer um daqueles miseráveis e famintos. Mas eram suas ordens. Precisava aprender a se tornar insensível. Descer através do abismo e encará-lo, sem medo ou remorso.
Quando deixaram o campo de prisioneiros, ele foi submetido a um longo e complexo processo de decantação, no qual suas memórias pessoais foram separadas das que absorvera. Apesar da extração bem-sucedida, muito do que sua mestra chamava de “emoções residuais” continuavam a incomodá-lo, sob a forma de sonhos envolvendo lugares que jamais visitara, em situações que jamais presenciara. Sua lição final foi aprender a utilizar esses resíduos, e tal qual um engenheiro que projeta um labirinto cheio de passagens falsas, reestruturar a própria mente, para torná-la tão confusa e cheia de lembranças falsas que, se invadida, nada revelar além de memórias impessoais, ocultando sua verdadeira personalidade.
Até que Agnum os chamou de volta. O tempo da missão havia terminado.
Quando, um ano depois de ter deixado sua terra pela primeira vez, Lênis tornou a pôr os pés em Migdala, era alguém totalmente diferente de quando havia saído.
Era um capturador de mentes.
– Eu... eu creio que esta informação é confidencial, senhor. – Lênis alertou a Boaz. – Estávamos em uma missão que exigia certos... procedimentos não-convencionais.
– Não precisa se preocupar com isso, rapaz. – Boaz o tranquilizou. – Procedimentos militares só são ilegais se executados sem permissão. Você estava sob a vigilância de um Mestre que dispunha de uma ordem oficial. Não foi para falarmos disso que o chamei aqui. Este – e apontou para o homem que observava absorto através da janela – é Álamo. Ele é o comandante das forças Égides que lutam na fronteira, e viajou do norte até aqui apenas para vê-lo.
– Ver-me, senhor? – Lênis perguntou, ainda sem entender.
– Sim. – Boaz confirmou. – Deixe que ele mesmo fale a que veio.
– Eu estava ansioso para conhecê-lo, Lênis de Mashala. – Álamo começou a falar, voltando as costas para a janela. – Você possui um conjunto muito específico de habilidades, as quais seriam de enorme ajuda na fronteira norte. Imagino que já tenha tomado conhecimento do conflito e dos problemas que temos enfrentado na Floresta Silenciosa.
– Eu ouvi falar, senhor. – Lênis respondeu.
– Temos enfrentado um problema complexo. – Álamo continuou. – Os soldados da força inimiga não se comunicam através de nenhum dialeto ou língua falada em Agnum, Vimaihana ou Vorona. Além do mais, aparentemente são fisicamente insensíveis, de forma que, mesmo quando utilizamos métodos... questionáveis para tentar extrair-lhes alguma informação, temos obtido poucos resultados.
Era o que Lênis temia. Não precisava ouvir o resto da explicação, sabia o que eles queriam. A única questão era se seria obrigado, ou se poderia recusar a tarefa.
– Então, – Lênis adiantou – imagino que, dadas as minhas habilidades específicas, o senhor presuma que eu conseguiria, com mentalismo, obter melhores resultados que os médicos altamente treinados da Ordem dos Égides?
– Se tudo o que Déborah descreveu no relatório a seu respeito for verdade, estou seguro que teremos melhores chances. Os Égides não recebem treinamento em mentalismo invasivo, porque é...
– ...ilegal. – Lênis completou. – E Déborah só pôde me ensinar porque eu estava fora do nosso território quando aprendi. Conheço as leis. Só não entendo por que estão sugerindo que eu execute um procedimento que sabem ser ilegal, ainda que em situação de combate. Pelo que entendi, estão tentando me induzir a cometer um crime militar. Então, com todo respeito, devo recusar, senhor.
– Não é uma sugestão, Lênis. – Boaz se manifestou. Parecia irritado. – Você está sendo convocado. Partirá para o norte, e integrará a força-tarefa de inteligência.
– Eu não posso ser convocado. – Lênis alegou. – Sou um escudeiro. Minha mestra precisa apoiar esta decisão, a menos que ela parta diretamente do Ancião.
Sua mente trabalhava rápida. Aquele era o último recurso. Lênis conhecia o funcionamento interno da ordem o suficiente para perceber que aquela conversa era uma tentativa de coagi-lo a aceitar uma tarefa sobre a qual não tinha nenhuma obrigação. A julgar pelo tom da conversa, era evidente que o Ancião não sabia daquela operação, e apesar de não ter muito contato com ele, Lênis sabia que jamais aprovaria aquele tipo de procedimento, mesmo em uma situação de guerra. Para Enoch, ou as coisas eram feitas da forma correta, ou não deveriam ser feitas.
