CAPÍTULO DOIS

SINFONIA PARA PIANO N° 5

— Olá – ela cumprimentou cada um e quando Túlio entrou e pegou no volante, sentada no banco de trás com os rapazes, ela se voltou para ele. – Não precisam me buscar mais. Foi bom você ter aparecido porque queria lhe falar pessoalmente sobre isso. Agradeço muito, mas não há necessidade disso.

— Coloque o cinto – ele falou e a olhou pelo retrovisor. Parecia bem menos ferido, o olho ainda inchado, escoriações no pescoço, mas parecia bem melhor do que da última vez que o vira caído no asfalto quente. – Não é trabalho algum e é o mínimo que posso fazer para agradecê-la, Cloe. Sopapo, Gringo e Canibal estarão sempre a postos para buscá-la caso eu não possa.

Ele falou sério, seus amigos estavam em silêncio e Cloe gostou de ouvir seu nome na boca dele. O que diabos estava acontecendo com ela? A imponência dele parecia preencher o automóvel e ela achou melhor ficar calada. Como era normal, já que era levada e trazida da escola todos os dias, sabiam onde ela morava, mas Túlio não a deixou em sua casa, fez um outro caminho, mais longo e nenhum dos ocupantes falaram nada. Quando ela já ia lhe perguntar porque mudara a rota, chegaram a um outro lado da comunidade onde ela morava. O lado que ela quase não frequentava. 

— Talvez eu tenha entendido os apelidos de vocês – ela olhava para os três companheiros de Túlio –  Sopapo deve ser porque gosta de bater e dar sopapos; Gringo, creio eu, seja porque você tem um sotaque diferente, mas Canibal, esse me deixou meio preocupada. – Os quatro homens riram dela por quase um minuto inteiro e foi Canibal quem lhe respondeu:

— Tá na boa, é por causa disso, olhe – ele lhe mostrou os dedos e a moça notou que ele arrancava pelinhas dos dedos, no cantinho e os feria. O polegar da mão direita estava bem mordiscada e até avermelhado de irritação do atrito de um dedo que futucou ou que ele tivesse mordido. Menos mal e até ela ria agora que entendia o apelido dele. – Gosto de comer a pele que arranco, nada mais que isso, tá ligada? – Ela anuiu e lhe sorriu. Que doideira, ela estava se afeiçoando até aos caras, os companheiros de Túlio.

Os amigos dele desceram e somente os dois permaneciam agora no carro.

— Quer se sentar aqui na frente comigo? – Túlio perguntou sem olhar para ela. – Não me faça de seu motorista.

Cloe notava que ele brincava com ela, desceu e se sentou ao lado dele. Ele estava bem vestido; usava uma calça jeans e uma regata branca que lhe destacava bem os músculos e ela só passou os olhos por ele, colocou o cinto e ele se pôs a andar.

— Posso levá-la para tomar um sorvete? – Ele perguntou e a voz dele era grossa e baixa.

— Costuma pedir? Imaginei que me colocaria uma arma na cara e me levaria para onde quisesse. – Ela estava ousada e corajosa. Não queria que aquilo de a buscarem e levarem na escola continuasse. Túlio parou o carro e encostou. Olhou para ela e Cloe sentiu o coração disparar. Não por ele estar com a aparência ainda meio assustadora. Agora ela via perfeitamente o quão machucado ele tinha sido. O olho que quase não fechava no dia das pancadas, ainda estava bem inchado e uma coloração azul-esverdeada descia até quase seu queixo. Um corte profundo no pescoço contrastava com a pele clara dele, com a mão ainda no volante, ela viu que os  nós dedos estavam esbranquiçados da força que ele segurava o volante e trincava os dentes. Os olhos dele eram de um azul gélido e ela não ia lhe mostrar medo.

— Não sou envolvido com drogas, Cloe. – Foi o que ele falou que a  surpreendeu. E mais uma vez pareceu que ele perfurava a alma dela com o olhar profundo.

— Não tenho interesse em saber seu ramo de atividade, Túlio, só quero que siga seu caminho. 

Um sorriso enviesou os lábios feridos dele e Cloe notou que um dos dentes frontais dele era assimétrico e se sobrepunha sobre o outro, um defeito que o deixava ainda mais bonito. O sorriso meio a desestabilizou. Como ele podia ser tão bonito assim?

— Gosto de como meu nome soa em sua boca – Ele falou e olhou para os lábios dela e isso a deixou sem fôlego. Sim, ele mexia com ela. E ela pensou o mesmo, gostara de como seu nome soara na boca dele. – Quando abri meus olhos enquanto os caras me batiam, achei que tinha morrido e ido para o céu, sabia? Você pareceu um anjo ali em meio a pancadaria.

Pronto. Agora era oficial. Ela também mexia com ele! Que porra ela faria agora? Antes de ligar o carro e sair, Túlio ainda disse:

— Sabia que quem salva uma pessoa, fica responsável pela vida dela? Minha vida lhe pertence de agora em diante. – Ela se esqueceu como se respirava, grudada ao banco do carro, olhava para fora, lembrando que Hanna lhe dissera, que as condenara tendo salvado-o. Sim, ela estava condenada. Mas o pior era que estava feliz com isso, estava animada por saber que aquele lindo cara de olhos azuis estava ligado a ela irremediavelmente.

— Me leve para casa, por favor – pediu quando encontrou de novo a voz.

— Seu desejo é uma ordem, pianista.

Cloe entrou em casa mal o carro parou, sequer se despediu dele. Seu coração retumbava em sua caixa toráxica e entrando em seu quarto, ligou para Hanna e lhe disse que precisavam muito conversar.

Hanna não tardou a chegar e Cloe despejou tudo em seus ouvidos, andando de um lado para o outro no quarto.

— Meu Deus, Cloe. – Hanna estava sentada na cama da amiga e torcia as mãos, preocupada. – Acha que está apaixonada por ele?

— Parece clichê se eu disser que acho que estou? – Cloe parou no meio do quarto e olhou para amiga, a confusão lhe transfigurando o rosto. – Não paro de pensar um minuto nele desde que o vi apanhando, desde que ele abriu os olhos e olhou para mim. Me ajude, Hanna, estou tão perdida.

— Sente aqui, meu bem – Hanna a fez se deitar, deitou-se ao seu lado e as duas olhavam para o teto. – Ele mesmo te disse que não é um drogado e não está envolvido com drogas. Já é alguma coisa positiva. Porém, sabemos que ele é Túlio! Ele é da gangue de Paco. 

— Então! Não está me ajudando em nada falando isso, Hanna! – Cloe tapou o rosto com as duas mãos. 

— Ao mesmo tempo, não decidimos por quem nos apaixonamos, se é que está mesmo apaixonada. Vamos dar tempo ao tempo e ver qual é a dele. Ao menos Cris deu um tempo depois de saber do que houve, né?

— Ao menos isso. Eu nem tenho pensado naquele babaca esses dias. – Cloe tinha namorado por duas semanas com Cris, apenas duas semanas e se odiava por isso. Dera uma chance ao cara que não saía de seu pé. Cris não morava na comunidade. E não foi por isso que o havia largado, mas porque ele tinha sido preconceituoso ao se referir a quem morava na comunidade com menos favorecidos. A forma como dissera isso, sentindo-se superior por não morar na comunidade, foi tão terrível e a fizera vê-lo com outros olhos. Só levou duas semanas para que a garota percebesse como ele era preconceituoso. Cris lhe dissera que ela era legal e bonita, poderia ser mais que uma favelada e isso pôs fim ao recém relacionamento deles. Ele não saía de seu pé, inconformado com o término, por mais que Cloe o rejeitasse.. 

Conversaram por mais umas horas e Hanna se despediu no fim da tarde, marcando de se verem na escola no dia seguinte.

Pela manhã, quem veio buscá-la para a aula não foram os amigos e parceiros de Túlio e sim ele mesmo, Cloe levou um susto ao vê-lo ali ao abrir a porta do carro para entrar.

— Olá, pianista – ele a cumprimentou e maldito fosse, o coração da garota se descompassou.

— Olha só, resolveu vir você mesmo – foi o que ela disse ao se sentar na frente ao lado dele, fingindo indiferença. E quando iam, ela lhe perguntou. – Já que me disse que não é um drogado, qual o seu papel na comunidade, o que faz?

— Bem, não sei se tenho um papel aqui, costumo deixar tudo organizado, me entende?

— Não.

— Ajudo os moradores do Deltame há anos, tento evitar que o pessoal do Navarro ou qualquer outro venha  fazer algo que prejudique aqui…

— Ou seja, você é o líder da gangue de Paco, o que mantém Deltame livre de ataques? – Ela o interrompeu, para que ele não fizesse rodeios. Precisava que ele falasse o que realmente fazia.

— Alguns usam isso, esse nome para se referir a mim. – Foi a vaga resposta dele. Cloe sentia o olhar dele de vez em quando sobre si e isso a arrepiava. Chegaram à escola e ele se foi.

Cloe não conseguia parar de pensar nele, por mais que tentasse.

No sábado, saindo de casa e indo até a manicure do quarteirão de cima, ia pensando que ficaria até segunda-feira sem ver Túlio e quando Cris apareceu como que brotando do chão à sua frente, ela fechou a cara.

— Não quero conversa, Cris, saia do meu caminho. – Falou firme e tentou passar por ele, mas ela a segurou pelo pulso:

— Poxa, gata, o que fiz para não querer mais saber de mim e nem atender minhas ligações?

— Tire sua mão de mim! – Ela falou entredentes. – Não quero mais sair com você e nem bater papo, está entendendo?

