CAPÍTULO CINCO

BORBOLETAS NO ESTÔMAGO

— Está atrasada de novo, está tudo bem, Cloe? – Lívia, sua professora de aritmética e encontra no corredor do colégio e lhe para, segurando-a delicadamente pelo cotovelo, o sorriso sempre amável nos lábios.

— Está sim, senhora Lívia. Ando praticando muito algumas aulas de piano, sabe, mas vou procurar não me atrasar mais, prometo.

— Que coisa boa, Cloe, fico muito orgulhosa por ser pianista. Só tente unir as duas coisas, meu bem, os dois estudos são fundamentais. Já pensou, uma famosa pianista que viaja o mundo e não sabe contas básicas de matemática? – A professora zombava dela e Cloe sabia que ela a admirava e só estava dando um jeito de lhe chamar a atenção.

— Quem me dera ser uma pianista que viaja o mundo inteiro! – Cloe uniu as duas mãos em sinal de oração e sorriu para a professora.

— É possível sim, Cloe. Você é muito aplicada nos estudos, só espero que continue assim. – Passando um braço pelo da aluna, instou-a a entrarem na sala de aula.

Cloe queria acreditar nas próprias mentiras. Sabia que a professora estava certa e que ela andava faltando ou chegando tarde às aulas, inclusive nas aulas de piano. Conseguira ludibriar a professora Lívia, por enquanto, mas haviam outros professores, outras matérias. Seu alívio era que era mesmo aplicada e seus atrasos e faltas, eram facilmente recuperados.

Enfiava a culpa para o fundo da mente toda vez que estava com Túlio ou pensando nele, o que vinha acontecendo frequentemente, então sua culpa ficava soterrada em sua mente.

Como no dia seguinte. Esquecida da promessa que fizera para a professora Lívia, não só faltou à aula do colégio como da de piano também. Ficara até tarde da noite conversando com Túlio por mensagens e quando deu por si, eram duas da manhã. Debaixo do edredom, para abafar a luz artificial do celular, que sua mãe observaria ao passar pelo corredor que levava aos quartos e falaria por horas, pior, falaria com seu pai e ele tiraria seu aparelho celular, escondida entre os lençois, enviava mensagens a Túlio.

“ — Você precisa descansar, pianista. Já são três da manhã.”

Túlio a lembrou pela terceira ou quarta vez na mensagem. Até isso a comovia, a preocupação dele com ela, mas dessa vez ela cedeu e se despediu dele.

“ —  Ok, nos falamos amanhã?”

“ — Sim, Gringo a levará à aula de piano pela amnhã e ao colégio à tarde. Te ligo no fim da tarde, tudo bem?”

O coração da garota se acelerou. Ela não gostava quando não era ele a levá-la às aulas, mas não podia reclamar. Ele devia ter muitas coisas ao longo do dia para fazer, afinal de contas, mas isso não impedia que ela ficasse triste. Com certeza não o veria no dia seguinte e isso a deixava para baixo. Ansiava pelos momentos que estavam juntos.

Túlio era mais calado, em suas conversas, era ela quem falava quase o tempo todo e quando se dava conta disso, olhava para ele e via que ele parecia beber de suas palavras. Ele gostava de ouvi-la e prestava atenção a tudo que ela falava. 

Cloe percebia que os olhos dele se acendiam quando ela falava de suas aulas de piano, de sua paixão por tocar. Fora os pais dela e o professor Oscar, seu professor de piano, só Túlio gostava de ouvi-la falar de piano. Ele até lhe perguntava coisas de suas aulas, claramente interessado e isso a motivava a falar mais e mais sobre sua paixão por música, sua paixão pelo piano.

No dia seguinte Cloe mandou uma mensagem para Gringo dizendo que não ia à aula. Pediu que ele não dissesse ao Túlio. Se arrumou como sempre fazia, tomou café da manhã com os pais, tendo  o cuidado de passar um corretivo para disfarçar as olheiras, pois sua mãe a conhecia a quilômetros e saberia que ela não dormiu bem. A ideia que teve, foi de ir à feira central que funcionava apenas às sexta-feiras.

Nesta feira, além de venderem diversas comidas típicas, vendiam artesanatos e Cloe gostava de passear sempre nela com Hanna e quando criança, os pais a levavam para andar de trenzinho, comer algodão doce e churros. Suas melhores lembranças da infância, era nessa feira, porta-retratos dela em criança na feira, estavam espalhados pela casa e uma no aparador da sala, mostrava-lhe com um largo sorriso de janelinha, onde o pai a imortalizara abraçada a uma pessoa fantasiada de um personagem infantil.