Entretanto, denunciar aquilo ao Ancião era perigoso. Lênis ainda era um escudeiro, e conquistar a inimizade de Boaz não era prudente. Dificilmente processos de escudeiros abertos contra ordenados já formados resultavam em sucesso – um aberto contra um Mestre então, era quase impossível.
A única solução que via era adiantar o casamento com Veridane antes que eles pudessem conseguir a permissão com sua mestra e emitir a convocação oficial. Assim, nenhuma convocação poderia, por lei, separar os dois. Como Veridane ainda estava aprendendo a operar o Dom era improvável que fosse enviada para servir na fronteira antes de poder controlá-lo plenamente, e isso os manteria em Migdala.
Tudo era uma questão de se casar antes de ser convocado.
Lênis olhava para Boaz, se esforçando para parecer impassível. Por um segundo, Boaz mexeu em alguns papéis sobre a escrivaninha, carrancudo. Quando achou a folha que procurava, o estendeu para Lênis.
– Você não entendeu, meu jovem. – Boaz disse, ainda com a cara amarrada. – Você já foi convocado. E foi Déborah quem emitiu a convocação.
Lênis olhou para o papel, e sentiu seu estômago despencar. Leu rapidamente a nota de convocação, e no pé da página, como deveria ser, estavam as assinaturas de Melkisedech, Guardião da Trilha da Sabedoria, e de Déborah, sua mestra. Cada letra estava lá. Irrefutável. Irremediável.
– Quando... quando essa convocação foi emitida? – Lênis perguntou, desorientado. Estava tentando reorganizar as ideias.
– Ontem à noite, na ocasião da chegada de Álamo. – Boaz respondeu.
– Originalmente, queríamos Déborah na fronteira. – Álamo acrescentou. – Mas ela precisava resolver alguns assuntos pessoais, e transferiu a responsabilidade para você, alegando que seria um substituto à altura. É no mínimo uma grande honra. Não é normal que escudeiros sejam escalados para missões oficiais, especialmente as de grande importância.
Não, não era normal. Mas também não era ilegal. Era uma prerrogativa de qualquer Mestre poder ser substituído por um escudeiro ou discípulo, quando achasse adequado. A maioria dos escudeiros almejava a chance de substituir seus mestres, provar seu valor, e assim começar mais cedo sua ascensão na hierarquia da ordem. Lênis não era um deles. Em um futuro, talvez não muito distante, imaginava-se, ascendendo a Mestre ou até a Guardião. Mas no momento, só um desejo lhe aplacava – queria casar-se com sua noiva e iniciar sua própria família. E justamente esse seu único desejo, uma exigência mínima de seu coração e de seu corpo, por todo o sofrimento a que havia se submetido em prol do fortalecimento de sua mente fora totalmente despedaçado por aquelas duas assinaturas.
Não, não pelas duas. Por uma delas.
Melkizedech com certeza era um homem ocupadíssimo. Devia ter pilhas de documentos a assinar todos os dias. Era tolice esperar que ele fosse ler página por página, em especial se um desses documentos lhe foi entregue por um Mestre. A assinatura dele era imparcial, mecânica, fruto das suas simples obrigações diárias.
Mas Déborah não. Ela sabia. Mais que qualquer outra pessoa, ela sabia. Conhecia seu coração, talvez melhor que ele mesmo. Mas nada disso importava. Sempre fora dessa forma e, no fundo, ele entendeu. Ela não lhe tinha consideração e deixara claro desde o início. Ainda assim, era doloroso ser usado. Por mais que sua mestra tenha lhe treinado para bloquear suas emoções, ele ainda as tinha. E esperava ao menos uma justificativa. Nem isso ela lhe dera. Ela lhe atirou aos cães para se salvar, como se ele nada fosse além de uma ferramenta, e partiu sem olhar para trás.
– Eu... eu compreendo senhor. – Lênis disse sem, no entanto, se dirigir a qualquer um dos dois em particular. – Será uma honra servir na fronteira.
– É natural ter medo. – Álamo lhe consolou. Lênis pensou que talvez houvesse demonstrado receio, ou preocupação. Tratou de corrigir o deslize imediatamente.
– O medo é uma ilusão. – Ele respondeu, já coma expressão pétrea restaurada. – Uma forma desajeitada da mente lidar com o que não conhece.
– Eu disse a você que o rapaz é bom. – Boaz falou, satisfeito, se dirigindo a Álamo. Depois, voltou-se para Lênis. – Muito bom. Na sua convocação tem todas as informações que precisa saber. Você partirá uma semana depois do Rito do Renascimento.
