O corpo no chão estava mutilado de tal forma que por alguns instantes foi difícil identificar o que era. A parte superior e a parte inferior estavam separadas, como se uma explosão o houvesse atingido no meio. Havia sangue seco no chão, e pedaços de entranhas por todos os lados. No rosto, a expressão petrificada de dor revelava o fantasma de um fim agonizante. Era um menino, e não deveria ter mais que dez ou onze anos.
– Está frio, mas ainda cheira forte. – Acaiah disse, examinando o cadáver. – Não deve ter morrido a mais de quatro ou cinco horas. O cheiro diminui com o passar do tempo.
– Não vai adiantar fechar todos os poços no caminho da nascente se não interrompermos a fonte do p
Os homens caminhavam já tinha aproximadamente um dia, desde que deixaram o antigo acampamento. Só haviam parado para descansar por algumas poucas horas, e avançavam mesmo à noite, ocasião em que as lâminas incandescentes iluminavam o caminho, para que pudessem recuperar meio dia de atraso. Atraso muito bem vindo, aliás. Adameire estava realmente impressionada. Eram mais de seiscentas peças, se fossem contadas espadas, escudos e partes de armaduras. Não imaginava que tipo de voto o pai deveria ter feito para conseguir sustentar um dom tão poderoso. Quando ela o viu, com os olhos reluzindo dourados, atear fogo na pilha de pertences pessoais dos soldados, diante de seus rostos estupidificados, achou que iria iniciar uma revolta no acampamento. Só um homem longe de casa por meses sabia a importância que tinha uma carta da esposa, um chumaço com cabelos dos filhos, ou o se
O triunfo da insistência A mulher pendurada pelos pulsos arquejava, respirando com muita dificuldade, enquanto seu sangue escorria pelo corpo e pingava no chão embaixo de si formando uma poça. A pele dela havia se convertido em uma crosta de sangue seco e feridas infeccionadas. Os outrora longos cabelos pretos, sempre mantidos em um elegante e digno coque, haviam sido raspados. O corpo esbelto havia se tornado magro, e depois, subnutrido. Os dentes quebrados a impediriam de mastigar, mas não de falar. Por mais agonizantes que houvessem sido as últimas horas, porém, aquele era apenas o começo. Seu algoz ainda a estava testando. Tentando descobrir exatamente o ponto em que a dor, a humilhação e o cansaço a fariam abraçar a realidade subumana em que estava mergulhada, e entregar o que lhe era exigido, sem, no entanto, brutalizá-la a ponto de o choque exceder o limite entre a lucidez e o d
Noite AdentroA névoa que se avolumava durante as noites frias ficava mais densa à medida que os dias demoravam cada vez mais a chegar. As folhas amareladas começavam a despencar das árvores a olhos vistos, e seus cadáveres ressequidos forravam o chão humoso, alimentando as coníferas que produziam mais daquelas pequenas aves fadadas a um único voo através do qual reiniciariam o ciclo. O aprendiz de profeta caminhava solitário refletindo sobre sua importância naquilo tudo. As folhas secas quebravam-se sob seus pés descalços, como se fossem menos dignas que as perseverantes e jovens, ainda presas aos galhos longínquos, observando ambos – o homem, e os cadáveres aos quais logo se juntariam – com a arrogância própria de quem observa do alto.Uzias se abaixou e
Era realmente muito estranho que estivessem quase todos reunidos ali novamente, quatro anos depois. E por mais que eles houvessem mudado, a paisagem continuava a mesma. As mesmas árvores, que normalmente estavam carregadas de frutas, agora se preparavam para substituir seus mantos verdejantes pela brancura da geada. O chão estava úmido, e o orvalho resultante da noite anterior ainda pendia da pouca folhagem que resistia ao frio cada vez mais intenso. Por mais que o calor já estivesse se tornando uma lembrança distante, os mais animados entre eles ainda reuniam entusiasmo para molhar os pés na beira do rio enregelante, atirar figos maduros catados no chão uns nos outros e aproveitar os espasmos restantes de uma infância que empreendia enorme esforço a fim de não abandoná-los. – Esse não valeu, Beni! – Abigail gritou. – Você o atirou de fora do rio! – Não é justo! – Beni gritou de volta. – Seu lado do rio tem uma pedra enorme para lhe proteger! Enquanto Beni e
O espião praticamente se arrastava, enquanto os pedaços da armadura ressequida esfarelavam-se, caindo de seus ombros como escamas velhas. A mão trêmula apertava o ferimento logo abaixo da costela, por onde o sangue escapava e encharcava a camisa suja de terra e contaminada pelo veneno sobrenatural. Encontrou um tronco de árvore um pouco menos afetado pela doença que assolava as outras árvores daquela região. Encostou-se nele, arquejando, e rasgou parte da camisa para examinar melhor o estrago. Talbo nunca fora homem que se queixasse de dor. Desde que havia se tornado um ordenado, era conhecido por suportar castigos que fariam outros homens desmaiarem. Seu corpo fortalecido pela combinação de elementalismos da água e da terra praticamente ignorava dor, doença e envenenamento. Naturais, ao menos. Tateou o corte feio e coagulado que tinha logo abaixo do diafragma, à direita. O ferimento havia necrosado em menos de três horas. A pele morta,
O início da geada trouxe consigo dias cada vez mais curtos, áridos e brancos. Apesar de nenhuma tempestade de neve ter castigado a Floresta Silenciosa ainda, uma fina camada de gelo já começava a se formar sobre o chão, rochas e árvores desnudas de folhagem. O frio tornara os casacos obrigatórios, assim como o racionamento de comida. Em Ataya, os invernos comuns já eram, por si sós, preocupantes. Sempre podia faltar comida – e apesar de os moradores da cidade e arredores serem especialistas em arrancar sustento até dos suspiros das árvores, mesmo eles sabiam que era prudente não esperar muito dos dias brancos. Mas neste inverno as coisas eram ainda mais complicadas. Havia uma guerra em andamento. Naturalmente, o exército tinha seu próprio suprimento de comida, remédios, armas, equipamentos e os sobressalentes destes. A manutenção dos recursos poderia estender sua longevidade largamente, mas esse cuidado adicional significava menos comida nos lares dos habitantes da c
Localizado vários dias de viagem distante da frente oeste agnumiana, o acampamento dos Dragões Rubros parecia uma plantação de tendas pequenas, projetadas para homens de baixa estatura e habituados a poupar espaço, energia e recursos. Seus ocupantes eram todos guerreiros que provaram seu valor e coragem sobrevivendo a dezenas de combates contra os mais variados inimigos, que iam desde os Ryuras Imperiais, as tropas oficiais do Soberano Amarelo, passando pelos bárbaros das planícies orientais, homens brutos, tribais, quase tão animalescos quanto os javalis de batalha que montavam, os Escuros, da Savana Vermelha, com sua magia estranha oriunda de deuses horripilantes, e por fim, os Agnumianos, gente devota, fraca e pouco numerosa, mas insistente em defender seu território. A cada batalha o número dos soldados rebeldes caía, mas mesmo na derrota da Savana, a primeira d
As mulas estavam carregadas de mantimentos para vários dias, além de cobertores, roupas quentes e água. A primeira geada tornou o trajeto pelo chão sem trilhas difícil de seguir – ainda que a maioria dos arbustos secos e árvores despidas de folhagem estivessem razoavelmente espaçadas entre si, o caminho era desnivelado, e constantemente era preciso parar para desatolar a carroça. Haviam deixado Ataya tinha pelo menos dois dias. Depois que os últimos povoados ficaram para trás, apenas a brancura da neve e a lugubridade do vento assobiando por entre as coníferas acompanhavam os viajantes, agravando ainda mais a solidão que o silêncio sepulcral da floresta evocava. Se antes era habituado ao silêncio