Cris pareceu ver que ela estava mesmo irredutível e não voltaria com ele. Soltou-lhe o pulso e pediu:

— Só quero um beijo e poderá ir.

— O quê? Está doido, não ouviu o que eu disse?

— Ouvi, mas quero pelo menos um último beijo!

Cris não a deixava passar e a rua estava vazia no momento, ele sabia disso, sorria por saber que ela não teria o que fazer, a não ser beijá-lo. Cloe bufou uma risada que o deixou ainda mais irritado ao ser descartado e zombado e ele pegou novamente em seu pulso, com mais força dessa vez.

— Me solte, seu canalha esnobe! – Ela vociferou e Cris apertou um pouco mais.

Como se um vendaval tivesse atingido o rapaz, ele estava no ar. Cloe ofegou sem entender e ali ao seu lado estava Túlio. De onde ele viera? Ela mal teve tempo de pensar e ele caiu em cima de Cris. Cada murro um barulho de ossos partidos e Cloe notou que gritava quando sua garganta ardeu:

— Pare, você vai matá-lo! – Mas Túlio continuou esmurrando a cabeça e rosto de Cris que já estava inconsciente no segundo soco. Cloe pulou sobre as costas de Túlio e só assim conseguiu afastá-lo. Túlio tinha os olhos vermelhos de ira, os nós dos dedos também, do sangue que arrancou do rapaz no chão. Ela olhava para ele emudecida e pálida. 

“ — Meu Deus, quem é esse homem? Ele é um monstro?!”  –  Ela pensava espantada e saindo de seu estupor, só pensava em sair de perto dele e de Cris caído como um trapo. Caminhava rápido e  Túlio a alcançou e a segurou com delicadeza pelo ombro.

— Desculpe. – Só essa palavra a fez se acalmar e parar, como ele tinha esse poder sobre ela? – Não fique brava comigo, não me contive ao ver o babaca insistindo e a assediando. Me desculpa?

Olhando para ele e não sabendo o que fazer, foi surpresa para ela mesma quando se viu pedindo:

— Estou confusa, Túlio. Quem é você?

— Como assim?

— Quem realmente é você?

— Não sei como lhe dizer.

— Me mostre então.

— Mostrar?

— Sim, deixe-me ver o que faz, quem é você.

E aquele sorriso estava de volta aos lábios dele.

— Venha comigo. – Chamou-a e ela pegou a mão estendida dele e o seguiu até o carro dele na esquina.

— Onde estamos indo? – Ela perguntou, totalmente consciente da sua mão na dele.

— Resolver um pequeno problema que surgiu.  Vou deixar com você esses fones de ouvido e meu celular. Curte a música se ficar assustada, ok? Confie em mim! – Foi só o que ele respondeu, deixando-a mais confusa ainda.

 Cloe pegou os fones e o celular dele e os colocou no colo.

Quase saíam do bairro quando Túlio estacionou o carro e desceu rápido. Cloe não conhecia muito bem aqueles lados, mas sabia que Jânio, o traficante daquela área, não gostava de visitas sem avisos. Um monte de pessoas se aglomeravam e ela ouviu uma voz falando o nome de  de Jânio em meio às outras vozes. Ela gelou e achou que o tiroteio ia começar. Com o coração aos saltos, permaneceu dentro do carro.

“ –  Qualé, parceiro, tá tudo na paz, cara!” – Ela ouviu a voz de um deles, não era a do tal de  Jânio e ela podia jurar que era do cara que falou com ela no dia da briga, o que espancara Túlio. Gelando e sentindo um medo irracional, ela soube que haveria briga entre as duas gangues. Os caras que pegaram Túlio na porta da escola dela estavam ali! Eram da gangue de Navarro, por Deus!

Cloe via nitidamente a briga acontecer à sua frente. Foi tudo muito rápido e dessa vez Túlio estava preparado e distribuiu golpes desenfreado. Colocando os fones de ouvidos e ligando o celular dele com as mãos atrapalhadas, demorou para ligá-lo. Resolveu abafar os gritos e pancadarias ao som – ela não podia acreditar! –  de Beethoven!

Aquilo estava realmente acontecendo ou ela estava sonhando?! Como que em perfeita sincronização,  a sinfonia de Beethoven fazia a trilha sonora para a luta absurda que desenrolava na frente do carro onde ela estava sentada e, para seu total assombro, Túlio que acabara de ser acertado no queixo e sua cara se virou para ela com o impacto, lhe sorriu e lhe piscou, para em seguida mergulhar com mais empenho na luta. 

Sério que estava assistindo uma briga e em seus ouvidos tocava a sinfonia número cinco?!

Túlio só podia mesmo ser um doido. Seria cômico se não fosse trágico e ela resolveu fechar os olhos como fazia quando assistia filme de terror e o monstro aparecia na tela, assustando-a. Melhor nem ver a luta. Ele pedira que confiasse nele e ela cegamente o faria. Que Deus tivesse pena dela.

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