– Sim, senhor. – Lênis respondeu. – Agora, se me der licença...
– Sim, claro. Pode ir. – Boaz concluiu.
Lênis passou pela porta profundamente desiludido. Casar-se com Veridane agora seria estupidez – só serviria para obrigá-la a servir na fronteira junto a ele, já que a convocação precedera o casamento e não podia ser revogada. E a última coisa que ele queria era vê-la no campo de batalha, especialmente por sua causa.
A única solução seria adiar o casamento. Por três anos.
A noite anterior, na qual havia visto sua noiva desfilar em frente ao espelho vestindo vermelho lhe pareceu tão distante da realidade à sua frente que poderia ter sido vivida por outra pessoa. Outro rapaz, cuja única preocupação era manter a cabeça fria e controlar seu desejo e paixão pela moça que amava até o dia do casamento. Esse não era ele. Ele era o jovem de rosto frio e alma envelhecida, cujo único horizonte à frente era o mesmo que tinha atrás de si: um campo de batalha cheio de prisioneiros famintos, esquálidos e brutalizados, pelos quais nada podia fazer, e dos quais precisava arrancar o que tinham de mais íntimo, custasse o que custasse.
Aquele era o preço por sua ganância de conhecimento.
Permitiu-se odiar Déborah com toda a força de sua alma, por alguns segundos. Imaginou-a, brutalizada, faminta, doente e maltrapilha, vítima de homens, de acidentes naturais, de animais selvagens. Deliciou-se ao imaginá-la gritar, chorar e sofrer, e então se deu conta.
Nunca, em momento algum durante os dois anos em que foi seu escudeiro, ele a vira sorrir. Talvez ela não tivesse mesmo sentimentos. Talvez fosse só uma casca vazia, uma mente poderosa ocupando um corpo sem coração. De qualquer forma, não importava. Não fazia diferença se ela tinha ou não sentimentos.
O importante era que ele os tinha. E precisava protegê-los, na eventualidade de voltar vivo da frente de batalha.
Depois do momentâneo surto de ódio, Lênis recolheu todas as emoções negativas e as guardou, no fundo de sua mente. Elas eram muito perigosas.
E poderiam ser extremamente úteis.
Sob o sol escaldante do oriente agnumiano, o céu absolutamente azul, limpo de nuvens, contrasta com o que quer que se erga acima do oceano dourado de areia soprada pelo vento. As torres da antiquíssima cidade de Manancial, agora Yahudah. As caravanas em direção ao horizonte. As tamareiras do oásis. E a flecha de ponta côncava, lançada em linha reta. O saco atingido pelo projétil explodiu a menos de um metro da cabeça de Iadah, espalhando areia e serragem. Abaixada e alarmada, ela seguiu, sorrateira, protegida pela barricada. Empunhava um arco curto, feito de osso e couro endurecido, que lhe conferiam extrema flexibilidade e o dobro do alcance de uma arma idêntica feita de madeira – uma engenhosíssima peça fabricada muito além da Savana Vermelha, pelos bárbaros nômades que habitavam nas fronteiras de Hamode. Custara uma pequena fortuna trazê-la de além do deserto – mas para enfrentar alguém tão obstinado a ven
Uzias e Deena seguiam pela estrada, cada qual montado em um robusto cavalo de viagem, tentando lembrar o caminho até o Templo do Imanente – a maior construção do tipo em toda a Agnum. Haviam chegado às imediações de Migdala três dias antes, mas passaram todo o tempo em Tsione, levando mensagens de Levana aos sacerdotes e eruditos locais, só descendo agora em função da liturgia que precedia o Rito do Renascimento. De acordo com Levana, o rito era uma mais uma formalidade que uma necessidade. Segundo contava-se, apenas ordenados que uma vez na vida houvessem submergido no lago interior da Caverna da Origem seriam capazes de operar o Dom – uma tolice, já que a história de Agnum, e mais remotamente, de Vellum, estava cheia de casos em que pessoas operavam teurgias antes mesmo de instituírem a caverna. Fossem quais fossem as razões do rito, Uzias estava muito
Intimidades– O que está fazendo aqui, Adameire? – Absalon tornou a perguntar, novamente sem resposta.Ela não respondia. Estava sentada, meio largada na poltrona do quarto, com a cabeça levemente inclinada sobre o ombro esquerdo. Absalon precisou se aproximar um pouco mais para perceber a razão do silêncio: ela estava inconsciente.Seu coração disparou. Antes de tocar no corpo, olhou ao redor e procurou por sinais de combate. Se a haviam assassinado ali, com certeza a intenção era incriminá-lo. Pensou imediatamente em Aminadave, Aryah e Acaiah. Aquilo seria uma tragédia.O quarto estava exatamente como ele o havia deixado, com exceção de um detalhe muito importante: estava limpo e organizado. Os lençóis haviam sido trocados, os utensílios pessoais e livros estavam todos ordenados nas prateleiras e, na mesinha de madeira
Uzias sentia a carruagem balançar enquanto seguia em direção a um lugar do qual só havia ouvido falar. Ao seu lado muitos sussurros se cruzavam, e sua audição privilegiada conseguia identificar a maioria deles. Seus olhos, no entanto, não podiam ver absolutamente nada. Estavam vendados, assim como os dos quase setenta jovens que eram conduzidos pelos túneis largos que levariam, segundo dissera seu guia, à Caverna da Origem.Saber a localização exata da caverna era proibido para todos os ordenados cuja graduação fosse inferior à de mestre. Isso acontecia porque a manifestação do Dom estava associada à água que corria pela caverna. Segundo ouvira, a maior parte dessa fonte em particular cruzava as cavernas pelo subterrâneo, sem que se soubesse onde era sua nascente, ou onde enfim ela desaguava. Sendo um segredo militar de Agnum, apenas ordenados co
Prezado Ancião Zarede; Recebi hoje pela manhã a notícia de que meus serviços à Ordem dos Profetas não são mais necessários. O regente achou adequado me remover da posição que eu ocupava já com alguma relutância, provavelmente me permitindo um descanso há muito desejado. No entanto, dadas as minhas posses modestas, como você mesmo sabe, preciso pedir-lhe um pequeno favor, que para mim será um grande auxílio. Gostaria que você acolhesse meus dois pupilos em sua casa – não como combatentes, mas como convidados. Não posso arcar com as despesas do discipulado no momento, e posso garantir-lhe que eles são modestos e lhe obedecerão como fariam a mim. Eu os enviei para o Rito do Renascimento, e os orientei a seguir para Ataya tão logo as festividades acabassem. Eu pretendo acompanhá-los tão logo resolva algumas pendências administrativas e possa me considerar verdadeiramente livre do fardo que carreguei por anos a fio. Quando estivermos reunidos
Na Ordem dos Armígeros havia um poste grosso, que não passava de um tronco largo e alto de árvore, toscamente cortado e fincado no meio da pista de corrida, famoso por servir de punição para novatos afoitos que se metiam a duelar sem conhecer direito as técnicas de esgrima, e por consequência correndo o perigo de um machucado feio. Os professores, como medida disciplinar, davam aos detidos a chance de evitar limpar latrinas ou descascar batatas, se provassem ser capazes de abrir um lanho na casca do tronco, usando qualquer arma que escolhessem. O que os novatos não sabiam, porém, era que aquele tronco em particular pertencera a uma árvore fossilizada, o que tornava sua casca, assim como seu interior, duros como pedra. Era um divertimento entre os veteranos zombar dos novatos afoitos, enquanto eles se esforçavam inutilmente, às vezes por horas, para evitar detenções mais desagradáveis. &
O governador agonizava, letalmente ferido. Sua respiração estava fraca, arquejante. Estava encolhido no meio do seu salão de cerimônias. Ao seu lado, Adna, sua cortesã e amante, jazia semimorta, vítima de um corte abaixo da linha do queixo, que ainda esguichava sangue quente, acompanhando o ritmo das batidas de um coração que logo iria parar. Era um dia especial – o casamento de sua filha. Ela ia desposar o chefe de um grande clã hamodita, e seria levada para longe dele. Mas estaria segura, com um marido que sustentaria seus hábitos caros. Agora, porém, o salão estava vazio de convidados. O banquete estava inteiro na mesa, intocado e ignorado. Ao seu redor, oito homens esperavam um nono começar a falar. – Eu realmente fic
O salão de reuniões do palácio regencial era um aposento enorme, no qual dezenas de assentos repousavam em semicírculo ao redor do trono do regente. As paredes altas e o teto abobadado eram decorados com pedras claras, de tons pastéis, para carregar o ambiente com paz e serenidade. As janelas compridas deixavam entrar uma quantidade generosa de luz, em qualquer hora do dia. O objetivo, evidentemente, era manter os conselheiros tranquilos, para que pudessem tomar suas decisões com sabedoria. Na regência de Leonoro, que terminara na última comemoração dos Funerais de Vinho, aquele aposento mal fora utilizado. Mas agora havia um novo regente. E uma nova ordem política estava em andamento, o que costumava ocupar o salão com muita regularidade. A regência agnumiana havia sido estabelecida exatamente após a Rebelião dos Profetas. Depois que a primeira guerra civil entre orde