2. Nem Sob Dor Escapo dos Speredos

Quando acordei, o primeiro rosto que vi não era exatamente o que eu esperava encontrar ao abrir os olhos. Um homem, talvez na casa dos trinta, me observava com um olhar preocupado. Não era o tipo de beleza que me faria suspirar, mas seus olhos suaves e o nariz bem delineado eram, de alguma forma, reconfortantes.

— Você está bem, senhora? — ele perguntou, a voz doce como uma brisa de primavera.

Notei que ele estava vestindo um jaleco branco. Ah, então deve ser o dentista. Soltei um suspiro de alívio e, enquanto tentava controlar a dor que ainda latejava na minha boca, disse:

— Estou viva, mas meu dente está me matando. Você pode fazer algo a respeito?

Ele soltou uma risada suave e me ajudou a levantar do chão, suas mãos firmes, mas gentis.

— Siga-me até o consultório.

E assim fiz, passando pela sala de espera sob olhares curiosos que, sem dúvida, me amaldiçoavam silenciosamente por ignorá-las enquanto ele me arrastava para fora. A dor era uma sombra tão insuportável que não me permitia ser mais cortês. 

Quando entramos no consultório, uma senhora já estava sentada na cadeira, sua boca ainda dormente da anestesia.

— O que foi esse caos? — perguntou ela, a curiosidade transbordando em cada palavra, como se fosse a fofoqueira do prédio.

— Não foi nada, essa senhora desmaiou — respondeu o dentista, se acomodando atrás da mesa com uma calma que só aumentou minha ansiedade.

A mulher me avaliou de cima a baixo, seu olhar penetrando como uma agulha.

— Como assim nada? Senhora, você está doente? Grávida? Se você tem diabetes, precisa comer algo doce. É arriscado desmaiar, sabia? Ouvi que nosso vizinho desmaiou porque estava dormindo na privada e agora virou um vegetal em coma!

Com cada palavra dela, meu pânico aumentava, e suas bochechas inchadas pela anestesia pareciam se mover de maneira estranha. Eu me sentia prestes a entrar em colapso novamente.

— Os jovens de hoje estão tão fracos. Olhe para você, tão azeda quanto um limão! Vai desmaiar de novo?

Assim que ela terminou de gritar, o dentista finalmente levantou os olhos, alarmado. Eu estava de volta ao mesmo pesadelo de antes, pronta para uma segunda rodada de desmaios. 

Mas desta vez, não perdi completamente a consciência. Senti os braços fortes do dentista me segurando, um gesto que deveria ser confortante, mas me fez lembrar de outra pessoa. Aqueles braços, o perfume masculino inconfundível

Com um impulso, afastei-me dele, meu tom mais frio do que pretendia. 

— Estou bem, não precisa me tocar.

Um calafrio percorreu minha espinha, e não era pela dor.

Sentei-me na cadeira em frente à mesa, tentando parar de tremer. 

— Senhora, eu tenho fobia de dor. Agradeço se você parar de mencionar essas experiências dos outros. Vou me sentir melhor se não pensar em dor.

Finalmente, ele decidiu agir. Seu olhar sério se fixou em mim.

— Você tomou algum analgésico?

— Apenas alguns minutos atrás, mas parece que não está funcionando.

Ele observou minhas mãos trêmulas e minha respiração acelerada, então se sentou novamente, como se estivesse lidando com um quebra-cabeça difícil. Após despachar a senhora, voltou a me prestar atenção, anotando minhas informações pessoais.

— Pode caminhar até a cadeira de exame ou precisa da minha ajuda?

Sacudi a cabeça, levantando-me com cuidado, cada passo sendo uma batalha contra a dor que me atormentava. Ao chegar à cadeira, já estava hiperventilando e suando.

— Charlotte, a pílula logo vai fazer efeito. Você vai ficar bem — ele lembrou, com uma suavidade que me fez querer me aninhar na cadeira.

— Eu sei, mas não consigo controlar. — Meu tom estava à beira do pânico.

As pessoas geralmente não entendem o que é ter essa fobia, nem mesmo meu marido, o rei da frieza. Eu não era louca, apenas queria estar sem dor!

— Você está em boas mãos. Não vou deixar nada acontecer com você — ele acrescentou, tentando me acalmar.

Olhei para ele novamente, buscando conforto em seus olhos suaves, e foi surpreendentemente fácil. Ele cobrira metade do rosto com uma máscara cirúrgica, e a luz piscante acima dele realçava suas feições, tornando-o quase bonito.

Não que eu estivesse começando a gostar dele; eu só precisava encontrar algo para me distrair da dor.

— Agora, abra a boca para eu ver — ele disse, rindo mais uma vez, quebrando a tensão.

Após o exame, ele me receitou alguns medicamentos para os próximos dias, e finalmente, o analgésico começou a fazer efeito, trazendo um alívio bem-vindo. Ao me sentar novamente, a dor havia diminuído, e o pânico começava a se dissipar.

— Peço desculpas pelo caos que causei mais cedo na clínica — murmurei, envergonhada.

Ele me olhou por um momento prolongado, a expressão de calma em seu rosto.

— Desde quando começou a ter algofobia?

— Desde que me lembro

— E não tem outros transtornos de ansiedade?

— Não que eu saiba — completei, um pouco insegura.

— Deve ter sido muito difícil — comentou ele, franzindo a testa. Depois de um breve momento, acrescentou — parece que você tem um caso grave de fobia. A dor que você sentiu provavelmente seria suportável para uma pessoa comum.

— Estou trabalhando nisso — respondi, cansada.

Recebi minha receita e saí do consultório. 

Assim que paguei a conta e estava prestes a sair, deparei-me com dois homens enormes em ternos, bloqueando meu caminho. Eles eram claramente os guarda-costas dos Speredos.

— Jovem senhora, o Senhor Speredo foi informado sobre sua visita à clínica e está preocupado com o seu bem-estar.

Um frio percorreu minha espinha. O senhor deles era, claro, meu sogro, Jackson Speredo. A ideia de ser vigiada 24 horas por dia me deixava furiosa. 

Eu só queria me livrar daquela família. Mesmo que isso significasse acabar na rua e morrer de fome, eu queria ser independente, livre das garras deles. 

Mas não, mesmo depois de três anos que deixei sua casa, ainda estava sob seus olhos atentos. Claro, poderia fazer algo que ferisse sua reputação, ele não poderia permitir que uma ralé igual a mim, comprometesse seus negócios.

— Diga ao seu senhor que não preciso de ninguém cuidando de mim. Agradeço pela preocupação, mas não somos mais uma família.

Os dois guarda-costas assentiram e se afastaram. Balancei a cabeça, observando suas costas desaparecerem. Aposto que havia uma dúzia de homens me vigiando de todos os ângulos.

Esse encontro drenou o resto das minhas forças.

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