CAPÍTULO SEIS

ANTES

— Essa bike é sua? – perguntou Silas e Túlio sentiu o estômago embrulhar ao ouvir a voz do menino mais velho. Todos por ali sabiam que Silas era encrenqueiro do bairro, na verdade, Silas nem era do pedaço, mas adorava se aventurar e implicar com garotos mais novos.

— É da minha prima. – Mentiu, mesmo sabendo que independente do que dissesse, Silas não ia se importar, a bicicleta poderia ser do Papa, se ele a quisesse, ele a teria.

Túlio estava cansado de ouvir histórias acerca de Silas e outros garotos marmanjos nas redondezas e mesmo sendo bem menor que o covarde, ele não entregaria a bicicleta sem lutar.

Já imaginava sua avó dizendo “ Por que não entregou a bicicleta de uma vez, menino! Tinha que puxar tanto seu pai?”

Tinha conseguido a bicicleta após ajudar Macca e Digo nas matérias no ano interior e foi sob ameaça forte, prometendo quebrar os dentes de Digo, o irmão mais velho de Macca, que lhe prometeu dar a bicicleta caso aos ajudasse nas matérias, que ele finalmente e somente esse ano, conseguira que o menino, que fugia dele há meses e se escondia, lhe entregou a bicicleta.

Sabia que era “ raivoso”, como dizia sua avó, mas não conseguia evitar, seu sangue subia quando via alguma injustiça ser cometida. Se Digo lhe prometeu a bicicleta e ele o ajudou e à irmã passar de ano, mesmo estando os dois em recuperação, qual a dificuldade em manter o combinado? Foram semanas os ajudando e ia ficar no prejuízo? Ah, mas não ficaria mesmo!

— Desce logo dessa “ magrela” cara, não tenho muito tempo. – Avisou Silas, olhando para os lados para saber se ninguém os ouvia.

E como sempre acontecia, o sangue de Túlio ferveu.

Claro que haviam pessoas à volta, mas baixaram a cabeça, como sempre faziam e ele nem poderia recriminá-las, ninguém gostaria de se envolver com Silas e seu bando.

Silas já devia ter quase vinte anos, nunca o vira trabalhando na vida. 

— Você vai ter que me arrancar dela, cara! – Pronto, chegaria em casa com os olhos inchados de novo, ouviria sua pobre avó falar por horas, desejar que seu pai e sua mãe estivessem vivos para colocar juízo em sua cabeça, se culpar por não ser pulso firme com o neto, se culpar por ser boazinha com ele por pena de ele ser órfão e o drama se sempre.

— Pois não – falou Silas e, com um metro e oitenta, dez quilos acima do peso, não foi difícil arrancar Túlio de cima da bicicleta, na verdade, quase não fez esforço algum quando o arrancou e o jogou como se o menino não pesasse nada, contra a calçada. 

Mas também não era muito difícil jogar um garoto de onze anos longe.

A raiva. A ira. Tudo se avolumou de uma forma tão avassaladora dentro do peito do garoto, como um vulcão entrando em erupção, que ele se pôs de pé num átimo.

O barzinho chamado Bodega, ao lado de onde ele caiu, estava aberto e alguns pinguços depressivos tomavam sua dose diária de álcool e viram quando ele foi arremessado. Viram também quando ele se pôs de pé, a rua de terra deixou sua boca cheia de terra.

A humilhação o deixou amargo por dois dias. Sua avó não percebeu que ele havia sido roubado, nem que Silas o humilhou, mas aquilo foi o suficiente para ele tomar uma decisão: não seria mais o bobo garoto que, como os outros da comunidade, apanhava e ficava calado.

O pouco que sabia sobre o pai, era que ele era eletricista. No cômodo do lado de fora, aos fundos de sua casa, feito em madeira e baixo, que a vó usava como quartinho da costura e da bagunça, haviam centenas de livros do pai sobre eletricista e ele se agarrava a esses livros e apostilas desde que se lembrava. Era um segredo seu, pois qualquer pessoa que visse, iria imaginar que ele era maluco, onde já se viu ler livros sem ilustrações e tão técnicos, mas era seu único elo com o pai e ele devorava cada página das centenas de livros ali, ao ponto de estarem desgastados pelo manuseio. E no segundo dia de sua humilhação, ele colocou em prática os ensinamentos contidos nas apostilas.

Não levou muitas horas para que ele desenvolvesse o dispositivo simples e rústico de choque. Acrescentou, claro, uma carga maior, não como a que indicava em uma das apostilas. Usando fios e cobres, que retirou das sacolas penduradas no muro de sua casa, sacolas essas que a avó guardava e juntava ali para vender para juntar às suas despesas mensais para sustentá-los. O ferro-velho pagava pouco e ele achava que o senhor João enganava a avó, pois ela sempre ia com quilos e quilos de latinhas e cobres, mas quase sempre voltava com o mesmo valor em moedas, por mais que juntasse o dobro ou o triplo de quantidade.

O dispositivo simples não seria o suficiente, Túlio sabia, mas ele tinha outros planos. Não conseguiu se sentir culpado quando enfiou a mangueira no tanque do Fusca de Maycon e extraiu dali meio galão de gasolina. O canalha espancava sua esposa grávida toda vez que chegava bêbado. 

Túlio esperou chegar a noite antes de sair, esperou a avó dormir e só então pulou o muro baixo de sua casa e foi à boca onde sabia que Silas ficava. Sabia até a hora em que o canalha dava uma saidinha para se encontrar com a mulher casada de nome estranho que morava na esquina. Sabia a hora que o marido da mulher saía para seu trabalho de segurança no Supermercado e era por essas horas tardias que Túlio visitava a mulher de nome estranho e foi nessa hora que Túlio chegou à boca. Por sorte sua bicicleta estava do lado de fora, nem trancada, afinal, quem a roubaria de Silas? Ninguém o faria por medo de represália.

Túlio retirou a bicicleta, colocou-a na calçada para só então atear fogo à casa capenga, que não demorou para alastrar o fogo.

Enquanto olhava do outro lado da rua o fogo crepitar, os curiosos aparecerem nas janelas, ele sentiu-se vingado e ainda que Silas o matasse, não se importaria.

Não demorou para Silas aparecer levantando o zíper, descalço e pálido. Gritos por todos os lados, desespero e caos e Túlio sorria. Deixando sua bicicleta resgatada encostada a uma árvore, foi até o estupefato Silas, bateu em seu ombro e quando o rapaz se virou para ele e o olhou embasbacado, ainda procurando entender sua futura situação, Túlio lhe estendeu a mão que sem perceber e em estado de choque, ele aceitou, o menino apertou-lhe a mão com um sorriso. O rapaz caiu ao chão com o susto e a carga de choque o desconcertando.

— Nunca mais, está ouvindo, nunca mais vai importunar ninguém, seu covarde! – Vociferou Túlio para o rapaz caído no chão e cuspiu nele, reforçando seu aviso.

Túlio não fizera isso para se mostrar, queria somente que Silas soubesse que ele era o responsável. Não pensou nas repercussões que seu ato poderia ter sobre sua vida. Mas enquanto caminhava de cabeça erguida para sua casa, empurrando sua bicicleta, notou que os vizinhos não mais olhavam para  as labaredas amareladas, mas para ele. Como um Moisés que passava pelo mar vermelho com o cajado, ele caminhou pela rua empurrando sua bicicleta, vingado e feliz.

No dia seguinte veio a surpresa. Seu portão estava coalhado de pessoas, jovens e velhos o olhavam com admiração. O garoto magrelo derrotara Silas e o elecrutara, o humilhara.

O traficante da boca, ao contrário do que ele pensava, o parabenizou, e Túlio soube na hora em que ele o chamou à pracinha do bairro, que o que sentia era medo e respeito por ele. Ele temia Túlio! Chamando-o de boy incendiário,  disse-lhe ainda que ninguém mais o incomodaria no bairro e que qualquer problema que ele e sua avó viessem a ter, era só chamá-lo. Avisou-o de que Silas não pisaria mais na comunidade e Túlio realmente nunca mais o viu.

Desse dia em diante,  o garotinho imberbe passou a ser respeitado não só em sua comunidade, mas nas outras da periferia toda. Ninguém mexia como garoto incendiário. Pessoas vinham até ele pedir ajuda em assuntos que ele nem saberia como ajudar e, com malícia e esperteza, ele passou a intervir em situações e auxiliar o povo local.  Sua próxima atitude foi livrar Macca, sua vizinha gestante, das surras do canalha de seu marido que a agredia quando bebia.

Um dia, passando pelo boteco em que Maycon estava, viu-o falando alto e rindo entre os amigos de copo, e seu estômago se embrulhou de saber que mais tarde naquela mesma noite, Macca apanharia. Túlio via e sentia, sempre, a mulher revoltada e irada após as pancadas, mas era miúda e estava carregando um bebê, não era páreo para o marido descontrolado, então ele resolveu que a ajudaria e naquela noite, usando mais um pouco da gasolina do carro do homem, esperou-o escondido em seu quintal e quando o homem entrou pelo portão, mal conseguindo se manter de pé e já acordando a esposa cansada com sua fala alta, trançava as pernas e falava palavras desconexas em seu torpor alcoólico, quando Túlio se levantou de trás do seu velho fusca, Maycon mal teve tempo de entender, quando o menino girou o galão e o encharcou de uma vez, da cabeça aos pés com o líquido inflamável.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo