Quando acordei, o primeiro rosto que vi não era exatamente o que eu esperava encontrar ao abrir os olhos. Um homem, talvez na casa dos trinta, me observava com um olhar preocupado. Não era o tipo de beleza que me faria suspirar, mas seus olhos suaves e o nariz bem delineado eram, de alguma forma, reconfortantes.
— Você está bem, senhora? — ele perguntou, a voz doce como uma brisa de primavera.
Notei que ele estava vestindo um jaleco branco. Ah, então deve ser o dentista. Soltei um suspiro de alívio e, enquanto tentava controlar a dor que ainda latejava na minha boca, disse:
— Estou viva, mas meu dente está me matando. Você pode fazer algo a respeito?
Ele soltou uma risada suave e me ajudou a levantar do chão, suas mãos firmes, mas gentis.
— Siga-me até o consultório.
E assim fiz, passando pela sala de espera sob olhares curiosos que, sem dúvida, me amaldiçoavam silenciosamente por ignorá-las enquanto ele me arrastava para fora. A dor era uma sombra tão insuportável que não me permitia ser mais cortês.
Quando entramos no consultório, uma senhora já estava sentada na cadeira, sua boca ainda dormente da anestesia.
— O que foi esse caos? — perguntou ela, a curiosidade transbordando em cada palavra, como se fosse a fofoqueira do prédio.
— Não foi nada, essa senhora desmaiou — respondeu o dentista, se acomodando atrás da mesa com uma calma que só aumentou minha ansiedade.
A mulher me avaliou de cima a baixo, seu olhar penetrando como uma agulha.
— Como assim nada? Senhora, você está doente? Grávida? Se você tem diabetes, precisa comer algo doce. É arriscado desmaiar, sabia? Ouvi que nosso vizinho desmaiou porque estava dormindo na privada e agora virou um vegetal em coma!
Com cada palavra dela, meu pânico aumentava, e suas bochechas inchadas pela anestesia pareciam se mover de maneira estranha. Eu me sentia prestes a entrar em colapso novamente.
— Os jovens de hoje estão tão fracos. Olhe para você, tão azeda quanto um limão! Vai desmaiar de novo?
Assim que ela terminou de gritar, o dentista finalmente levantou os olhos, alarmado. Eu estava de volta ao mesmo pesadelo de antes, pronta para uma segunda rodada de desmaios.
Mas desta vez, não perdi completamente a consciência. Senti os braços fortes do dentista me segurando, um gesto que deveria ser confortante, mas me fez lembrar de outra pessoa. Aqueles braços, o perfume masculino inconfundível…
Com um impulso, afastei-me dele, meu tom mais frio do que pretendia.
— Estou bem, não precisa me tocar.
Um calafrio percorreu minha espinha, e não era pela dor.
Sentei-me na cadeira em frente à mesa, tentando parar de tremer.
— Senhora, eu tenho fobia de dor. Agradeço se você parar de mencionar essas experiências dos outros. Vou me sentir melhor se não pensar em dor.
Finalmente, ele decidiu agir. Seu olhar sério se fixou em mim.
— Você tomou algum analgésico?
— Apenas alguns minutos atrás, mas parece que não está funcionando.
Ele observou minhas mãos trêmulas e minha respiração acelerada, então se sentou novamente, como se estivesse lidando com um quebra-cabeça difícil. Após despachar a senhora, voltou a me prestar atenção, anotando minhas informações pessoais.
— Pode caminhar até a cadeira de exame ou precisa da minha ajuda?
Sacudi a cabeça, levantando-me com cuidado, cada passo sendo uma batalha contra a dor que me atormentava. Ao chegar à cadeira, já estava hiperventilando e suando.
— Charlotte, a pílula logo vai fazer efeito. Você vai ficar bem — ele lembrou, com uma suavidade que me fez querer me aninhar na cadeira.
— Eu sei, mas não consigo controlar. — Meu tom estava à beira do pânico.
As pessoas geralmente não entendem o que é ter essa fobia, nem mesmo meu marido, o rei da frieza. Eu não era louca, apenas queria estar sem dor!
— Você está em boas mãos. Não vou deixar nada acontecer com você — ele acrescentou, tentando me acalmar.
Olhei para ele novamente, buscando conforto em seus olhos suaves, e foi surpreendentemente fácil. Ele cobrira metade do rosto com uma máscara cirúrgica, e a luz piscante acima dele realçava suas feições, tornando-o quase… bonito.
Não que eu estivesse começando a gostar dele; eu só precisava encontrar algo para me distrair da dor.
— Agora, abra a boca para eu ver — ele disse, rindo mais uma vez, quebrando a tensão.
Após o exame, ele me receitou alguns medicamentos para os próximos dias, e finalmente, o analgésico começou a fazer efeito, trazendo um alívio bem-vindo. Ao me sentar novamente, a dor havia diminuído, e o pânico começava a se dissipar.
— Peço desculpas pelo caos que causei mais cedo na clínica — murmurei, envergonhada.
Ele me olhou por um momento prolongado, a expressão de calma em seu rosto.
— Desde quando começou a ter algofobia?
— Desde que me lembro…
— E não tem outros transtornos de ansiedade?
— Não… que eu saiba — completei, um pouco insegura.
— Deve ter sido muito difícil — comentou ele, franzindo a testa. Depois de um breve momento, acrescentou — parece que você tem um caso grave de fobia. A dor que você sentiu provavelmente seria suportável para uma pessoa comum.
— Estou trabalhando nisso — respondi, cansada.
Recebi minha receita e saí do consultório.
Assim que paguei a conta e estava prestes a sair, deparei-me com dois homens enormes em ternos, bloqueando meu caminho. Eles eram claramente os guarda-costas dos Speredos.
— Jovem senhora, o Senhor Speredo foi informado sobre sua visita à clínica e está preocupado com o seu bem-estar.
Um frio percorreu minha espinha. O “senhor” deles era, claro, meu sogro, Jackson Speredo. A ideia de ser vigiada 24 horas por dia me deixava furiosa.
Eu só queria me livrar daquela família. Mesmo que isso significasse acabar na rua e morrer de fome, eu queria ser independente, livre das garras deles.
Mas não, mesmo depois de três anos que deixei sua casa, ainda estava sob seus olhos atentos. Claro, poderia fazer algo que ferisse sua reputação, ele não poderia permitir que uma ralé igual a mim, comprometesse seus negócios.
— Diga ao seu senhor que não preciso de ninguém cuidando de mim. Agradeço pela preocupação, mas não somos mais uma família.
Os dois guarda-costas assentiram e se afastaram. Balancei a cabeça, observando suas costas desaparecerem. Aposto que havia uma dúzia de homens me vigiando de todos os ângulos.
Esse encontro drenou o resto das minhas forças.
Passei na farmácia para comprar o medicamento e me dirigi apressadamente à estação de rádio onde trabalho como radialista. Assim que entrei no prédio, encontrei meu gerente descendo as escadas. O olhar dele se fixou em mim e eu sabia que o show estava prestes a começar.— Você planeja aparecer depois que a estação fechar? Você tem ideia de que horas são? — sua voz ecoou, quase um grito.— Pedi uma licença para hoje. Estou aqui apenas para pegar alguns materiais para o episódio de amanhã — lembrei, com um sorriso sarcástico. O homem parecia ter um ataque cardíaco ao ouvir isso. E então, a explosão:— Recusei seu pedido! O programa vai ao ar em meia hora! Se não tiver nada preparado, é melhor improvisar qualquer coisa! Você está tentando me matar, Charlotte Viradia?! Está planejando deixar toda a equipe desempregada?!Entrei no estúdio e fechei a porta, mas ainda conseguia ouvir os xingamentos voando como flechas. Quando finalmente tirei meu telefone da bolsa, a mensagem que ele enviou
Só ouvia rumores dele através dos jornais e revistas que, infelizmente, não podia evitar. E mesmo depois de tanto tempo, ainda reconhecia sua voz. Meu coração disparou, não por amor, mas por puro ódio!— Você parece muito bem, com admiradores ligando e pedindo para estar com você — ele continuou, seu tom frio e sarcástico.Fiquei em silêncio, lembrando da promessa que fiz a mim mesma de não falar com ele novamente. E, claro, havia o medo. Se aprendi algo sobre Alexander, é que ele era implacável e impiedoso.Agradecia a Deus, dia e noite, por ter me livrado desse demônio em forma de gente. Mas, aparentemente, superestimei minha sorte. Essa escoria ainda estava bordado na minha vida. Sabia onde eu trabalhava e me ligou, arruinando meu humor.Fiz sinal para que Tamilian cortasse a ligação, mas antes que pudesse fazer isso, Alexander declarou, com um tom que gelou meu sangue:— Nos encontraremos muito em breve, Charlotte.E desligou.Poderia alegar que fui ameaçada ao vivo, mas continuei
Eu já estava a um fio de perder a paciência. Qual é o problema desses homens? Será que todo narcisista que anda sobre duas pernas acaba na minha órbita?— Dr. Jamil, meu marido é um homem perigoso. Só de estar sentada aqui comigo, você está correndo risco. E não, não vou me divorciar — nem se eu quisesse, teria como!Ele apenas me encarou, calmo, como se a minha declaração não tivesse o menor impacto. Aquele olhar gentil, quase complacente, me irritava. Suspirei, aliviada por acreditar que ele, finalmente, ia parar com a insistência ridícula.— Eu vou embora. Talvez devesse procurar outro dentista, caso se sinta desconfortável. — Levantei-me, sem sequer esperar por uma resposta. — Tenha uma boa tarde, Dr. Jamil.— Pelo menos, tome seu café antes de sair — ele disse, a voz séria, quase uma ordem.Eu reviraria os olhos se não fosse pela sua postura firme. Me mantive na cadeira, resignada. A ideia de um dentista me obrigando a tomar café me pareceu tão ridícula que quase sorri. O garçom
Acordar sozinha na cama me trouxe um alívio tão grande. Naqueles dias em que compartilhava o leito com Alexander, a alegria era uma sensação que parecia ter se evaporado. Quase sempre, ao abrir os olhos, encontrava-o sentado no sofá do nosso quarto, a luz suave da manhã iluminando o seu laptop, enquanto ele lia arquivos ou discutia algo com os associados.Aquela cama se tornava tão fria quanto a indiferença dele ao meu lado. Lembro da nossa primeira noite juntos — um verdadeiro pesadelo. Sem experiência, — ainda não tenho, mas enfim — me perguntei se poderia passar por aquilo sem estar realmente acordada. Como poderia me entregar a um homem que não amava? E a dor? Minhas amigas viviam alertando que a primeira vez doía, e eu me consumia em inseguranças. Será que, diante da minha apreensão, ele seria gentil?No final, nada aconteceu. O alívio foi acompanhado de um peso no peito. Ele não me tocou por eu ser detestável? Ou porque percebeu o quanto eu tremia? A resposta até hoje permanece
Abri o envelope hesitante, o coração acelerando em um misto de expectativa e medo. A primeira coisa que capturei foi sua letra horrível, escorrendo como tinta de um caneta falhando. O papel continha poucas palavras, mas suficientes para gelar meu sangue:— Peça à recepcionista para lhe dar o contato da minha família.Abaixo, um número de telefone, como se fosse uma sentença de morte. Num impulso, a vontade de discar e perguntar como ele estava tomou conta de mim. Mas seria irracional, certo? Afinal, como um dentista te receberia depois de arruinar a vida dele? Mas não podia simplesmente ignorar a situação, ao menos teria que tentar, um consolo egoísta meu, talvez?Quando finalmente liguei para aquele número, ainda parada ao lado da recepcionista, a voz forte e familiar de Jamil ressoou do outro lado. — Doutor Jamil? Aqui é Charlotte.Um silêncio pesado se instalou, e então ele respondeu, quase como se estivesse se preparando para a bomba que iria soltar.— Sra. Speredo, como posso aj
Minhas crises de ansiedade vinham em ondas, cada vez que ele passava pela porta do quarto. A tensão de esperar pelo momento em que ele, finalmente, encerraria esse tormento… nossa primeira noite. Tudo que eu conseguia pensar era no quanto aquilo seria doloroso. Uma dor real. Meus músculos contraíam só de imaginar. E, claro, havia o temor constante de que a mãe dele, aquela bruxa, soubesse. A velha certamente faria um escândalo sobre o assunto.— Você quer me deixar… — a voz dele quebrou o silêncio como uma lâmina, entre respirações rápidas, mas não havia dúvida. Era uma constatação, não uma pergunta.Naquela época, eu já estava com os pés na porta do divórcio. Só esperava o momento certo. Meu corpo precisava se recuperar completamente antes de colocar meu plano em prática. Mas, Alexander sempre tinha esse maldito hábito de estar um passo à frente. Como ele conseguia ver através de mim tão facilmente? Era assustador.Eu não tinha ideia do que estava provocando aquela respiração acelera
Eu conhecia muito bem aquele bastardo. E, convenhamos, ele também me conhecia. Enquanto casais normais se familiarizam e desenvolvem um entendimento tácito movido pelo amor e interesse, o nosso caso era um verdadeiro espetáculo de antítese. Eu o odiava. Odiava Alexander tanto que, de maneira inconsciente, me tornei uma especialista na complexa ciência de desvendá-lo. Ou pelo menos eu tentava.Acho que ele também me estudava. Conhecia meu ponto fraco: ser justa. Não que eu fosse uma sentimentalista, mas possuo princípios. Jamais usaria pessoas inocentes em minha jornada para alcançar meus objetivos. Alexander, no entanto, não hesitou em explorar essa fraqueza, repetidas vezes.Após algum tempo, a tempestade emocional dentro de mim começou a amainar. Sequei as lágrimas que ainda manchavam meu rosto e, pisando no meu orgulho, alcancei meu celular. Rolei os contatos, meu coração disparando ao encontrar aquele número que não discava há três longos anos. Nunca imaginei que um dia ligaria pa
Como fui idiota por achar que a voz dele tinha uma pitada de sinceridade quando disse que não estava feliz. Que Alexander Speredo afunde na própria miséria!Voltei ao estúdio com passos firmes, mais para reafirmar minha decisão do que qualquer outra coisa. Peguei meus pertences — alguns cadernos, canetas e aquela caneca que eu sempre esquecia de levar pra casa — e escrevi minha carta de demissão sem titubear. Três anos dedicados a esse programa e, num piscar de olhos, tudo acabou. Era típico. Com Alexander, não existe espaço para se opor. Ele decide, e você só tem duas opções: acatar ou sofrer as consequências. Hoje, escolhi a primeira. A sensação de perda já estava tão entranhada em mim que aceitar essa derrota foi quase automático. Que se dane.Coloquei tudo em uma sacola e fui direto ao escritório do gerente. Eu só queria entregar a carta e sumir dali.— O que aconteceu foi injusto com você, Charlotte. Perdoe-nos por não termos te apoiado… Mas, francamente, não tínhamos escolha — d