Eu já estava a um fio de perder a paciência. Qual é o problema desses homens? Será que todo narcisista que anda sobre duas pernas acaba na minha órbita?
— Dr. Jamil, meu marido é um homem perigoso. Só de estar sentada aqui comigo, você está correndo risco. E não, não vou me divorciar — nem se eu quisesse, teria como!
Ele apenas me encarou, calmo, como se a minha declaração não tivesse o menor impacto. Aquele olhar gentil, quase complacente, me irritava. Suspirei, aliviada por acreditar que ele, finalmente, ia parar com a insistência ridícula.
— Eu vou embora. Talvez devesse procurar outro dentista, caso se sinta desconfortável. — Levantei-me, sem sequer esperar por uma resposta. — Tenha uma boa tarde, Dr. Jamil.
— Pelo menos, tome seu café antes de sair — ele disse, a voz séria, quase uma ordem.
Eu reviraria os olhos se não fosse pela sua postura firme. Me mantive na cadeira, resignada. A ideia de um dentista me obrigando a tomar café me pareceu tão ridícula que quase sorri. O garçom trouxe o café e, claro, o bolo de morango que ele havia pedido. Fiquei ali, me perguntando como um dentista, de todas as pessoas, podia comer tanto açúcar sem remorso. Não eram eles que nos aterrorizavam com sermões sobre cáries?
Não trocamos uma palavra sequer durante o restante do “encontro”. Cada garfada parecia pesada, como se tivéssemos algo mais profundo para discutir, mas ninguém dizia nada. Quando finalmente terminamos, ele pagou a conta com a calma irritante de quem sempre tem tudo sob controle.
— Tome seus remédios no horário certo. Se a dor voltar, pode me ligar a qualquer hora. — Ele deu um meio sorriso, inclinando-se um pouco em minha direção. — Charlotte, você não precisa suportar tudo isso sozinha.
Fiquei parada, observando-o se afastar. Alto, confiante, o tipo de homem que raramente ouve um “não”. Nos três anos desde minha separação, apenas dois homens tentaram se aproximar de mim. O primeiro foi um ex-colega de trabalho da rádio. Coitado, achou que confessar seus sentimentos por mim era uma boa ideia.
Eu o rejeitei, óbvio. Minha vida não era normal ou livre o suficiente para simplesmente sair por aí namorando. Ele achava que era um assunto privado, mas a verdade? Nada na minha vida é privado. Alguém da família Speredo sempre está assistindo. E esse colega, bom, ele aprendeu isso da pior maneira.
Nunca soube exatamente o que aconteceu, mas sei que foi o suficiente para ele perder completamente o controle e berrar na minha cara:
— Você é uma maldição! Eu queria nunca ter te conhecido! Diga a seus “homens” que eu não quero mais nada com você!
Dois dias depois, ele largou o emprego. E agora, aqui estou eu, lidando com o segundo homem. O Dr. Jamil, com seu jeito tranquilo e... perigoso. Eu devia me preocupar com ele, mas, sinceramente, tinha preocupações maiores. Como pagar dois táxis, um dentista e ainda os remédios. Se continuasse assim, eu iria à falência antes mesmo de conseguir um divórcio.
Pelo menos, eu economizei pegando um ônibus pra casa. Assim que entrei, fui recebida por uma bagunça de proporções épicas. Caixas de analgésicos, travesseiros espalhados, e minha coberta, que de alguma forma tinha ido parar no chão da cozinha. A noite anterior tinha sido um desastre.
Joguei-me no sofá, tirando os sapatos com o pé e os chutando para longe. Abracei os joelhos e me senti uma merda. Minha vida era um laboratório, e eu, o rato de teste. Sempre vigiada, sempre manipulada. Nem minha dor significava algo para eles. Meus sogros me odiavam, meu marido me ignorava, e mesmo assim, não me deixavam partir.
Não sei por quanto tempo fiquei ali, afundada em autocomiseração, até que o telefone tocou. Meu coração disparou quando vi um número desconhecido na tela. Por um segundo, achei que fosse Alexander. Ele não me ligava há anos. E sinceramente, eu preferia manter as coisas assim.
— Alô? — Atendi com a voz trêmula.
— Ah, Lotte! — suspirei aliviada ao reconhecer a voz da minha avó.
— Vovó? — perguntei, franzindo a testa.
— Sua ingrata! É assim que me atende? Desse jeito, vou morrer logo, e será tudo culpa sua.
Revirei os olhos. Coloquei o telefone no viva-voz e o deixei sobre a mesinha de centro, enquanto abraçava meus joelhos de novo.
— Como você está, vovó? — perguntei, minha voz cheia de falsa doçura. — Está tudo bem aí com o tio?
Ela estava vivendo no luxo, é claro. Desde que me casei com Alexander, ela se mudou para a mansão Speredo e nunca mais olhou para trás. Mas, claro, sempre dizia que não podia viver sem mim. Estranho como ela estava respirando perfeitamente bem sem minha presença por perto. Uma velha tão sorrateira.
— Não estou nada bem sem você. Por que continua com essa teimosia? Volte para o seu marido. O que ganha morando sozinha?
— Paz. — Eu ri, uma risada amarga. — E eu poderia estar muito melhor se o maldito me desse o divórcio.
— Desavergonhada! — ela gritou, e eu agradeci por ter o telefone longe do ouvido. — Você se atreve a chamar seu marido de maldito?! Eu realmente falhei em criá-la!
— Vou desligar, vovó. Meu dente está começando a doer de novo.
— Espere! Seu marido acabou de entrar no corredor. Quer falar com ele?
O som do nome dele me congelou. Sem pensar duas vezes, apertei o botão de desligar. A última coisa que eu precisava era ouvir a voz fria de Alexander. Só de imaginar, meu estômago revirava. A noite prometia ser longa, com pesadelos cheios daquele rosto bonito e impenetrável.
Acordar sozinha na cama me trouxe um alívio tão grande. Naqueles dias em que compartilhava o leito com Alexander, a alegria era uma sensação que parecia ter se evaporado. Quase sempre, ao abrir os olhos, encontrava-o sentado no sofá do nosso quarto, a luz suave da manhã iluminando o seu laptop, enquanto ele lia arquivos ou discutia algo com os associados.Aquela cama se tornava tão fria quanto a indiferença dele ao meu lado. Lembro da nossa primeira noite juntos — um verdadeiro pesadelo. Sem experiência, — ainda não tenho, mas enfim — me perguntei se poderia passar por aquilo sem estar realmente acordada. Como poderia me entregar a um homem que não amava? E a dor? Minhas amigas viviam alertando que a primeira vez doía, e eu me consumia em inseguranças. Será que, diante da minha apreensão, ele seria gentil?No final, nada aconteceu. O alívio foi acompanhado de um peso no peito. Ele não me tocou por eu ser detestável? Ou porque percebeu o quanto eu tremia? A resposta até hoje permanece
Abri o envelope hesitante, o coração acelerando em um misto de expectativa e medo. A primeira coisa que capturei foi sua letra horrível, escorrendo como tinta de um caneta falhando. O papel continha poucas palavras, mas suficientes para gelar meu sangue:— Peça à recepcionista para lhe dar o contato da minha família.Abaixo, um número de telefone, como se fosse uma sentença de morte. Num impulso, a vontade de discar e perguntar como ele estava tomou conta de mim. Mas seria irracional, certo? Afinal, como um dentista te receberia depois de arruinar a vida dele? Mas não podia simplesmente ignorar a situação, ao menos teria que tentar, um consolo egoísta meu, talvez?Quando finalmente liguei para aquele número, ainda parada ao lado da recepcionista, a voz forte e familiar de Jamil ressoou do outro lado. — Doutor Jamil? Aqui é Charlotte.Um silêncio pesado se instalou, e então ele respondeu, quase como se estivesse se preparando para a bomba que iria soltar.— Sra. Speredo, como posso aj
Minhas crises de ansiedade vinham em ondas, cada vez que ele passava pela porta do quarto. A tensão de esperar pelo momento em que ele, finalmente, encerraria esse tormento… nossa primeira noite. Tudo que eu conseguia pensar era no quanto aquilo seria doloroso. Uma dor real. Meus músculos contraíam só de imaginar. E, claro, havia o temor constante de que a mãe dele, aquela bruxa, soubesse. A velha certamente faria um escândalo sobre o assunto.— Você quer me deixar… — a voz dele quebrou o silêncio como uma lâmina, entre respirações rápidas, mas não havia dúvida. Era uma constatação, não uma pergunta.Naquela época, eu já estava com os pés na porta do divórcio. Só esperava o momento certo. Meu corpo precisava se recuperar completamente antes de colocar meu plano em prática. Mas, Alexander sempre tinha esse maldito hábito de estar um passo à frente. Como ele conseguia ver através de mim tão facilmente? Era assustador.Eu não tinha ideia do que estava provocando aquela respiração acelera
Eu conhecia muito bem aquele bastardo. E, convenhamos, ele também me conhecia. Enquanto casais normais se familiarizam e desenvolvem um entendimento tácito movido pelo amor e interesse, o nosso caso era um verdadeiro espetáculo de antítese. Eu o odiava. Odiava Alexander tanto que, de maneira inconsciente, me tornei uma especialista na complexa ciência de desvendá-lo. Ou pelo menos eu tentava.Acho que ele também me estudava. Conhecia meu ponto fraco: ser justa. Não que eu fosse uma sentimentalista, mas possuo princípios. Jamais usaria pessoas inocentes em minha jornada para alcançar meus objetivos. Alexander, no entanto, não hesitou em explorar essa fraqueza, repetidas vezes.Após algum tempo, a tempestade emocional dentro de mim começou a amainar. Sequei as lágrimas que ainda manchavam meu rosto e, pisando no meu orgulho, alcancei meu celular. Rolei os contatos, meu coração disparando ao encontrar aquele número que não discava há três longos anos. Nunca imaginei que um dia ligaria pa
Como fui idiota por achar que a voz dele tinha uma pitada de sinceridade quando disse que não estava feliz. Que Alexander Speredo afunde na própria miséria!Voltei ao estúdio com passos firmes, mais para reafirmar minha decisão do que qualquer outra coisa. Peguei meus pertences — alguns cadernos, canetas e aquela caneca que eu sempre esquecia de levar pra casa — e escrevi minha carta de demissão sem titubear. Três anos dedicados a esse programa e, num piscar de olhos, tudo acabou. Era típico. Com Alexander, não existe espaço para se opor. Ele decide, e você só tem duas opções: acatar ou sofrer as consequências. Hoje, escolhi a primeira. A sensação de perda já estava tão entranhada em mim que aceitar essa derrota foi quase automático. Que se dane.Coloquei tudo em uma sacola e fui direto ao escritório do gerente. Eu só queria entregar a carta e sumir dali.— O que aconteceu foi injusto com você, Charlotte. Perdoe-nos por não termos te apoiado… Mas, francamente, não tínhamos escolha — d
Uma vez, eu estava sentada no hotel mais badalado das redes Speredo, o tal Hotel Central, por pura obrigação. Ah, como eu adorava ser a mensageira de luxo da minha querida sogra, levando papéis inúteis de um lado para o outro, só para não esquecer que eu, oficialmente, não existia na vida deles. Eu e meu figurino “mendiga chique”, como ela mesma adorava chamar, perambulávamos pelos corredores tentando achar Alexander, que, como sempre, não atendia minhas ligações. Prioridades, não é mesmo?Foi quando esbarrei nele. Um homem tão deslumbrante que, por um segundo, me perguntei se era real. Ele tinha aquele ar de modelo de revista, o tipo que fazia qualquer pessoa comum — no caso, eu — parecer invisível. Mas o sorriso… ah, o sorriso. Ele sorriu para mim, e eu fiquei ali, parada como uma adolescente boba, fascinada pela perfeição dele. Claro, não me pergunte como, mas acabei sentada com ele em uma mesa no bar. Não me orgulho disso, mas estava hipnotizada. Ele parecia ainda mais bonito que
Eu não esperava nada menos do que frieza. Afinal, ele nunca foi do tipo que se preocupa, então por que agora meu estômago estava se retorcendo de culpa? Ele pegou o kit de primeiros socorros com a mesma calma meticulosa de sempre e começou a tratar o ferimento. A cada movimento, eu sentia aquela tensão pairando no ar, mas ele, como sempre, não deixava transparecer nada.— Não — sua voz veio baixa, mas firme —, você quis me machucar, esposa. E conseguiu.A lâmina de suas palavras cortou mais do que qualquer faca poderia. Fiquei ali, quieta, observando-o. Ele não se preocupou em dizer se o corte era profundo, nem eu perguntei. No fundo, acho que merecia o silêncio.Quando terminou, fechou o kit, jogou o algodão manchado de sangue no lixo e saiu do quarto como se nada tivesse acontecido. Em questão de minutos, estava de volta, segurando sua bolsa e casaco, calçando os sapatos com aquela eficiência insuportável. Nem sequer olhou para mim quando saiu. E assim foi. Três anos. Três longos an
Por um segundo, eu congelei. Literalmente. Meu coração parou como se tivesse levado um choque, e minha pele se arrepiou de um jeito irritante. Eu tremia, e não era de frio. Ele parecia perceber, porque, em um estalo, soltou-me. Como se tivesse acordado de um transe. Dei um passo para trás, a raiva queimando meu rosto.— Não ouse me tocar de novo! — gritei, tentando manter o pouco controle que ainda me restava. — Vai embora!Estávamos ambos ofegantes, mas por motivos completamente diferentes. Eu de pura frustração, ele… bem, o jeito como os olhos dele me devoravam não deixava dúvidas. Era desejo. Pela primeira vez, eu vi desejo ali. E eu odeio admitir que parte de mim ficou feliz.Alexander se recompôs, ou pelo menos tentou. Não se aproximou, mas também não desviou o olhar. Ficamos assim, parados, respirando pesadamente, enquanto a tensão pulsava entre nós, quase tangível.É frustrante perceber que, mesmo depois de três anos, eu ainda não consigo decifrá-lo. O homem que todas as mulher