O governador agonizava, letalmente ferido. Sua respiração estava fraca, arquejante. Estava encolhido no meio do seu salão de cerimônias. Ao seu lado, Adna, sua cortesã e amante, jazia semimorta, vítima de um corte abaixo da linha do queixo, que ainda esguichava sangue quente, acompanhando o ritmo das batidas de um coração que logo iria parar.
Era um dia especial – o casamento de sua filha. Ela ia desposar o chefe de um grande clã hamodita, e seria levada para longe dele. Mas estaria segura, com um marido que sustentaria seus hábitos caros.
Agora, porém, o salão estava vazio de convidados. O banquete estava inteiro na mesa, intocado e ignorado. Ao seu redor, oito homens esperavam um nono começar a falar.
– Eu realmente fic
O salão de reuniões do palácio regencial era um aposento enorme, no qual dezenas de assentos repousavam em semicírculo ao redor do trono do regente. As paredes altas e o teto abobadado eram decorados com pedras claras, de tons pastéis, para carregar o ambiente com paz e serenidade. As janelas compridas deixavam entrar uma quantidade generosa de luz, em qualquer hora do dia. O objetivo, evidentemente, era manter os conselheiros tranquilos, para que pudessem tomar suas decisões com sabedoria. Na regência de Leonoro, que terminara na última comemoração dos Funerais de Vinho, aquele aposento mal fora utilizado. Mas agora havia um novo regente. E uma nova ordem política estava em andamento, o que costumava ocupar o salão com muita regularidade. A regência agnumiana havia sido estabelecida exatamente após a Rebelião dos Profetas. Depois que a primeira guerra civil entre orde
– Isso é um absurdo completo! Justamente quando a situação ao norte se torna mais difícil, Amihud nos pede que abandonemos as defesas! – A palavra não é exatamente pedir. Isso é uma ordem. Uma ordem direta do regente, assinada pelo Juiz-de-Guerra. – Como se aquele patife entendesse alguma coisa do que estamos enfrentando aqui. Vamos ignorar! – Exatamente! Nós não podemos acatar uma ordem dessas, Ancião! Vai condenar todos em Ataya à morte! Zarede estava diante de três Guardiões extremamente exaltados. Mesmo Cervus, o especialista em sobrevivência da ordem, um homem de cabelos acastanhados, olhar sereno, e fama de imperturbável tranquilidade estava
O corpo no chão estava mutilado de tal forma que por alguns instantes foi difícil identificar o que era. A parte superior e a parte inferior estavam separadas, como se uma explosão o houvesse atingido no meio. Havia sangue seco no chão, e pedaços de entranhas por todos os lados. No rosto, a expressão petrificada de dor revelava o fantasma de um fim agonizante. Era um menino, e não deveria ter mais que dez ou onze anos. – Está frio, mas ainda cheira forte. – Acaiah disse, examinando o cadáver. – Não deve ter morrido a mais de quatro ou cinco horas. O cheiro diminui com o passar do tempo. – Não vai adiantar fechar todos os poços no caminho da nascente se não interrompermos a fonte do p
Os homens caminhavam já tinha aproximadamente um dia, desde que deixaram o antigo acampamento. Só haviam parado para descansar por algumas poucas horas, e avançavam mesmo à noite, ocasião em que as lâminas incandescentes iluminavam o caminho, para que pudessem recuperar meio dia de atraso. Atraso muito bem vindo, aliás. Adameire estava realmente impressionada. Eram mais de seiscentas peças, se fossem contadas espadas, escudos e partes de armaduras. Não imaginava que tipo de voto o pai deveria ter feito para conseguir sustentar um dom tão poderoso. Quando ela o viu, com os olhos reluzindo dourados, atear fogo na pilha de pertences pessoais dos soldados, diante de seus rostos estupidificados, achou que iria iniciar uma revolta no acampamento. Só um homem longe de casa por meses sabia a importância que tinha uma carta da esposa, um chumaço com cabelos dos filhos, ou o se
O triunfo da insistência A mulher pendurada pelos pulsos arquejava, respirando com muita dificuldade, enquanto seu sangue escorria pelo corpo e pingava no chão embaixo de si formando uma poça. A pele dela havia se convertido em uma crosta de sangue seco e feridas infeccionadas. Os outrora longos cabelos pretos, sempre mantidos em um elegante e digno coque, haviam sido raspados. O corpo esbelto havia se tornado magro, e depois, subnutrido. Os dentes quebrados a impediriam de mastigar, mas não de falar. Por mais agonizantes que houvessem sido as últimas horas, porém, aquele era apenas o começo. Seu algoz ainda a estava testando. Tentando descobrir exatamente o ponto em que a dor, a humilhação e o cansaço a fariam abraçar a realidade subumana em que estava mergulhada, e entregar o que lhe era exigido, sem, no entanto, brutalizá-la a ponto de o choque exceder o limite entre a lucidez e o d
Noite AdentroA névoa que se avolumava durante as noites frias ficava mais densa à medida que os dias demoravam cada vez mais a chegar. As folhas amareladas começavam a despencar das árvores a olhos vistos, e seus cadáveres ressequidos forravam o chão humoso, alimentando as coníferas que produziam mais daquelas pequenas aves fadadas a um único voo através do qual reiniciariam o ciclo. O aprendiz de profeta caminhava solitário refletindo sobre sua importância naquilo tudo. As folhas secas quebravam-se sob seus pés descalços, como se fossem menos dignas que as perseverantes e jovens, ainda presas aos galhos longínquos, observando ambos – o homem, e os cadáveres aos quais logo se juntariam – com a arrogância própria de quem observa do alto.Uzias se abaixou e
Era realmente muito estranho que estivessem quase todos reunidos ali novamente, quatro anos depois. E por mais que eles houvessem mudado, a paisagem continuava a mesma. As mesmas árvores, que normalmente estavam carregadas de frutas, agora se preparavam para substituir seus mantos verdejantes pela brancura da geada. O chão estava úmido, e o orvalho resultante da noite anterior ainda pendia da pouca folhagem que resistia ao frio cada vez mais intenso. Por mais que o calor já estivesse se tornando uma lembrança distante, os mais animados entre eles ainda reuniam entusiasmo para molhar os pés na beira do rio enregelante, atirar figos maduros catados no chão uns nos outros e aproveitar os espasmos restantes de uma infância que empreendia enorme esforço a fim de não abandoná-los. – Esse não valeu, Beni! – Abigail gritou. – Você o atirou de fora do rio! – Não é justo! – Beni gritou de volta. – Seu lado do rio tem uma pedra enorme para lhe proteger! Enquanto Beni e
O espião praticamente se arrastava, enquanto os pedaços da armadura ressequida esfarelavam-se, caindo de seus ombros como escamas velhas. A mão trêmula apertava o ferimento logo abaixo da costela, por onde o sangue escapava e encharcava a camisa suja de terra e contaminada pelo veneno sobrenatural. Encontrou um tronco de árvore um pouco menos afetado pela doença que assolava as outras árvores daquela região. Encostou-se nele, arquejando, e rasgou parte da camisa para examinar melhor o estrago. Talbo nunca fora homem que se queixasse de dor. Desde que havia se tornado um ordenado, era conhecido por suportar castigos que fariam outros homens desmaiarem. Seu corpo fortalecido pela combinação de elementalismos da água e da terra praticamente ignorava dor, doença e envenenamento. Naturais, ao menos. Tateou o corte feio e coagulado que tinha logo abaixo do diafragma, à direita. O ferimento havia necrosado em menos de três horas. A pele morta,