O português João de Carvalho Antunes
Passei o resto da semana fazendo os preparativos para a mudança: como a cidade de Samambaias fica perto do Rio de Janeiro, achei que poderia permanecer durante um tempo maior lá, desfrutando de um dos melhores climas do mundo, além do sossego, do silêncio e da paz. Esses são ingredientes mais do que necessários para eu escrever minhas histórias com tranquilidade. Caso houvesse um imperativo qualquer, eu pegaria o carro e desceria a serra. É uma viagenzinha de hora e meia, talvez...
Eu não tinha patrão, nem cartão de ponto e, muito menos horário; ao contrário, era o feliz proprietário de todo o tempo do mundo. Conforme já disse, sobrou um bom dinheiro na minha poupança após a compra do casarão e isso era suficiente para me manter por vários meses em minhas desp
Falando da independênciaRozendo fez uma pausa para acender o cachimbo. Aproveitei para comentar:― Essa época de transição entre o domínio português e a independência foi muito traumática para os agricultores?― Oh. Sim, ― respondeu Rozendo. ― A luta pela emancipação política e administrativa do Brasil foi um movimento bem característico, mas de profundo significado para a economia do novo país. Foi similar a outros movimentos separatistas em vários outros países. Os primeiros tempos sempre são muito difíceis.Pedi ao velho que falasse sobre a independência. Ele não se fez de rogado recostando-se soltou algumas baforadas; depois, olhando para o teto, prosseguiu explicando:― Por influência de algumas correntes “pensantes” e provenientes da Europa, os axiomas liberais foram
D. Pedro, o imperador dos extremosRozendo sorriu abanando a cabeça. Depois suspirando, prosseguiu:― A tão sonhada independência, entretanto, fez surgirem muitas diferenças e proliferarem as opiniões: Havia os que defendiam um poder centralizado e forte e, entre eles estava o novo Imperador do Brasil que adotara o título de D. Pedro I. Os liberais colocavam-se favoráveis a um poder menos absoluto e os democratas pelejavam por uma igualdade social.Rozendo novamente balançou a fronte em gesto negativo; exprimia profunda desolação:― D. Pedro, autocrático e déspota por natureza, advogado extremado do absolutismo e totalmente refratário a qualquer demonstração liberal ou democrática, mostrou desde o início de seu governo um pulso tirânico e violento. Era tinhoso, teimoso e autoritário o monarca bra
A senzalaAcordei cedo! Não havia qualquer movimento pelo lado da casa de Rozendo. Também pudera... o dia ainda estava amanhecendo.Tomei um café solúvel e duas fatias de pão de forma com manteiga; manteiga boa, da roça...Assim que terminei meu desjejum fui dar uma volta pela propriedade para conhecê-la. Saí pelos fundos: Um friozinho cortante exigia agasalho. Logo após o terreiro havia uma garagem ampla com espaço para vários carros. Desde o primeiro dia reparei que havia outro carro, além do meu; de quem seria? De Rozendo ou de Maurine?À esquerda situava-se a casa de Rozendo à qual se chegava por um caminho batido. À direita, mas ainda em uma faixa quase central, uma horta bem cuidada, rodeada por uma cerca e com um portãozinho que se fechava por uma tramela; mais abaixo o caminho era calçado e levava ao
A feira de SamambaiasEstacionei o carro não muito longe do local onde acontecia a feira; as barracas estavam montadas perto da antiga estação ferroviária, um belo monumento da época áurea de Samambaias, hoje transformado na sede de uma importante instituição universitária.Maurine carregava duas sacolas bem grandes; fomos andando por entre as barracas de frutas e verduras, onde os vendedores de inúmeras mercadorias gritavam anunciando seu produto e fazendo propaganda da qualidade e do preço. Não era uma feira diferente de outras que eu estava acostumado a ver e frequentar; pelo contrário, era apenas um pouquinho menor.Entretanto, essa era a primeira vez que eu vinha acompanhado às compras e, convenhamos, por uma bela jovem. Também a missão de prover uma família com os diversos produtos hortifrutigranjeiros para a
Retomando a históriaFui direto para o meu quarto e tomei uma boa chuveirada, a fim de me preparar para o almoço. Eu estava disposto a cozinhar alguma gororoba, mas Rozendo e Maurine insistiram para que almoçasse com eles. Não deu para recusar.Após o saboroso almoço preparado pela neta do caseiro, fomos para a varandinha no fundo da casa de Rozendo, local muito agradável, fresco e com um belo jardim que ladeava o degrauzinho que descia para o quintal, jardinzinho esse onde as hortênsias e begônias predominavam.Ali, bebericando o gostoso café de Maurine, sentados em confortáveis poltronas de vime com um colchonete sobre a armação de bambu, retomamos nossa conversa:― Você parou sua narrativa quando o português João de Carvalho Antunes ficou, digamos, “viúvo” de Dona Soledade e herdou a fazenda Monte
Momentos insólitosDeixei a companhia de Rozendo e resolvi descansar um pouco no casarão. Tomei mais uma boa chuveirada e coloquei roupas leves para me sentir à vontade. Fui para o quarto que havia escolhido e deitei-me na cama. Era o aposento mais fresco e estava voltado para leste de forma a deixar o sol penetrar pela manhã e a brisa fresca circulando pela tarde, hora em que a sombra predominava daquele lado.Maurine havia arrumado o quarto com esmero adornando-o com vasos de flores, uma cesta repleta de frutas e uma moringa com água fresca, pois a água do pote de barro é sempre fria e deliciosa. A moça era eficiente, simpática, bonita e sabia agradar; pensava em tudo, por isso havia, também, uma bacia de louça e uma jarra com água, toalha, sabonete, copo, escova e pasta de dentes e outros apetrechos para lavar o rosto ao levantar, sem precis
Interpretando um sonho― Tive um sonho estranhíssimo!Foi exatamente com estas palavras que saudei Rozendo, assim que nos encontramos mais tarde, logo após o término de meu parco jantar, que constou de uma ‘sopa de saquinho’; ele veio até o casarão para nossa ‘tertúlia’ noturna.Rozendo fez uma cara de desentendido. Reforcei meu comentário dizendo:― Sim, um sonho estranhíssimo! Um pesadelo muito real! Sonhei com o João Antunes! No sonho ele veio me obrigar a deixar a casa e fez-me ameaças. Disse que iria me expulsar daqui como já expulsara os outros. E contei-lhe o sonho tim-tim por tim-tim.Rozendo sorriu, mais por obrigação do que por vontade e comentou:― Você dormiu depois do almoço, José. Os problemas digestivos costumam influir no psiquismo do sono e acontecem os pesadelo
Decifrando um mistério― Que foi isso? ― Perguntei.Todos nos entreolhamos e fomos ao aposento vizinho para ver o que tinha acontecido: vários livros encontravam-se esparramados pelo chão.Admirado, comentei com Rozendo:― Esses livros não podiam ter se movido sozinhos!― Não podiam! Com certeza, não podiam! ― Retrucou o velho abanando a cabeça negativamente.Mais de uma dezena de livros espalhava-se pelo assoalho. Não poderiam ter escorregado de seu lugar, pois a estante possuía prateleiras largas e sólidas, feitas de peças de madeira antiga e maciça com cerca de dois centímetros de espessura.― O que você acha? ― Perguntei ao velho jardineiro.Ele pensou durante alguns segundos; depois respondeu num timbre de voz baixo, porém firme:― Alguma coisa ou alguém quis chamar a nossa at