Era realmente muito estranho que estivessem quase todos reunidos ali novamente, quatro anos depois. E por mais que eles houvessem mudado, a paisagem continuava a mesma. As mesmas árvores, que normalmente estavam carregadas de frutas, agora se preparavam para substituir seus mantos verdejantes pela brancura da geada. O chão estava úmido, e o orvalho resultante da noite anterior ainda pendia da pouca folhagem que resistia ao frio cada vez mais intenso. Por mais que o calor já estivesse se tornando uma lembrança distante, os mais animados entre eles ainda reuniam entusiasmo para molhar os pés na beira do rio enregelante, atirar figos maduros catados no chão uns nos outros e aproveitar os espasmos restantes de uma infância que empreendia enorme esforço a fim de não abandoná-los.
– Esse não valeu, Beni! – Abigail gritou. – Você o atirou de fora do rio!
– Não é justo! – Beni gritou de volta. – Seu lado do rio tem uma pedra enorme para lhe proteger!
Enquanto Beni e
O espião praticamente se arrastava, enquanto os pedaços da armadura ressequida esfarelavam-se, caindo de seus ombros como escamas velhas. A mão trêmula apertava o ferimento logo abaixo da costela, por onde o sangue escapava e encharcava a camisa suja de terra e contaminada pelo veneno sobrenatural. Encontrou um tronco de árvore um pouco menos afetado pela doença que assolava as outras árvores daquela região. Encostou-se nele, arquejando, e rasgou parte da camisa para examinar melhor o estrago. Talbo nunca fora homem que se queixasse de dor. Desde que havia se tornado um ordenado, era conhecido por suportar castigos que fariam outros homens desmaiarem. Seu corpo fortalecido pela combinação de elementalismos da água e da terra praticamente ignorava dor, doença e envenenamento. Naturais, ao menos. Tateou o corte feio e coagulado que tinha logo abaixo do diafragma, à direita. O ferimento havia necrosado em menos de três horas. A pele morta,
O início da geada trouxe consigo dias cada vez mais curtos, áridos e brancos. Apesar de nenhuma tempestade de neve ter castigado a Floresta Silenciosa ainda, uma fina camada de gelo já começava a se formar sobre o chão, rochas e árvores desnudas de folhagem. O frio tornara os casacos obrigatórios, assim como o racionamento de comida. Em Ataya, os invernos comuns já eram, por si sós, preocupantes. Sempre podia faltar comida – e apesar de os moradores da cidade e arredores serem especialistas em arrancar sustento até dos suspiros das árvores, mesmo eles sabiam que era prudente não esperar muito dos dias brancos. Mas neste inverno as coisas eram ainda mais complicadas. Havia uma guerra em andamento. Naturalmente, o exército tinha seu próprio suprimento de comida, remédios, armas, equipamentos e os sobressalentes destes. A manutenção dos recursos poderia estender sua longevidade largamente, mas esse cuidado adicional significava menos comida nos lares dos habitantes da c
Localizado vários dias de viagem distante da frente oeste agnumiana, o acampamento dos Dragões Rubros parecia uma plantação de tendas pequenas, projetadas para homens de baixa estatura e habituados a poupar espaço, energia e recursos. Seus ocupantes eram todos guerreiros que provaram seu valor e coragem sobrevivendo a dezenas de combates contra os mais variados inimigos, que iam desde os Ryuras Imperiais, as tropas oficiais do Soberano Amarelo, passando pelos bárbaros das planícies orientais, homens brutos, tribais, quase tão animalescos quanto os javalis de batalha que montavam, os Escuros, da Savana Vermelha, com sua magia estranha oriunda de deuses horripilantes, e por fim, os Agnumianos, gente devota, fraca e pouco numerosa, mas insistente em defender seu território. A cada batalha o número dos soldados rebeldes caía, mas mesmo na derrota da Savana, a primeira d
As mulas estavam carregadas de mantimentos para vários dias, além de cobertores, roupas quentes e água. A primeira geada tornou o trajeto pelo chão sem trilhas difícil de seguir – ainda que a maioria dos arbustos secos e árvores despidas de folhagem estivessem razoavelmente espaçadas entre si, o caminho era desnivelado, e constantemente era preciso parar para desatolar a carroça. Haviam deixado Ataya tinha pelo menos dois dias. Depois que os últimos povoados ficaram para trás, apenas a brancura da neve e a lugubridade do vento assobiando por entre as coníferas acompanhavam os viajantes, agravando ainda mais a solidão que o silêncio sepulcral da floresta evocava. Se antes era habituado ao silêncio
Os cinco vultos cortavam a neblina como navalhas afiadas dissipando a neve que caía ao seu redor, sem deixar atrás de si rastros identificáveis. Como sombras, se esgueiravam fazendo tão pouco ruído que não assustavam mesmo os mais cautelosos membros da fauna tão habituada à quietude daquelas paisagens. Seu silêncio, porém, era sucedido pelo rastro maculado da mesma doença e morte que assolava a frente de batalha norte, onde os terríveis Esquálidos haviam se apossado dos corações horrorizados de seus inimigos. Montada em seu cavalo de batalha, uma obra prima da mistura grotesca de ciência, alquimia e feitiçaria oriunda dos cantos mais obscuros dos laboratórios rebeldes de Volstania, a arquiteta dos horrores que se erguiam sobre as tropas ao norte de Ataya seguia inabalável, apressada diante da urgência de seus planos. Sua frieza tenaz se concentrava em um único objetivo: conseguir, antes de qualquer outro, o espólio final de todo aquele conflito. Tesla não imaginava q
O mapa amarelado e intumescido pela umidade estava estendido da melhor forma possível sobre a mesa. Em seus trajes de inverno, os oficiais olhavam as marcações apontadas pelos batedores e discutiam seus resultados tentando extrair algum significado que pudesse dar-lhes a vantagem tática de que precisavam. Ao redor dele, Aryah e Absalon, acompanhados por Mégaro e Valeshka, respectivamente os Guardiões e seus discípulos, além de mais dez entre os oficiais de maior patente ouviam atentamente a análise e as previsões daquela que talvez fosse a mais jovem ordenada a apontar o caminho para uma tropa. Já fazia algum tempo que Adameire se habituara a ter os olhos convergindo sobre ela. Desde o Cinturão do Pânico, a tropa não apenas notara sua existência, como também se habituara a pedir-lhe opinião em quase todos os assuntos – dos mais banais, como a quantidade ideal de distribuição de mantimentos, aos mais complexos, como a previsão de movimento das tropas. Este último, al
– Essa lógica de movimentação não faz o menor sentido para mim, general. – Explicou o comandante. – Não vejo nenhuma razão que justifique uma manobra tão estranha. Diante da mesa improvisada em no toco de uma árvore cortada para esse fim, os comandantes se entreolhavam, apreensivos. Nenhum deles queria atrair para si o desagrado do general, mas também não tinham ideia de como responder àquela situação. Makoto Watanabe observava o mapa intrigado. Sob qualquer ângulo normal, a resposta agnumiana à sua manobra de dispersão parecia inocente, arrogante ou incompetente. Em sua experiência militar, o general já havia confrontado inimigos arrogantes, estúpidos ou ambos – mas a própria necessidade de sua presença ali já mostrava que os defensores da floresta não eram nem um, nem outro. No entanto, o mapa tentava desmenti-lo. Havia enviado seis pequenos grupos espaçados para circundar o acampamento inimigo sem atacá-lo, na esperança de distrair a força inimiga e fragil
Um mar de homens. Uma tempestade de lanças. Um cardume de flechas e um vendaval de dardos. Para onde quer que os olhos apontassem, estavam cercados. Havia acabado a trégua, os espaços para as manobras e a vantagem das armadilhas. Teriam de lutar como loucos se quisessem sobreviver.Ou como monstros.No centro do acampamento, a única mulher entre os oficiais movia-se como uma força da natureza, arrebanhando indiscriminadamente a vida dos homens ao alcance de suas mãos e a coragem daqueles que travavam uma batalha feroz entre o medo e a honra, tendo diante de si apenas a perspectiva de uma morte brutal ou da vergonha extrema da fuga. Qualquer que fosse a opção escolhida, porém, uma realidade era implacável: aquela mulher, aquele pesadelo, não parecia vulnerável à dor, ao dano ou ao medo. Seus braços estraçalhavam tudo o que se aproximava demais: armas, armadu