Mas o que lhe dera a ideia de ir à feira hoje, foi que se lembrou de um artista que expunha suas obras ali. Fausto, o artista, fazia lindas peças em madeira, desde mais robustas, como cadeiras, a chaveiros e Cloe se lembrou que uma vez vira um chaveiro delicado de um piano em miniatura. Queria presentear Túlio com um chaveiro desses e sorria ao pensar isso quando entrou no ônibus que a levaria ao centro, nem um pouco culpada por ter faltado à aula.

— Bom dia, Castro! – Cumprimentou o motorista com um largo sorriso.

— Olá, bela, bom dia. Faz tempo que não vai à escola de ônibus, heim? – Ele lhe devolveu o sorriso e ela disfarçou uma leve fisgada de culpa que a atacou.

— Tenho conseguido carona, Castro, mas hoje estou aqui.

Sorriu e foi para o fundo do ônibus, esperando que Castro não reparasse que não iria descer no ponto costumeiro.

O ônibus se encheu rapidamente e ela se perdeu em meio a tantos passageiros, desceu junto a um comboio que se destinavam também ao centro e ficou feliz de ver ao longe a feira montada como sempre e Fausto sentado no chão, às voltas com suas obras.

— Bom dia, senhor Fausto! – Ela se agachou ao lado dele e viu que ele executava uma intrincada trama de palha. Não se percebia ainda o que ele desejava fazer, mas a julgar por sua atenção e foco na delicada trama, deveria ser algo bem trabalhoso. Fausto bem poderia trabalhar no shopping no fim de ano, pois era um senhor de cerca de setenta anos com fartos cabelos e barbas brancos. Sua barba era alva e lisinha, chegava a quase tocar seu peito distendido. Seria necessário ele apenas colocar a fantasia do bom velhinho e estaria pronto para levar as crianças ao delírio. Sua barriga também ajudaria.

— Olá, muito bom dia! – O senhor lhe devolveu o cumprimento com um sorriso gostoso, levantou-lhes os olhos somente para a cumprimentar, as mãos não pararam a trama complicada. Cloe sabia que ele era muito procurado, estava ali a anos e seria impossível se lembrar dos nomes de todos os clientes que tivera ao longo das décadas. – O que traz a futura melhor pianista do mundo até meu cantinho?

— O senhor se lembra que sou pianista? – Ela estava mesmo surpresa por ele se lembrar disso. Claro que o pai e a mãe adorava exibi-la e bastava terem um par de ouvidos a ouvi-los para disparar o quão perfeita sua filha era, melhor aluna no colégio, a melhor pianista e blá, blá, blá. Isso ainda a embaraçava, pais, pensava.

— Claro, Cloe. Os melhores clientes a gente nunca esquece, querida.

Cloe se sentiu comovida com isso. Era apaixonada pelo piano, sentia em sua alma a vontade de tocar todos os dias, sua música era como uma extensão dela, seu respirar, mas bem no fundo, temia não ser tão boa quanto achavam que ela era. Fausto fizera uma réplica de um piano a pedido de seu pai para ela quando fez dez anos, mas mesmo assim, como o senhor nunca se esquecera disso? A linda peça parecia um daqueles pianos infantis, mas era só uma peça de enfeite, claro, nem tinham teclas e sua tampa era lacrada, ele era vazio por dentro, mas para quem não sabia ou conhecia, parecia mesmo um piano e sua mãe o colocara no quarto da filha com um espelho em cima. Cloe achava que era a melhor coisa, o melhor móvel em seu quarto.

— Sabe o que gostaria, senhor Fausto?

— Outro piano? – O senhor continuava sua fabricação, clientes passavam e olhavam para sua banca abarrotada de peças lindas em madeira. Olhavam também para o idoso parecido ao papai Noel, obeso sentado no chão. Não deveria ser fácil se levantar depois, Cloe não conseguiu deixar de pensar.

— Outro piano, minha querida?

— Sim – ela respondeu sorrindo. – Mas um pequeno, senhor Fausto. Igual aquele chaveiro que comprei aqui uma vez, sabe, é para presente.

— Claro. Me ajude a levantar. – O homem deu a mão para ela e a garota bufou para ajudá-lo a se pôr de pé, temendo que caísse por cima dele.

O senhor Fausto foi para trás de sua banca e retirou de lá não só um, mas vários mini-pianos, que enterneceu o coração de Cloe. Ficaria difícil escolher um, então ela pegou dois. Eram sem dúvida muito mais bonitos que o chaveiro que ela comprara dele antes. – Me aprimorei mais, gostou?

— Adorei! Nossa, são lindos. Vou levar esses dois, quanto fica?

— Quando a vi notei que está apaixonada, então não vou lhe cobrar nada.

— Oi? – Ela desviou os olhos das peças em sua mão, sentindo o rosto corar, mirou o rosto bondoso do senhor.

— É fácil ver como está diferente, minha querida. O amor está saindo por seus poros e irradiando. Mas ignore um velho romântico. Deixe-me embrulhar para você.

Cloe agradeceu ao senhor com um abraço, registrando na mente que o visitaria mais vezes, até planejou trazer Túlio para conhecê-lo um dia e se foi, maravilhada com os presentes para entregar. Aproveitou que o dia estava ensolarado e lindo e foi ao shopping a duas quadras da praça, andaria pelas lojas um pouco, pegaria uma sessão de cinema e almoçaria por lá. 

Há tempos não relaxava um pouco a cabeça. Os estudos tomavam muito do seu tempo e treinava novas músicas ao piano por horas diárias, estava se sentindo ousada e tiraria o dia para si. 

Mesmo tendo planejado todo o dia ou a tarde, se sentiu um pouco amuada ao saber que não veria Túlio hoje. Ele pedira que seu amigo a buscasse nas aulas. Sentada na praça de alimentação do shopping e pensando nele, resolveu mandar uma mensagem. Antes que perdesse a coragem, tirou o celular da bolsa, mirou a câmera em seu cappuccino e mandou a foto para ele.

A resposta veio instantânea e quando ela viu que ele digitava, sentiu um frio na espinha e aguardou que a mensagem dele viesse, segurando com força o aparelho e sorrindo por dentro.

“ — Não foi à aula?”

Como podia quatro palavras apenas deixá-la de pernas bambas e suando?

“ Não fui e pedi a Gringo que não lhe dissesse. Não queria preocupá-lo, afinal, só tirei o dia para refrescar as ideias.”

‘“ — Você está bem?”

“ — Estou ótima e lhe comprei um presente.”

Pronto. Tinha dito e, ainda que quisesse a atenção dele, que soubesse que não deveria fazer isso, contou que estava dando cano às aulas e que lhe comprara um presente. Seus batimentos estavam descompassados enquanto aguardava a resposta dele. Olhava a tela como se sua vida dependesse de vê-lo digitar, mas nada. Droga, não devia ter sido precipitada. Será que o tinha pressionado? Meu Deus, agora já foi.

E quando as linhas pontilhadas de digitação começaram, ela quase esmurrou a mesa de emoção. O cappuccino esfriando, esquecido, o resto do seu dia também esquecido e ela sequer olhava para o lado.

“ — Também lhe comprei um presente.”

Pow! Ela deu um murro na mesa e assustou um casal que comia uma salada de frutas na mesa ao lado. 

— Desculpe… passei em uma prova. – Ela sorriu amarelo para o casal e voltou a atenção ao celular.

E era o mesmo sentimento, o de passar em uma prova que ela sentia. Aguardou dois minutos para ver se ele dizia mais alguma coisa e a ansiedade prevaleceu, e ela mandou outra mensagem, jurando que seria a última:

 “ — Ansiosa. Quando poderei ver meu presente e você o seu?”

Ela roía a unha e a resposta não demorou a chegar:

“ — Breve…”

Com o sorriso mais besta e idiota no rosto, ela se levantou da cedira e viu que o casal a olhava com um sorriso:

— Parabéns. – Disseram à ela quando ela saía.

— Obrigada.

Ela parecia flutuar pelo piso brilhante do shopping. Não conseguia tirar o sorriso dos lábios. As mensagens dele queimando dentro dela, borboletas no estômago.

Entrou em uma loja de sapatos, onde conhecia a vendedora, aguardou que ela atendesse uma cliente e ficaram caminhando pela loja conversando, Cloe fingindo ser uma cliente interessada em alguma sandália e quando se despediu da amiga e saía da loja, quase se chocou com Túlio.

Ela olhou para ele e soube. Era oficial, estava apaixonada por ele.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo