Se havia um lugar em Ataya do qual pouco se conhecia a existência, era o calabouço na sede da Ordem dos Redentores. Normalmente destinado aos criminosos que, pegos cometendo crimes dentro dos muros, aguardavam julgamento antes de serem enviados a alguma unidade prisional na floresta, raramente era usado por serem baixíssimas as ocorrências criminais tão graves dentro da cidade. Suas paredes de pedra rachada exibiam fendas abertas por raízes que desciam desde o solo acima. Quase não havia luz – a pouca que entrava o fazia através de pequenas fendas no teto que davam para o salão principal da ordem. O frio que fazia ali, ao menos, era menor que o de estar ao ar livre no meio do inverno, mas ainda assim doía nos ossos e retesava os músculos.
Sobre o chão de barro batido havia restos de comida em pratos de madeira, alguns copos vazios e sangue fresco. Apesar de amplo, o l
Nevava havia dois dias e não havia qualquer sinal de que pararia pelas próximas semanas. O branco já havia coberto as raízes das árvores, e logo começaria sua lenta subida pelos caules. Em anos difíceis, um homem alto poderia ficar até os joelhos preso na neve. Era possível acrescentar um palmo ou dois à medida que se avançasse nordeste adentro e dizia-se que, na fronteira com Volstania, um homem podia ter neve até a cintura impedindo-o de prosseguir. Simplesmente avançar nessas condições era duro, mas pior ainda era fazer uma busca. Em condições normais, ninguém se atreveria a tentar encontrar um corpo específico soterrado no gelo em meio a um campo de batalha. Uma tropa podia fazer o trabalho mais rápido que um indivíduo, mas tão desmotivados pelo frio, os homens só pensariam em terminar logo e retornar para perto das fogueiras do acampamento. Os oficiais teriam tentado persuadir o comandante a desistir, pelo bem da tropa. &n
Por mais pobre que houvesse sido, a prisioneira Número Setenta e Dois até então jamais havia aberto mão de certas vaidades. O longo cabelo penteado, ou trançado, por exemplo, era talvez a maior delas. Quando criança, ele caía sobre suas costas como uma volumosa cascata dourada. Ela gostava de ver sua mãe o trançando ou penteando, diante do enorme fragmento de espelho que tinham no quarto, enquanto ela ouvia histórias sobre seu pai ou músicas assobiadas. Mesmo quando ingressou no exército, e se submetera a treinos extenuantes sob o sol ou sob a água salgada do mar, tratava as madeixas lanosas como uma mãe a um filho querido. Por mais que sua rotina de treinamento cumprisse bem sua função de libertá-la de vaidade e individualidade, aquele aspecto de sua alma feminina permanecera intocado, lembrando-a sempre de que, antes de um soldado, ela era uma mulher. Uma mulher bonita, com lindos e longos cabelos loiros. N
O primeiro livro da trilogia O Homem no Trono teve uma lista comprida de agradecimentos. Nela, expus todas as pessoas que, em minha convivência, serviram de inspiração involuntária para a criação dos principais personagens da história. Muito tempo se passou entre a conclusão daquele e a deste. Muitos deles mudaram. Alguns para melhor, outros nem tanto, mas sem dúvida nenhum deles é mais o mesmo. Algo semelhante aconteceu aos personagens em quem foram inspirados. Estão mais maduros, mais fortes, mais cientes do tamanho da responsabilidade que é crescer e se tornar adulto. Esta nota é um esclarecimento sobre algumas mudanças. Se o livro anterior, com suas aventuras adolescentes pontuadas por momentos de tensão, angústia e catarse podia ser considerado um livro infanto-juvenil, este cá com certeza já não pode mais se dar ao luxo de fazê-lo. Assim como os personagens, o tom da história está mais maduro, mais pesado, em especial quando mergulha nas angústias e
A menina se chamava Leah. Estava cabisbaixa, fitando os próprios pés enquanto desejava estar em qualquer lugar que não fosse aquele. Ao seu redor, muitas pessoas, sussurrando, vociferando, questionando e discutindo. Diante de si, estavam os homens das leis, que tinham o poder de encarcerar pessoas. Seu pretendente, Hapfah, os havia chamado para que a recapturassem, depois de ter fugido, para evitar o casamento. Seu futuro marido havia dito que a levaria para longe de sua família tão logo se casassem. Leah tinha treze anos e era habitante de um pequeno povoado instalado à beira de um poço nas proximidades de Zefanya. Hapfah era um mercador de cristais, dezesseis anos mais velho, cujo negócio exigia viagens constantes. O que assustava Leah a ponto dela fugir de seu futuro marido não era sua aparência ou modos, mas sim o fato de não querer ver-se longe de seus pais, irmãos e irmãs. Sua fuga, porém, havia causado um problema enorme. Nos povoados, era muito comum
Madrugada. O silêncio era interrompido pelo estalo oco dos passos despreocupados que cruzavam os corredores fracamente iluminados da ala feminina na ordem dos Armígeros. Os pássaros que cantarolavam o nascer do sol ainda não haviam começado o seu ofício, e a maioria das jovens que ocupava os aposentos atrás das sólidas portas de madeira dormia. Mesmo que a pessoa transitando por aqueles corredores fosse um ordenado, era bastante incomum que um homem caminhasse por aquela ala antes que as trombetas ruidosas anunciassem o toque de despertar e dessem por iniciadas as agitadas rotinas naquele edifício. Se ele fosse um adolescente, como os rapazes em treinamento, com certeza seria advertido, se pego, e passaria o restante do dia em alguma tarefa bastante desagradável, como limpar as latrinas ou descascar batatas na cozinha. O deambulante conhecera bem essas funções, já que tivera, em sua própria juventude, o hábito de se encontrar com algumas das
Sem dúvida, aquele era seu dia de sorte. Se havia alguma coisa pior que a dor, com certeza era a sensação de perder um membro. Justamente aquele desespero que dominava todos os pensamentos, quando se percebia o braço que deveria segurar a arma transformado em um toco sangrento. Ou quando se estava correndo, e depois de um tropeço no meio do caminho, levava a mão ao calcanhar para verificar o tamanho do estrago e sentia a ponta do osso da perna, estilhaçado, e separado do pé por uma armadilha terrestre diabolicamente plantada no meio de um arbusto inofensivo. Não que houvesse isso de arbustos inofensivos na linha de frente. Nem arbustos, nem árvores, nem cadáveres inofensivos. Nem nos companheiros mortos era possível confiar. Já vira acontecer do seu lado. O sujeito parava de correr, encostava-se em uma árvore perto de um cadáver qualquer, estropiado. Na primeira semana, um cadáver era sempre
O paredão se erguia dez metros, cheio de concavidades e reentrâncias, como uma muralha de rocha sólida da qual brotavam inúmeros pequenos cristais de diversas cores. Dividindo-o ao meio, a queda d’água fazia um barulho ensurdecedor, que ecoava nas paredes e tornava quase impossível qualquer conversa que não fosse composta de palavras simples, curtas e gritadas. O riacho que ela abastecia era largo e raso, de água gelada e revigorante. Em seu fundo, assim como nas paredes, havia uma enorme variedade de cristais, cintilando à luz das tochas na superfície. Toda aquela maravilha estava alojada dentro de uma caverna enorme, como um grande domo subterrâneo. Aquele era o antigo marco divisório entre o território de Migdala e Neemya, no que dizia respeito à posse das cavernas.
Veridane ofegava. Seus olhos castanhos tinham as pupilas dilatadas, tentando absorver o máximo possível da luz no escuro. Ao seu lado, no chão, uma vela grossa já quase na metade banhava o lugar enorme com uma tênue claridade alaranjada, que enfraquecia conforme se afastava da chama, até ser engolida pelo total negrume. Um par de mãos, firmes, segurava seu rosto com delicadeza. Ela sentia um pequeno arrepio sempre que as pontas dos dedos roçavam de leve em sua nuca, ou quando os polegares massageavam as maçãs do rosto, em movimentos circulares e suaves. Apesar de não ter sono, uma dormência gostosa se apoderara de seu corpo, levando-a a pensar cada vez menos no que estava fazendo. Porém, algo no fundo de sua mente lembrava-lhe que, se a encontrassem ali, depois do toque de recolher e sozinha co